Imagine um mundo ideal em que resultados de pesquisa são divulgados de forma aberta e gratuita, sua relevância é discutida e avaliada de forma cooperativa por cientistas da mesma área e, ao final, o responsável pelo estudo escolhe o momento oportuno e a revista que julgue mais adequada para publicá-lo, sem precisar levar em conta idiossincrasias e prazos impostos por periódicos. Esse modelo, algo utópico, em que a difusão do conhecimento se baseia no trabalho coletivo de pesquisadores, está sendo proposto pelo consórcio cOAlition S, a mesma rede de agências de fomento e organizações filantrópicas de apoio à ciência que há cinco anos criou o Plano S, uma iniciativa liderada por organizações financiadoras de pesquisa que foi responsável por ampliar a quantidade de publicações científicas acessíveis a leitores sem a cobrança de taxas ou assinaturas.
“Nossa visão é de um sistema de comunicação acadêmica baseado na comunidade e adequado para a ciência aberta no século XXI. Esse sistema permite que os pesquisadores compartilhem o conjunto completo de seus resultados de pesquisa utilizando novos mecanismos de controle de qualidade e padrões de avaliação”, informa a proposta, intitulada “Rumo à publicação responsável”, que está aberta para sugestões até abril. O modelo combina uma série de ideias que já existem de forma isolada, como os repositórios de preprints, nos quais autores de diversos campos do conhecimento passaram a apresentar resultados de pesquisa ainda não revisados para análise de seus colegas, e de iniciativas de curadoria como a Peer Community In, organização sem fins lucrativos que oferece um processo editorial aberto, criando comunidades de pesquisadores que revisam e recomendam preprints em suas áreas. Outra plataforma que permite a revisão por pares aberta é a Open Research Europe, financiada pela União Europeia. Em iniciativas dessa natureza, as avaliações e ponderações feitas pelos pares são acessíveis aos leitores, os quais, na visão do cOAlition S, passariam a avaliar um manuscrito pela sua relevância e não pelo prestígio do periódico em que foi publicado. Os custos seriam compartilhados pelas mesmas instâncias que hoje patrocinam a publicação de artigos: universidades, governos, bibliotecas e agências de fomento. O papel dos editores de revistas científicas seria menos o de se preocupar com a qualidade de manuscritos, que já foi escrutinada previamente, e mais o de prover serviços de edição e composição dos manuscritos selecionados.
A proposta busca resgatar o espírito original do Plano S, que, em sua primeira versão, preconizava um modelo de comunicação científica mais aberto e descentralizado do que se tem hoje. A ideia inicial era de que apenas revistas integralmente de acesso aberto, aquelas que franqueiam seus artigos sem cobrar do público leitor, poderiam ser adotadas por autores financiados pelas agências signatárias – e se cogitou até mesmo patrocinar a criação de novos periódicos com essa abordagem. Mas o consórcio, hoje composto por 17 agências de financiamento à pesquisa de países europeus, além de nações como Canadá e Austrália, e instituições filantrópicas de apoio à ciência, como a Fundação Bill & Melinda Gates e o Wellcome Trust do Reino Unido, encontrou uma forte resistência de editoras, sociedades científicas, pesquisadores e também de governos nacionais. Estados Unidos e China, embora adotem políticas públicas de acesso aberto, não aderiram à coalizão, assim como nações da própria Europa, a exemplo de Alemanha e Suécia.
O modelo foi flexibilizado para ganhar aceitação. Entre os recuos, adiou-se sua implementação de 2020 para 2021 e se permitiu que autores patrocinados pelas agências do consórcio pudessem temporariamente publicar em periódicos híbridos, que seguem cobrando assinaturas mas aceitam liberar a divulgação de um artigo em acesso aberto em seus sites caso os autores do manuscrito paguem por isso. Uma crítica frequente a esse modelo é que ele é o pior dos mundos para países de renda média ou baixa, obrigados a pagar tanto para liberar o acesso a artigos específicos quanto para ter acesso via assinatura ao conteúdo completo dos periódicos híbridos – esses, por sua vez, alegam que essa é uma fase intermediária, mas não têm pressa em abreviá-la.
