À primeira vista, as matérias-primas utilizadas por um grupo de pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) não poderiam ser mais prosaicas. São ferritas, basicamente o mesmo tipo de composto metálico presente nos ímãs e usado há milênios pela humanidade. Há, no entanto, uma diferença fundamental. A pesquisadora Nelcy Della Santina Mohallem e seus colegas do Departamento de Química estão usando esses velhos conhecidos, mas em escala nanométrica, medida equivalente a 1 milímetro dividido por 1 milhão de vezes. Nesse tamanho, as ferritas podem gerar materiais e dispositivos inovadores em campos tão diversos como a eletrônica, a química industrial e a medicina.
Nelcy explica que o principal interesse dos pesquisadores ao manipular as ferritas – óxidos de ferro que também podem incluir outros metais, como zinco, níquel e cobalto, em sua composição – se deve à rapidez da resposta das suas propriedades magnéticas. É por isso que, há várias décadas, os ímãs são muito utilizados em motores, sistemas de radar e de telecomunicações. “Ao longo do tempo, o tamanho dos dispositivos foi diminuindo,” conta a pesquisadora. No entanto, abaixo de um certo limite, a utilização das ferritas começa a enfrentar problemas devido à sua resistência elétrica, que limita uma maior miniaturização de equipamentos eletrônicos. É aí que entra a nanotecnologia.
Nelcy e colegas como Juliana Batista da Silva, do Centro de Desenvolvimento de Tecnologia Nuclear (CDTN), de Belo Horizonte, e Miguel Novak, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com suporte do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), em Campinas, estão desenvolvendo nanocompósitos que são materiais híbridos, com tamanho variando entre 5 e 100 nanômetros. Eles combinam um “núcleo” de ferrita com uma matriz inerte, que pode ser composta de sílica ou alumina, por exemplo. A matriz, chamada de densa pelos pesquisadores, cria vários nanoímãs separados. “Dessa forma, é possível eliminar a interferência e as perdas e aumentar a resistência elétrica, além de produzir um acoplamento entre as nanopartículas vizinhas, criando melhores propriedades magnéticas,” explica a pesquisadora.
Memória turbinada
Uma das aplicações promissoras desse tipo de nanopartícula é o disco rígido dos computadores: usar unidades nanométricas para armazenar informação em forma magnética aumenta o potencial de miniaturização dos computadores, e o material também poderia turbinar a rapidez com que a memória é acessada. Nesse caso, o nanocompósito estaria disposto em forma de filme ou película. “Nós também somos capazes de moldar a microestrutura desses compósitos em peças de alguns milímetros, conforme a necessidade de cada aparelho,” diz Nelcy. É uma vantagem quando se considera que hoje a maioria desses compósitos só existe em forma de pó.
Alterações na estrutura da matriz permitem que os nanocompósitos sejam utilizados para um fim completamente diferente: facilitar reações químicas. Esse é o papel dos chamados catalisadores, e a escala nanométrica, mais uma vez, ajuda a tornar esse trabalho mais eficiente. Para fins de catálise, a equipe da UFMG montou as nanopartículas de ferrita dentro de uma matriz extremamente porosa, e não densa como no caso dos discos de computadores. “Poderíamos dizer que 95% da matriz é ar,” afirma Nelcy. Isso significa que as partículas ganham um volume proporcionalmente muito grande. A superfície de contato que esse volume expandido proporciona faz com que elas promovam reações químicas com maior eficiência. “Usando muito menos material do que usaria normalmente, é possível manter e até aumentar a velocidade das reações químicas catalisadas pelo nanocompósito,” explica a pesquisadora.
Contra o câncer
Outra das idéias do grupo envolve um ambiente ainda mais delicado que o interior dos computadores ou a química industrial: o corpo humano. Assim como outros pesquisadores no Brasil e no exterior, Nelcy e seus colegas estão explorando a possibilidade de que nanoímãs ataquem doenças como câncer e infecções. Funcionaria assim: partículas magnéticas em forma de fluido, envoltas por um material biocompatível, seriam injetadas na corrente sangüínea do doente.
No caso de um tumor, por exemplo, haveria dois modos de levar os ímãs nanoscópicos a seu destino. Um campo magnético poderia conduzi-los “manualmente” até o tecido afetado pelo câncer, ou a eles seriam acoplados anticorpos específicos para o tipo de tumor que se deseja atacar, de forma que os nanoímãs aderissem ao tecido doente. Terminada essa fase do processo, a idéia é aplicar de forma rápida e alternada o campo magnético externo. O movimento das partículas geraria calor suficiente para matar as células cancerígenas. Outros trabalhos do grupo sugerem que um sistema como esse seria particularmente útil para tratar tumores em fase inicial, ainda pequenos.
A cobertura dos nanoímãs para torná-los biocompatíveis é feita com um tipo de açúcar chamado de ciclodextrina. Essa composição foi desenvolvida junto com o professor Rubén Sinisterra, do mesmo Departamento de Química da UFMG, dando origem a uma patente. “Temos o material muito bem caracterizado quimicamente,” diz Nelcy. A intenção agora é fazer parcerias que permitam, no âmbito científico, testar o produto em seres vivos.
Segundo Nelcy, é grande a corrida no mundo todo para transformar materiais como esses nanocompósitos em componentes de equipamentos usados no dia-a-dia. Governos como os dos Estados Unidos reconhecem que o potencial deles é estratégico.
“As nossas propostas não ficam nada a dever ao que é feito fora do Brasil. Quando as apresentamos em congressos científicos, é comum o pessoal ficar impressionado,” diz a pesquisadora da UFMG. “Mas, com os problemas de financiamento que enfrentamos, muitas vezes acabamos não sendo os primeiros a publicar em revistas científicas.” Ela cita o interesse, ainda um tanto incipiente, de empresas brasileiras pela incorporação de algum componente nanotecnológico em seus produtos e sugere que elas poderiam ser mais ousadas. “Eles estão interessados em coisas que fazíamos há dez anos, e não na nanotecnologia de ponta,” relata.
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