Arnaldo Vieira de Carvalho (1867-1920), cirurgião e ginecologista, e Enéas de Carvalho Aguiar (1902-1958), administrador hospitalar, morreram prematuramente, ambos na casa dos 50 anos de idade, e puderam vislumbrar apenas o nascimento das instituições que fundaram: respectivamente, a Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), criada em 1913, e seu braço hospitalar, o Hospital das Clínicas de São Paulo (HC), inaugurado em 1944. A memória desses dois médicos é lembrada todos os dias, até mesmo por pessoas que mal sabem quem eles foram. Dr. Arnaldo e dr. Enéas são os nomes de duas movimentadas avenidas paralelas, na Zona Oeste de São Paulo, que comportam o quadrilátero formado pela FMUSP, o HC e seus diversos institutos. Trata-se do mais famoso e produtivo endereço de atendimento de saúde, ensino e pesquisa aplicados à medicina do Brasil.
Paulistas e paulistanos buscam o atendimento do Hospital das Clínicas em casos de emergência e também em aflições corriqueiras, atraídos pela eficiência de seus médicos, um porto seguro em meio às deficiências da saúde pública. Brasileiros de todos os cantos do país, portadores de doenças raras ou tratadas com ferramentas experimentais, acostumaram-se a viajar milhares de quilômetros para se tratar no HC – muitos desconfiam da idéia de que existem centros de excelência em quase todas as regiões. Maior complexo hospitalar da América Latina, o HC fez, só no ano passado, 1,5 milhão de atendimentos ambulatoriais e 550 mil de emergência. Seus 2.492 leitos receberam 60 mil pacientes. Foram realizadas 45 mil cirurgias, entre as quais 500 transplantes e 6 milhões de exames laboratoriais. Como faculdade e hospital formam uma teia complexa e indistinta, o acompanhamento da notável diversidade de pacientes faz a diferença na formação de novos médicos e pesquisadores. Atualmente, a FMUSPabriga 1.422 estudantes de graduação (nota A no Provão) e 2.055 de mestrado e doutorado (70% dos programas de pós-graduação da FMUSP foram muito bem avaliados pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
A tradição de grande escola de medicina remonta as décadas de 1940 e 1950 – quando um professor catedrático era tão respeitado quanto o governador do Estado e os alunos, submetidos a disciplina férrea, iam às aulas de terno e gravata. Hoje, o perfil dos 344 docentes da FMUSP mudou bastante. “O campo de conhecimento da medicina expandiu-se e já não cabe naquelas antigas cadeiras dos catedráticos. Os médicos se especializam cada vez mais cedo”, diz Ricardo Brentani, presidente da Comissão de Pesquisa da faculdade. Outra mudança, essa mais recente, é a dedicação cada vez maior à pesquisa científica. Nosúltimos dez anos, cresceu progressivamente a produtividade dos 62 Laboratórios de Investigação Médica (LIM), os braços depesquisa da FMUSP. Tome-se como referência os trabalhos originais publicados em revistas indexadas na base do Institute for Scientific Information (ISI). Em 1993, constam 72 trabalhos dos LIM na base ISI. Em 2002, esse número saltou para 338. Em termos relativos,oavanço também é significativo. Os LIM eram responsáveis por 1,6% de todas as publicações brasileiras na base ISI em 1993. Em 2002, essa fatia alcançou 3%.
Essa mudança foi provocada por um conjunto de medidas que estimularam a atividade de pesquisa. Uma fração de 2% do dinheiro que o HC recebe do Sistema Único de Saúde (SUS), o equivalente a R$ 2,6 milhões em 2002, passou a ser destinada aos LIM – e distribuída segundo critérios de produtividade, como a publicação de trabalhos em revistas científicas de impacto e a capacidade de atrair recursos externos para pesquisa. Os laboratórios são avaliados anualmente. Conforme a nota dada, cada LIM recebe um quinhão maior ou menor. Esse dinheiro é gasto com autonomia, na compra, por exemplo, de material ou de passagens aéreas para pesquisadores participarem de congressos. Os 126 docentes com dedicação exclusiva à faculdade também conquistaram o direito a uma suplementação salarial variável. São avaliados com notas de A a D. Os de nota A chegam a receber R$ 3 mil extras no contracheque. Os de nota D não ganham nada. “A avaliação leva em conta várias atividades do professor, mas, sobretudo, a dedicação à pesquisa”, diz José Eluf Neto, diretor-executivo dos LIM.