Só depois de obterem a garantia de que sua fonte habitual de financiamento – a cobrança de assinaturas – seria substituída por outra – as chamadas taxas de processamento de artigos (APC) –, mesmo as editoras mais refratárias toparam celebrar “acordos transformativos”. Por meio deles, os recursos que eram utilizados por uma instituição com o pagamento de assinaturas são transferidos para o pagamento de taxas de publicação de artigos de seus pesquisadores em revistas que se comprometem a ampliar progressivamente suas atividades em acesso aberto.
Julia Jabur
Dessa forma, o Plano S conseguiu avançar, mas gerou um efeito colateral perturbador: a consolidação de um esquema no qual periódicos passaram a exigir taxas às vezes exorbitantes dos autores dos artigos científicos a fim de disseminá-los em acesso aberto. O modelo que se tornou prevalente é o do chamado acesso aberto dourado, por meio do qual os artigos são disponibilizados gratuitamente na internet tão logo publicado, desde que o autor pague APC. Segundo um relatório da cOAlition S, dos 168 mil artigos científicos publicados em 2022 que foram financiados pelas instituições integrantes do consórcio, quase 133 mil eram de acesso aberto. Desses, aproximadamente 64 mil saíram em periódicos com acesso ouro, que cobram APC dos autores, enquanto 42 mil foram publicados em revistas híbridas. Só 23,5 mil estavam disponíveis no modelo verde, um tipo de acesso aberto baseado em autoarquivamento, em que os artigos permanecem fechados para assinantes nos sites das revistas, mas se permite que os autores postem on-line uma versão do artigo em suas páginas pessoais ou em repositórios públicos institucionais. Outros 3,4 mil artigos seguem o modelo bronze, em que os papers são disponibilizados em acesso aberto a critério da editora e sem licença de reuso. Nem a via verde nem a bronze são alternativas aceitas pelo cOAlition S.
Os valores de APC podem variar muito – não é incomum que uma revista de prestígio cobre entre US$ 3 mil e US$ 6 mil para publicar um artigo –, embora existam casos extremos. Há periódicos da coleção Nature em que o custo supera os US$ 11 mil. O crescimento desse esquema de financiamento gerou problemas graves para países de renda baixa e média, que não têm fôlego para negociar acordos vantajosos com editoras, nem dinheiro para pagar taxas muito caras. A FAPESP, por exemplo, patrocina a publicação de artigos de pesquisadores beneficiados com bolsas e projetos de pesquisa, mas estabeleceu um limite máximo de R$ 12 mil por artigo, o equivalente a US$ 2,4 mil. Valores superiores a este podem ser concedidos apenas em caráter excepcional e desde que bem justificados.
A distorção é admitida pelos líderes do consórcio. “Seria um fracasso da nossa parte se simplesmente substituíssemos um modelo em que as pessoas não podem ler um artigo porque isso tem um custo por outro em que autores não consigam publicar porque não podem pagar”, disse à revista Nature Robert Kiley, chefe de estratégia do cOAlition S. Acusado de agravar desigualdades, o consórcio lançou uma proposta para introduzir faixas variáveis de APC de acordo com a renda dos países dos autores. A ideia é instituir quatro faixas para países com diferentes níveis de renda.
A bioquímica Alicia Kowaltowski, pesquisadora do Instituto de Química da USP, uma estudiosa do acesso aberto, analisou a proposta e ficou preocupada. Ocorre que os países foram agrupados segundo um índice de paridade de preços aferido pelo Banco Mundial e os pesquisadores do Brasil seriam penalizados, pagando 10% a mais do que o valor atual de APC para ajudar a financiar nações mais pobres, que teriam descontos. “Argentina, Belize, Brasil e Costa Rica, que são economias de rendimento médio-alto com baixos investimentos em ciência e tecnologia, estão no mesmo grupo de economias de alto rendimento com investimentos científicos muito mais substanciais, como Itália, Portugal, Coreia do Sul e Espanha”, diz Kowaltowski, que escreveu um texto acerca da distorção na revista Times Higher Education em parceria com o físico Paulo Nussenzveig, da USP, e a cientista da computação Claudia Bauzer Medeiros, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). O trio de pesquisadores propõe que, em vez de descontos distorcidos, o consórcio adote critérios baseados em índices econômicos e de investimento científico mais realistas e impulsione de modo efetivo a comunicação por preprints.
