À beira do rio Pinheiros, que cruza a cidade de São Paulo e é tão poluído que mal merece ser chamado de rio, uma família de capivaras descansava num final de tarde de dezembro. Eram quatro adultos e três filhotes, separados por uma mureta do tráfego intenso de carros e caminhões na marginal. A presença de capivaras ali pode ser resultado do aumento da população desses roedores, os maiores do mundo, que, segundo Marcelo Labruna, da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo (USP), estão por trás do reaparecimento no estado de São Paulo da febre maculosa, causada pela bactéria Rickettsia rickettsii. Foi essa doença que em dezembro matou o sul-africano William Charles Erasmus, no Rio de Janeiro, sem que médicos tivessem descoberto o que estava causando febre, dor de cabeça, dor no corpo e prostração no paciente. A bactéria do gênero Rickettsia, provavelmente adquirida ainda na África, só foi identificada após sua morte por análise genética feita no Instituto Oswaldo Cruz. Segundo Labruna, os laboratórios clínicos brasileiros não estão equipados para detectar a bactéria, que além disso nunca é a primeira suspeita dos médicos.
No Brasil, a principal espécie de bactéria por trás da febre maculosa é a Rickettsia rickettsii, a mais agressiva do tipo, que chega a causar a morte de 40% das pessoas infectadas. Só não é um problema mais sério de saúde pública porque a doença é relativamente rara, mas o aumento do número de casos preocupa. Depois de relatos da doença entre os anos 1920 e 1940, em que a letalidade atingiu 80% em São Paulo e Minas Gerais, se passaram três décadas em que a doença quase desapareceu. Mas entre 1988 e 1997 foram confirmados 25 casos em seis municípios de São Paulo, e entre 1998 e 2007 esse número aumentou dez vezes, chegando a 255 casos em 54 municípios. Esse crescimento se explica em parte porque em 2001 a Secretaria da Saúde tornou obrigatória a notificação de diagnósticos de febre maculosa, mas, para o veterinário da USP, mudanças ambientais têm grande peso para a disseminação da doença. Entre as alterações, as mais importantes são as que propiciam o crescimento da população de capivaras (Hydrochoerus hydrochaeris), que nos anos 1950 eram vistas como ameaçadas de extinção no estado de São Paulo e hoje são cada vez mais abundantes.
O reservatório principal da bactéria é o carrapato-estrela, Amblyomma cajennense, muito comum em áreas de vegetação pouco densa, como o Cerrado e florestas de galeria, ao longo de rios. É o carrapato que mais ataca pessoas no Sudeste brasileiro. No caso do micuim, o estágio inicial de vida do carrapato, até centenas deles se espalham como uma nuvem de poeira pelo corpo de quem tiver o azar de esbarrar numa folha repleta desses animais. As picadas causam uma coceira terrível, mas raramente transmitem a doença, embora carrapatos já nasçam com a bactéria se a mãe estiver infectada. “Sempre que vamos a campo somos picados, e até agora ninguém pegou a doença”, conta Labruna. Isso porque o carrapato-estrela não é muito suscetível à bactéria, e como carrapatos infectados vivem e se reproduzem menos, ela só se mantém no ambiente se houver animais maiores que sirvam como hospedeiros.
Em artigo a ser publicado na revista Annals of the New York Academy of Sciences, Labruna expõe os quesitos para que um vertebrado sirva como amplificador da população de Rickettsia: viver no mesmo ambiente que a bactéria, atrair carrapatos, ser suscetível à infecção, mantê-la por tempo suficiente para infectar carrapatos e se reproduzir bastante para que haja sempre animais sem imunidade. E quem reúne todas essas características são as capivaras: em colaboração com pesquisadores da Superintendência de Controle de Endemias (Sucen), o grupo de Labruna mostra, em artigo aceito para publicação na Veterinary Parasitology, que a infecção pela bactéria da febre maculosa em capivaras dura por volta de dez dias. Um experimento com quatro capivaras infectadas em laboratório mostrou que, durante esse período, elas podem transmitir a bactéria a entre 20% e 35% dos carrapatos que se alimentam de seu sangue, um nível de contágio muito mais alto do que o observado em outros estudos.
A explosão populacional das capivaras, segundo Labruna, se deve sobretudo ao reflorestamento das matas que margeiam os cursos d’água e à expansão do cultivo de cana-de-açúcar no estado, além das restrições à caça. “Elas se abrigam na mata, que é também o hábitat dos carrapatos, e se alimentam da cana”, explica. Como nessa região não tem predadores – onças, sucuris e jacarés –, não é à toa que junto aos extensos canaviais que ocupam o interior de São Paulo a densidade populacional de capivaras é 60 vezes maior do que no ambiente natural do grande roedor, como o Pantanal.
Churrascos de capivara, no entanto, não seriam a saída mais adequada – e legal – para controlar a disseminação da febre maculosa. “Como outros roedores, capivaras se reproduzem enquanto o ambiente tiver capacidade de sustentá-las”, explica Labruna. Assim, se alguém matar metade de uma população, as fêmeas simplesmente terão mais filhotes. Um prato cheio para a febre maculosa, pois os filhotes não têm defesas contra a bactéria. Para o pesquisador, a única maneira imediata de reduzir o risco de transmissão da doença seria limitar o acesso das capivaras à comida, por exemplo erguendo cercas entre os canaviais e a mata ciliar, o que impediria o acesso à farta plantação. Além de a população permanecer pequena com menos alimento, limites à circulação reduziriam as chances de pessoas serem infectadas.