As agências de fomento também tiveram um papel importante nesse novo perfil. “O raciocínio é simples”, diz Maria Mitzi Brentani, professora associada da disciplina de Oncologia. “Com as verbas de agências, os laboratórios equiparam-se para fazer pesquisa, desonerando o orçamento da faculdade e do HC, que pode ser gasto com salários e atendimento ao público”, diz. Em 2002, essas verbas alcançaram R$ 15,6 milhões. As principais fontes foram a FAPESP, com R$ 8,6 milhões, e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), com R$ 1,8 milhão. “No contexto da pesquisa biomédica, a FMUSP toma parte de todos os grandes programas da FAPESP. Participou de todos os genomas. E muitos dos professores têm programas temáticos com a instituição”, diz Eduardo Massad, professor de Informática Médica. Massad coordena um LIM que se notabilizou pela elaboração de modelos matemáticos capazes de avaliar a disseminação de doenças e pela criação de estratégias para combatê-las. Recentemente, uma pesquisa anteviu a eclosão de febre amarela numa região do interior paulista fustigada pela dengue e povoada pelo mosquito que espalha as duas doenças – o que aconteceu em seguida.
Células-tronco
Um exemplo da expansão da atividade de pesquisa é o Laboratório de Genética e Cardiologia Molecular, que ocupa o 10º andar do novo edifício do Instituto do Coração, o Incor. Com um projeto arquitetônico inspirado em laboratórios da Universidade Harvard, a instituição lidera, desde a primeira metade dos anos 1990, uma pesquisa de mapeamento de regiões cromossômicas ligadas à hipertensão. Outra linha de pesquisa busca entender como fatores genéticos e ambientais interagem para o aumento do risco cardiovascular – e demonstrou que a hipertrofia no coração de camudongos é tão mais grave quanto maior for o número de cópias do gene responsável pela produção da enzima conversora de angiotensina I (ECA). A alteração genética, é certo, não é causa direta do problema, mas desponta quando um outro gatilho sobrecarrega o coração.
O Laboratório, que se integrou ao esforço para mapear a bactériaXylella fastidiosa , hoje abriga uma vasta coleção de pesquisas, que vão desde agenética envolvida na resistência das veias safena usadas como pontes no coração até a aplicação de células-tronco para reconstituir regiões do músculo cardíaco afetadas por enfartes. Especula-se que a pesquisa de células-tronco possa ter um efeito mobilizador da opinião pública semelhante ao advento dos transplantes cardíacos no final dos anos 1960. Dez pacientes enfartados já receberam injeções dessas células, capazes de se transformar em qualquer tecido. Reagiram bem. A pesquisa agora vai seguir com mais 60 pacientes para avaliar a eficácia desse procedimento na capacidade de reconstituir vasos e tecidos. “São imensas as oportunidades de novos tratamentos relacionados à terapia celular e à terapia gênica”, diz o professor José Eduardo Krieger, responsável pelo laboratório.
O laboratório do Incor nem de longe é exemplo isolado. Recentemente, a pesquisadora Ana Claudia Latronico, da Unidade de Endocrinologia do Desenvolvimento do Hospital das Clínicas, ganhou o Prêmio Richard E. Weitzman, concedido em junho pela Sociedade Americana de Endocrinologia, pela participação em estudos pioneiros que descrevem novas mutações genéticas causadoras de doenças hormonais. A equipe chefiada pela professora de oncologia Maria Mitzi Brentani, no Instituto de Radiologia, participa de pesquisas como a procura de marcadores moleculares relacionados à resposta à quimioterapia dos pacientes de câncer de mama.
A equipe apresentou recentemente num congresso as características genéticas que, supostamente, fazem pacientes até com tumores avançados reagirem bem à doxorrubicina, droga quimioterápica. A descoberta, agora submetida a estudos mais amplos, pode ter um papel importante na escolha do tratamento para cada paciente, de acordo com as peculiaridades de seu DNA. “Nosso objetivo delongo prazo é encontrar um largo espectro de marcadores de tumores”, diz a professora Maria Mitzi Brentani. Outra linha de pesquisa investiga a relação entre os baixos níveis de vitamina D no sangue e a eclosão do câncer de mama em mulheres com mais de 65 anos. Uma hipótese é que a baixa exposição ao sol e a alimentação pobre tenham um papel na deficiência da vitamina D e no conseqüente surgimento da doença.
