Quatro grandes empresas do setor nacional de cosméticos se uniram para desenvolver em conjunto uma tecnologia de interesse comum, que poderá dar mais competitividade às parti-cipantes do projeto. Realizado em parceria com o Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo (IPT), o projeto cooperativo contou com as empresas Grupo Boticário, Natura, Theraskin e Yamá e levou à criação de dois novos métodos de nanoencapsulação de princípios ativos de cosméticos. Sob a coordenação do IPT, o grupo, ao longo de dois anos, investiu R$ 2,4 milhões, divididos em três partes iguais de R$ 800 mil entre o instituto (que contabiliza o uso dos laboratórios e o pessoal envolvido), as quatro indústrias (que gastaram R$ 200 mil cada uma) e a Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial (Embrapii), organização social mantida pelos ministérios da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e da Educação (MEC).
O resultado final foi uma plataforma tecnológica que está disponível para as empresas participantes do projeto. Durante os estudos, cada empresa colaborou na pesquisa e aprimorou seus conhecimentos nessa área. Por serem concorrentes, nenhuma delas sabia o que as outras iriam colocar dentro das nanocápsulas. O que cada empresa pretende usar foi tratado apenas com a equipe do IPT, sob contrato de sigilo. A ideia do projeto surgiu em 2012, quando o IPT propôs ao Instituto de Tecnologia e Estudos de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos (Itehpec), braço tecnológico virtual da Associação Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos (Abihpec), que congrega cerca de 380 empresas, identificar entre os associados quais eram as principais demandas do setor na área de desenvolvimento de novas tecnologias.
“Apresentamos nossas linhas de pesquisa e enviamos um questionário para as empresas em que procurávamos saber quais eram as demandas”, conta a farmacêutica Natália Cerize, do Laboratório de Biotecnologia Industrial do Núcleo de Bionanomanufatura do IPT, coordenadora do projeto. “Constatamos que a maior demanda era na área de nanoencapsulação de cosméticos. No começo, 11 indústrias demonstraram interesse, número que depois se reduziu para nove e no fim chegou a quatro. Desenhamos então o projeto e assinamos o contrato em julho de 2013, para um trabalho de 21 meses”, conta Natália. Em 2015, o mercado brasileiro foi o quarto do mundo com faturamento de R$ 42 bilhões, atrás dos Estados Unidos, China e Japão.
No projeto, foram desenvolvidos dois tipos de nanocápsulas ou nanoesferas. A primeira imita uma célula e a outra é maciça, como uma bola de bilhar. Elas têm tamanhos entre 100 nanômetros (nm) e 600 nm (1 nanômetro é a milionésima parte de 1 milímetro). Ambas são feitas de um tipo não revelado de polímero. Na primeira, a substância ativa do cosmético é protegida por uma membrana e na segunda ela é misturada e distribuída por toda a massa da nanoesfera. Entre as vantagens dessa tecnologia estão a proteção do princípio ativo para evitar sua degradação durante a aplicação e a liberação controlada apenas nas camadas mais profundas da pele. “O material poderá ser liberado mais rápido ou mais devagar, conforme o efeito do cosmético que se quer obter”, explica Natália. A técnica possibilita ainda a absorção cutânea mais direta e a ação mais localizada e duradoura dos compostos.
Concepções diferentes
A encapsulação já é conhecida e usada por algumas empresas de produtos de beleza e higiene e de remédios no exterior, como as francesas Anna Pegova, Chanel e L’Oréal. No caso da tecnologia desenvolvida pelo IPT e pelas quatro empresas, a novidade está na concepção de uma plataforma para diferentes princípios ativos, o que gerou quatro depósitos de patentes. “Determinamos o melhor tamanho de partícula, pH, viscosidade, teor de sólidos e estabilidade físico-química para cada ativo”, explica Natália. De acordo com ela, as técnicas de nanoencapsulação são inspiradas nas células dos seres vivos. “Elas são basicamente compostas por uma membrana, que protege o núcleo e as organelas internas”, diz. “Mas essa membrana tem também outras funções. Ela modula a atividade celular, permitindo, de forma seletiva, que substâncias entrem ou saiam das células.”
Além dos avanços tecnológicos, chama a atenção o fato de empresas concorrentes se unirem em torno de um mesmo objetivo, algo incomum no Brasil. “Nesse trabalho todos cooperam para conseguir fazer algo maior e melhor do que seria possível se fosse cada um por si.” Segundo Natália, a tecnologia desenvolvida não será empregada apenas para aqueles princípios ativos específicos testados durante a pesquisa, mas também para novos produtos que possam vir a ser desenvolvidos por cada uma das empresas.
“Para produtos cada vez mais complexos é fundamental que, na fase de pesquisa e desenvolvimento [P&D] pré-competitiva, empresas se associem, inclusive concorrentes, para dividirem os custos e também os riscos do desenvolvimento tecnológico de baixa maturidade”, avalia Humberto Pereira, vice-presidente da Associação Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento das Empresas Inovadoras (Anpei). “A parceria tecnológica entre concorrentes é bem difundida nos Estados Unidos, como o programa NextGen, para modernização do controle aéreo, e na União Europeia, o Programa-Quadro, também em parceria, que abrange áreas como saúde, nanotecnologia e transportes, entre outros.”