Os preprints têm chance de ganhar mais espaço, pois são cada vez mais populares entre os pesquisadores e foram bem aceitos pelas editoras de revistas. Há outras ideias em debate. O linguista holandês Johan Rooryck, diretor-executivo do cOAlition S, expressou simpatia por um modelo disseminado no Brasil, o acesso aberto diamante ou platina. Ele envolve revistas integralmente de acesso aberto que não cobram APC dos autores e dependem de recursos de instituições e trabalho voluntário. Trata-se do conceito que inspirou a criação, em 1997, da biblioteca SciELO, plataforma que fornece infraestrutura para 300 periódicos do Brasil de acesso aberto e que tem sido financiada de modo quase exclusivo pela FAPESP.
Abel Packer, coordenador da SciELO, considera que há bastante espaço para ampliar o modelo diamante. Não prevê, entretanto, mudanças radicais. “O cOAlition S tem feito ações em ziguezague: queriam acesso aberto irrestrito, depois passaram a apostar em APC e agora falam em preprints e revistas diamante. Essa mudança, que é bem-vinda, requer uma discussão cuidadosa com a comunidade de pesquisa e implantação progressiva”, afirma. Ele observa que apenas algumas centenas de revistas no mundo adotam o modelo diamante e não haveria capacidade de produção de artigos de uma hora para outra. A cobrança de APC se tornou tão prevalente que até mesmo algumas revistas de acesso aberto da SciELO passaram a adotá-la recentemente. “Houve escassez de financiamento à ciência no Brasil nos últimos anos que também atingiu as revistas acadêmicas e alguns dos nossos periódicos sem fins lucrativos começaram a cobrar taxas de autores para financiar parte de seus custos.”
A proposta do cOAlition S está em consulta pública e não se tem ideia do que irá prevalecer em sua versão final. As editoras devem se opor à perda de protagonismo prevista, assim como resistiram ao primeiro desenho do Plano S. Um porta-voz da editora Wiley consultado pela revista Nature disse que o documento apresentado pelo consórcio tem “uma perspectiva interessante” e concorda que os pesquisadores devem ser capazes de escolher as revistas mais apropriadas para publicar seu trabalho, mas ressalvou: “Os editores têm um papel crucial a desempenhar na melhoria global do ecossistema de pesquisa”. O avanço vai depender do grau de consenso e adesão a modelos que estão em discussão.
Um aspecto que pode ser decisivo é o caminho a ser trilhado nos Estados Unidos. O presidente Joe Biden instruiu todas as agências de fomento à pesquisa do país a exigirem acesso aberto a pesquisas financiadas pelo governo federal após sua publicação a partir de 2026, mas ainda não definiu qual modelo vai vigorar. A revista Science, que é mantida pela Associação Americana para o Avanço da Ciência, anunciou que não irá se tornar uma publicação de acesso aberto pela via dourada, mas permitirá que os autores arquivem uma cópia de seus artigos em repositórios públicos, tornando-os disponíveis para quem quiser ler. “É um caminho que pode ser promissor, porque é ao mesmo tempo inclusivo e não altera a estrutura das revistas”, considera Alicia Kowaltowski.
A cobrança de taxas de processamento de artigos (APC) consideradas exageradas vem criando conflitos entre empresas de comunicação científica e profissionais que atuam como editores e revisores de suas revistas. O site Retraction Watch, que reúne notícias e dados sobre artigos retratados, recentemente passou a compilar uma lista de periódicos que perderam um ou mais membros de seu corpo editorial por conta de desavenças. Dos 26 casos registrados desde 2015, sete foram motivados por divergência em relação à cobrança de taxas de processamento de artigos. Em julho de 2023, mais de 40 membros do corpo editorial da revista Critical Public Health renunciaram alegando sobrecarga de trabalho e discordância com a APC cobrada pela editora Taylor & Francis, que é de £ 2.700 por artigo, o equivalente a R$ 16,9 mil. “O custo é impossível para países menos favorecidos”, informou a carta de renúncia. Outro caso rumoroso ocorreu em agosto de 2023, quando dois terços dos editores associados do Journal of Biogeography renunciaram em meio a uma briga com a editora Wiley.
Eles consideraram exorbitante a cobrança de taxas de US$ 4,8 mil (R$ 23,7 mil) para publicar um artigo em acesso aberto. Em abril, 42 editores de duas revistas científicas na área de neurociências renunciaram em protesto contra as taxas cobradas pela editora Elsevier para publicação de papers em acesso aberto. Enquanto a APC da revista NeuroImage: Reports era de U$$ 1.800 (R$ 8,9 mil), a da NeuroImage alcançava US$ 3.450 (R$ 17 mil).