No Laboratório de Pneumologia, o professor-assistente Marcelo Amato desenvolveu um equipamento capaz de produzir imagens, através da emissão de pulsos elétricos, das condições pulmonares de pacientes de UTIs submetidos a respiração artificial. É comum que a ventilação forçada cause danos ao pulmão e os médicos têm ferramentas pouco acuradas para detectar esses problemas. Certas manobras, como a fisioterapia e a calibragem dos equipamentos, podem ajudar a prevenir o efeito colateral. Em 1998, o grupo da Pneumologia publicou na revista científicaThe New England Journal of Medicine um estudo mostrando os danos da ventilação mecânica. “Um caso famoso é o do presidente Tancredo Neves, que, depois de várias semanas internado e respirando artificialmente, sofreu danos irreversíveis nos pulmões”, diz Marcelo Amato. O equipamento consiste numa cinta atada ao tórax, repleta de eletrodos, que emitem pulsos na direcão do pulmão em freqüências imperceptíveis ao corpo humano. Em um monitor, os pulsos se transformam em imagens que revelam os movimentos do pulmão – o ar que entra e sai é um isolante elétrico. O aparelho será avaliado na UTI do Hospital das Clínicas.
Ensino e pesquisa são indissociáveis na trajetória da FMUSP, mas a balança historicamente pendeu para a formação profissionalizante. A faculdade começou a funcionar em 1913 e ganhou sua sede atual, um conjunto arquitetônico em frente ao Cemitério do Araçá, dezoito anos mais tarde. O prédio foi tombado pelo Patrimônio Histórico em 1981, por encarnar um conceito de escola médica modelar para a época – dois grandes departamentos (o laboratório e o clínico) instalados num bloco só, num “hospital de ensino”. Como os professores deveriam dedicar todo seu tempo à faculdade, a contrapartida arquitetônica foi a criação de gabinetes para os docentes e seus assistentes. O conjunto foi construído com dinheiro da Fundação Rockefeller e reproduzia o ensino médico praticado nos Estados Unidos, fortemente vinculado à pesquisa. Mas a medicina que se praticava no Brasil, naquela época, tinha sotaque francês – um modelo mais empírico e menos investigativo. Até a Segunda Guerra, quando os professores da FMUSP queriam se reciclar, costumavam ir a Paris.
Segunda mão
Em 1934, com a fundação da USP, a Faculdade de Medicina integrou-se, oficialmente, ao corpo da Universidade. A criação do Hospital das Clínicas, em 1944, e o gigantismo que logo adquiriu moldaram o caráter assistencial e formador de bons médicos da faculdade. A pesquisa acabou ficando em segundo plano. “Se você analisar a biografia dos grandes professores da faculdade naquela época, verá que eram grandes clínicos ou cirurgiões, grandes professores, mas hoje seriam vistos como pesquisadores pouco produtivos”, diz o professor Eduardo Massad. A pesquisa que por muito tempo se fez na FMUSP, e ainda ocupa espaço lá dentro, foi a que aproveita a diversidade de pacientes e seus diagnósticos para testar remédios. “Mas é um tipo de pesquisa de segunda mão. As drogas não são desenvolvidas aqui dentro”, completa Massad. A reforma universitária de 1969 representou um golpe nas atividades da pesquisa. Com a transferência das cadeiras básicas da FMUSP para a Cidade Universitária, a faculdade ressentiu-se com a perda de pesquisadores e laboratórios. A reação veio em 1975, com a criação dos Laboratórios de Investigação Médica, os LIM, protagonistas da atual escalada de pesquisas.
Também remonta aos anos 1970 uma experiência de gestão que teria impacto na instituição. Lastreado pelo prestígio popular que conquistou ao realizar o primeiro transplante cardíaco do Brasil, o cirurgião Euryclides Zerbini (1912-1993) conseguiu apoio e dinheiro para criar um apêndice do Hospital das Clínicas ligado à sua especialidade, o Instituto do Coração (Incor). Do governo estadual, conseguiu a cessão de um terreno na avenida dr. Enéas, à época um barranco nos fundos do Instituto Emílio Ribas. Além da competência de seus clínicos e cirurgiões, o Incor foi inovador no modelo de gestão. O instituto é gerenciado pela Fundação Zerbini, uma entidade de direito privado, que instituiu um modelo para captar recursos privados, reservando 20% dos leitos do Incor para convênios médicos e pacientes particulares. Os 80% demais são vagas do SUS. O modelo gerou um equilíbrio financeiro que garantiu a continuidade de projetos de pesquisa nos anos 1980, quando a economia do país estagnou. Afundação promove a contratação de funcionários e a complementação salarial de empregados do HC. Exige-se que os médicos trabalhem em tempo integral – podendo até mesmo atender pacientes particulares em consultórios na instituição. O exemplo do Incor inspirou a criação, nos anos 1980, da Fundação Faculdade de Medicina da USP, que também busca levantar recursos privados para a instituição, mas não tem tanta flexibilidade quanto a Fundação Zerbini.