A professora Rosiléia das Mercês Milagres, da Fundação Dom Cabral, em Nova Lima (MG), lembra de um exemplo importante de empresas concorrentes participando de um projeto cooperativo. “O projeto Genolyptus [Rede Brasileira de Pesquisa do Genoma de Eucalyptus], que realizou o mapeamento genético do eucalipto entre 2002 e 2008, contou com 12 empresas florestais, como Klabin Suzano, e Votorantim, sete universidades e a Embrapa”, diz Rosiléia. Entre as vantagens desses agrupamentos estão a redução de riscos e o compartilhamento dos benefícios com menor custo. “Os projetos cooperativos produzem trabalhos com qualidade e valor numa velocidade impressionante”, diz o engenheiro agrônomo Jefferson Luís da Silva Costa, pesquisador e assessor da Diretoria de Pesquisa e Desenvolvimento da Embrapa em Brasília.
Conhecimento e capacitação
Na primeira fase do projeto foram desenvolvidas as duas plataformas de nanoencapsulação. Nessa etapa, chamada de pré-competitiva, houve atividades conjuntas entre os pesquisadores do IPT e as equipes técnicas das empresas. Participaram diretamente das atividades 10 pessoas do instituto e 23 das parceiras e do Itehpec. O avanço das pesquisas e o conhecimento gerado foram compartilhados por meio de seis reuniões coletivas e dois cursos realizados no IPT, contemplando teoria e prática. Aconteceram, ainda, mais de 30 encontros individuais (do pessoal do IPT com os representantes de cada uma das empresas) e cerca de 500 horas, em várias atividades, de capacitação dos profissionais das indústrias. A segunda fase foi individual e sigilosa entre o IPT e cada uma das parceiras, que trabalharam com seus princípios ativos de interesse, em busca de solução sob medida para sua linha de produtos. Foram assinadas cláusulas de confidencialidade para garantir o segredo industrial.
A experiência foi positiva. “O modelo de trabalho do projeto despertou muito interesse, porque foi usada uma metodologia que, além de propiciar o desenvolvimento tecnológico, poderá trazer também vantagens competitivas e econômicas”, diz Deli Brito de Oliveira, gerente de Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação da Theraskin Farmacêutica. “O profissionalismo pautou as discussões e possibilitou o êxito, proporcionando ganhos de todos os lados. Tivemos a oportunidade de conhecer e internalizar uma nova cultura de inovação e tecnologia.”
Para o gerente de Pesquisa Tecnológica do Grupo Boticário, Gustavo Dieamant, o modelo de projeto cooperativo é muito bom para incentivar pesquisas aplicadas que necessitam de grande investimento. “Cada uma contribuiu com seu conhecimento e isso proporcionou resultados rápidos e efetivos. Apostamos em novos modelos colaborativos com divisão de recursos financeiros, econômicos e riscos”, diz Dieamant.
Fabio Yamamora, diretor técnico da Yamá, conta que a participação da empresa no projeto foi uma decisão estratégica tomada para atender o mercado de cosméticos que é também muito desafiador. “A cada três meses havia uma reunião geral em que se fazia o alinhamento do conhecimento gerado das rotas de encapsulação, porém sem dar detalhes dos ativos escolhidos por cada uma”, conta Yamamora. Para Luciana Hashiba, gerente de Inovação da Natura, o ganho maior foi a parceria com o IPT, que fez a interface com cada indústria e desenvolveu a tecnologia. “Depois cada uma deu continuidade ao desenvolvimento da metodologia”, explica.
No caso da Natura, Luciana diz ainda que a nanotecnologia é fundamental para entregar ao consumidor um cosmético diferente no aspecto sensorial, com resultados de tratamento e proteção da pele cada vez mais efetivos, além de produtos seguros para o uso que permitem a liberação de ingredientes ativos de forma mais controlada. “Na nossa organização, a inovação nasce principalmente de diferentes formas de colaboração”, explica Luciana. “A inovação aberta, como neste caso do trabalho com o IPT, tem grande potencial para alavancar resultados para nós e para a rede envolvida em projetos desse tipo.”
Domínio da tecnologia
Em relação à tecnologia propriamente dita, Luciana diz que a Natura espera incorporá-la caso ela se mostre viável nas etapas subsequentes ao desenvolvimento de novos cosméticos. “Ainda precisamos realizar diversos processos e metodologias voltados a sua segurança e eficácia, como fazemos com todos os nossos produtos”, explica. “Se tudo correr bem, a inovação será algo de impacto para nossa linha.”
A Yamá também pretende usar a metodologia como base para o desenvolvimento futuro de outros ativos nanoencapsulados. “Esperamos obter melhoria da qualidade do processo de fabricação, redução da irritabilidade de alguns ativos e aumento da compatibilidade entre matérias-primas”, enumera Yamamora.
Simone Tiossi, diretora de Operações e Inovação da Theraskin, diz que a introdução da nanotecnologia na empresa trará grandes benefícios, porque poderá estendê-la a outras linhas de produtos
e também conduzir novos desenvolvimentos depois da tecnologia implementada. “Esse projeto foi o primeiro passo para a construção do conhecimento necessário para o domínio da tecnologia, que tem sido bastante difundida mundo afora, proporcionando soluções de problemas anteriormente não vislumbradas”, explica Simone. Os resultados do trabalho com o IPT são considerados igualmente promissores pelo Grupo Boticário.
“O próximo passo será realizar um estudo de escalonamento da metodologia, bem como estudos in vitro e clínicos para garantirmos sua segurança e eficácia”, informa Dieamant. “Até aqui o projeto foi conduzido em escala de bancada. Agora nós, o Itehpec e as quatro empresas estamos avaliando a possibilidade de continuação de uma nova fase do projeto para trabalhar o escalonamento de produção dos encapsulados de interesse dentro da realidade de produção de cada uma”, diz Natália, do IPT.
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