Labruna mostrou também, em artigo disponível no site da Vector-Borne and Zoonotic Diseases, que um animal mais comum em áreas urbanas – o gambá Didelphis aurita – também é hospedeiro amplificador da bactéria. Em um experimento, sua equipe viu que os gambás ficam doentes por um tempo mais longo do que as outras espécies que desenvolvem a doença – entre três e quatro semanas – e infectaram entre 5% e 20% dos carrapatos durante esse período.
Em casa
Mesmo que uma pessoa não chegue perto de uma capivara ou de um gambá, pode ser indiretamente infectada por eles se encontrar um carrapato portador da bactéria. E nem é preciso passear no mato. “Pessoas de idade que nunca saem de casa podem pegar a doença se tiverem um cachorro que passeie pelo mato e volte com carrapatos”, conta Labruna. Daí a importância de evitar infestações de carrapatos nos cães que, segundo artigo que será publicado na Emerging Infectious Diseases, também desenvolvem febre maculosa. Os sintomas são febre, falta de apetite e prostração, os mesmos causados pela bactéria Ehrlichia canis, que os carrapatos transmitem mais frequentemente aos cachorros. Os dois cães com febre maculosa diagnosticada na USP foram levados a um veterinário na região dos Jardins, bairro de classe média alta de São Paulo, para retirar os carrapatos – lembrança de uma viagem a Itu, no interior do estado. Quando a febre começou, o veterinário, que se formara na USP, desconfiou e mandou amostras de sangue para Labruna, conhecido na Faculdade de Veterinária como “Marcelo dos carrapatos”. Era Rickettsia. “É possível que a doença seja mais comum em cães do que se supõe”, pondera o pesquisador, “e seja confundida com a erliquiose, já que os laboratórios não têm como detectar”.
A descoberta tem ainda mais peso diante de outro achado de Labruna: o carrapato-amarelo-do-cão (Amblyomma aureolatum), frequente em cachorros, é na verdade mais suscetível a contrair Rickettsia do que o carrapato-estrela. Em experimento descrito em novembro no Journal of Medical Entomology, o grupo da USP grudou pequenas câmaras cheias de carrapatos em cobaias infectadas com febre maculosa e verificou que, enquanto entre 10% e 60% dos carrapatos-estrela contraíram a bactéria, de 80% a 100% dos carrapatos-amarelos foram infectados. “Na Região Metropolitana de São Paulo, os carrapatos-amarelos são os maiores responsáveis por transmitir a doença a seres humanos.” Só não é mais grave porque esses carrapatos não têm grande apreço por pessoas.
Além disso, no Brasil o carrapato Rhipicephalus sanguineus, também comum em cães, pode estar no mapa da epidemiologia da febre maculosa. O risco seria grande, porque o ciclo de vida desses carrapatos é mais próximo das pessoas: passam a vida toda em cachorros e, na fase livre, podem aparecer andando pelas paredes e cercas das casas. Os resultados estão em artigo no site da Vector-Borne and Zoonotic Diseases. Em 2005, o grupo coletou 481 carrapatos de cachorros da comunidade Recreio da Borda do Campo no município de Santo André, Região Metropolitana de São Paulo, e verificou que 1,3% deles continha R. rickettsii, o mesmo nível de infecção que outros estudos tinham encontrado no carrapato-estrela.
Os veterinários da USP têm ampliado também a busca por outros agentes da doença. A bactéria Rickettsia parkeri, por exemplo, causa uma versão mais branda de febre maculosa e é possível que escape ao diagnóstico. Com análises genéticas, recentemente descobriram outra espécie de Rickettsia, que apresentaram em setembro na Conferência Internacional sobre Carrapatos e Patógenos Transmitidos por Carrapatos, na Argentina. É Rickettsia monteiroi, batizada em homenagem a José Lemos Monteiro, pesquisador do Instituto Butantan que morreu de febre maculosa quando trabalhava no desenvolvimento de uma vacina contra a doença em 1935. Na última década, relatos da doença vêm de todos os estados da Região Sudeste. Em Santa Catarina também parece haver febre maculosa, mas uma versão mais branda, que não leva à morte – provavelmente outra espécie de Rickettsia. Para Labruna, é preciso entender melhor a ecologia da bactéria para fazer frente à doença. Enquanto isso, o jeito é catar carrapatos depois de passeios silvestres e não economizar nos carrapaticidas para cães.
O projeto
Avaliação do papel das capivaras, gambás e cães domésticos na epidemiologia da febre maculosa brasileira (nº 06/50918-0); Modalidade Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa; Coordenador
Marcelo Bahia Labruna – FMVZ-USP; Investimento R$ 135.809,00 (FAPESP)
Artigos científicos
LABRUNA, M.B. Ecology of Rickettsia in South America. Annals of the New York Academy of Sciences. No prelo.
SOUZA, C.E. et al. Experimental infection of capybaras by Rickettsia rickettsii and evaluation of the transmission of the infection to ticks Amblyomma cajennense. Veterinary Parasitology. No prelo.
3. Vector-Borne and Zoonotic Diseases: http://www.liebertonline.com/vbz