Criamos um ambiente em que médicos e funcionários trabalham motivados e a rotatividade é muito baixa, de 3% dos funcionários ao ano”, diz o professor Sérgio Almeida de Oliveira, diretor da Divisão de Cirurgia Torácica e Cardiovascular. A Fundação Zerbini reserva verbas para que os médicos do hospital submetam suas pesquisas a revistas internacionais e participem de congressos. Em 2002 havia 463 projetos de pesquisa em andamento. O fôlego financeiro da instituição, contudo, vem do atendimento aos pacientes. O segundo prédio do Incor, recém-inaugurado, foi idealizado para abrigar apenas atividades de pesquisa. Mas, quando a Fundação Zerbini colocou o projeto na ponta do lápis, viu-se que era necessário ampliar o atendimento para arrecadar mais dinheiro do SUS e de convênios. Decidiu-se, então, reservar o 6º, 7º e 8º andares para internações. Hoje, o hospital tem 510 leitos.
Um paradoxo permeia a história da FMUSP. Não há professor, aluno ou funcionário que não reclame da superlotação do HC e de seu impacto perturbador no ambiente de ensino e na pesquisa. Mas é a demanda da população que abastece o complexo com uma diversidade de diagnósticos e tratamentos que são uma matéria-prima fundamental para o ensino e a pesquisa. O prestígio da instituição vem de sua capacidade de fazer medicina de ponta, que é indissociável da pesquisa. Recentemente, a direção do hospital anunciou a decisão de rejeitar o atendimento de casos simples para investir na vocação original da instituição, que são os casos complexos. A medida, a rigor, já era realidade. O HC tem um telefone para marcar consultas, criado para evitar as filas. Na prática, funciona como uma peneira. Recebe 20 mil ligações por dia e agenda 200 consultas. “Sem dispersar esforços com casos sem gravidade, seremos capazes de fazer pesquisas de mais qualidade e melhorar o ensino”, afirma Giovanni Cerri, atual diretor da FMUSP. “A faculdade está muito bem quando é comparada a escolas do Brasil, mas, diante do desempenho de escolas de outros países, vemos que é possível melhorar”, diz.
É difícil mensurar o impacto que o movimento exagerado do HC tem na formação dos estudantes. “Nossos alunos são tão bons que superam quaisquer deficiências da instituição”, diz o professor Paulo Saldiva, coordenador do Laboratório de Poluição Atmosférica da FMUSP, um dos mais produtivos da instituição, com mais de 20 pesquisas publicadas por ano em revistas internacionais. O vestibular da FMUSP é concorridíssimo e seleciona a elite dos candidatos – a nota de corte do curso de medicina é a mais alta entre todas as carreiras. Depois vem a disputa pelas vagas na residência médica, que atrai os melhores alunos do país. Igualmente, é concorrido o ingresso nos programas de pós-graduação. “Podemos nos dar ao luxo de não absorver os pesquisadores que formamos, porque no ano que vem virá uma turma tão boa quanto a atual”, diz Saldiva.
Os pesquisadores da FMUSP gostariam que a instituição investisse mais nos laboratórios de investigação médica. Lembram que o SUS remunera o Hospital das Clínicas segundo uma tabela especial, pagando até 46% a mais a cada procedimento porque se trata de um instituição dedicada à pesquisa. “O hospital recebe do SUS 46% a mais por fazer pesquisa, mas reverte à pesquisa apenas 2%. Pode-se dizer que é pouco”, diz o professor Eduardo Massad. Mas mesmo a concessão dos atuais incentivos à pesquisa teve alguma oposição dos docentes que cultuam a tradição profissionalizante da instituição. Essa tensão é saudável. Ninguém duvida de que a grande vocação da FMUSP continuará sendo a de grande escola médica e a do HC, de importante pólo de assistência à população. Mas o prestígio do quadrilátero das avenidas dr. Arnaldo e dr. Enéas tem a muito a ver com a pesquisa produzida ali, com a capacidade que a instituição mantém de empurrar as fronteiras da medicina.
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