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Física

No cerne do átomo

Experimentos aprofundam o conhecimento sobre a estrutura da matéria

EDUARDO CESARRibras: equipamento único no Hemisfério Sul ajuda a entender as reações ocorridas há bilhões de anos nas estrelas supernovasEDUARDO CESAR

Foi uma aposta de alto risco. A máquina capaz de produzir núcleos atômicos exóticos – partículas instáveis, que duram apenas 1 segundo e não existem na natureza – ainda não havia sido testada. Os pesquisadores do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (IF-USP) não tinham certeza de que funcionaria. Mesmo apreensivos, sentindo um frio na barriga, decidiram manter a data de estréia, 2 de fevereiro. Era o início da 13ª Escola de Verão de Física Nuclear Experimental e, na platéia, havia 50 estudantes de pós-graduação de nove estados do Brasil, da Argentina, Colômbia e Cuba. “Os alunos sabiam que aquela era a primeira vez que a máquina iria funcionar e estavam tão curiosos quanto nós”, conta Alinka Lépine-Szily, uma das responsáveis pelo projeto.

Foram algumas horas checando os componentes da máquina de 7 metros de comprimento, cujas estruturas principais – dois grandes cilindros horizontais – lembram vagões de um trem. E alguns longos segundos até os computadores registrarem as primeiras informações sobre os núcleos exóticos gerados ali dentro. Funcionou!, comemoraram os pesquisadores. A tensão deu lugar à satisfação. Os resultados obtidos devem ajudar a compreender com mais detalhes como surgiram os elementos químicos tanto no início do universo, minutos após o Big Bang, quanto nas explosões de estrelas supernovas, 1 bilhão de anos depois. Cada explosão de uma estrela gera milhares de núcleos exóticos, que atuam como faíscas e induzem à formação de todos elementos químicos estáveis conhecidos.

O novo equipamento, chamado de Projeto Ribras (na sigla em inglês), ou Feixes de Íons Radioativos, no Brasil, é único no Hemisfério Sul – há outro, bastante semelhante, na Universidade de Notre Dame, nos Estados Unidos, construído há cerca de dez anos. Instalado em um enorme galpão blindado, o Ribrasestá acoplado ao acelerador de partículas instalado no instituto há cerca de 30 anos. No experimento do início de fevereiro, o acelerador gerou um feixe estável de lítio 7, um elemento químico natural, que se chocou contra um alvo fixo de berílio 9, também estável.

A reação nuclear produziu uma série de partículas, estáveis e instáveis, que continuaram se propagando. A exceção ficou por conta do próprio lítio 7, que, por ser o feixe primário de partículas, foi bloqueado por um anteparo, chamado Copo de Faraday, colocado à sua frente. As outras partículas produzidas na colisão inicial, antes do lítio parar no Copo de Faraday, por causa de suas direções divergentes do feixe principal, escaparam desse bloqueio e entraram nos solenóides – bobinas com 1 metro de comprimento, localizadas dentro dos cilindros e imersas em hélio líquido. Os solenóides produzem um campo magnético bastante intenso, por meio do qual é possível selecionar os núcleos exóticos, que são identificados no detector final, um cristal de silício com 2 centímetros de diâmetro.

Na experiência de estréia, os pesquisadores do Instituto de Física da USP produziram aproximadamente 10 mil partículas por segundo de hélio 6 – um núcleo exótico, com dois prótons e quatro nêutrons (o hélio normal tem dois prótons e dois nêutrons). Segundo Alinka, os dois nêutrons extras ficavam distantes do núcleo, formando um halo, uma espécie de anel que determina um raio atômico muito maior que no hélio comum.

Exóticos e rebeldes
Essa peculiaridade chamou a atenção: núcleos estáveis, mesmo de elementos químicos diferentes, têm a mesma densidade no centro, uma superfície pouco difusa e contornos bem definidos. O hélio 6 apresentava uma extensa região – compreendida entre o núcleo e o anel -, na qual a densidade média era bastante baixa, além de uma superfície não definida. “Com os núcleos exóticos, ocorrem situações que não se manifestam nos estáveis. Nossos estudos poderão confirmar a idéia de que é possível encontrar matéria nuclear com densidades diferentes”, afirma Rubens Lichtenthaler Filho, membro da equipe do Ribras. “Poderemos ajudar a reformular e a aperfeiçoar antigos modelos sobre o núcleo atômico”, completa.

No laboratório, a partir dos dados obtidos, o grupo de físicos procura detalhar a formação de elementos químicos no interior das estrelas. Foi nesse momento que, a partir dos gases leves – hidrogênio, hélio e lítio -, instáveis e estáveis, começaram a se formar elementos mais pesados, como carbono, oxigênio e nitrogênio. É como se os pesquisadores estivessem subindo uma escada cuja base é formada pelos elementos químicos primordiais e o topo, pelos derivados mais complexos.

Apenas um segundo
Cada degrau que se avança faz surgir uma nova combinação de elementos que, aos poucos, torna mais nítido o complexo cenário do universo. Curiosamente, os físicos têm de ser bastante rápidos para entenderem o que se passou há bilhões de anos: o tempo de vida das partículas exóticas geradas em laboratório é muito curto – apenas um segundo. Mas eles não se preocupam. “Nesse caso, é muito tempo, mais do que suficiente para que todas as informações cheguem ao computador e sejam analisadas”, garante Valdir Guimarães, pesquisador do projeto.

A idéia de construir o Ribras nasceu em julho de 1995, quando o físico teórico Mahir Saleh Hussein regressou de uma temporada de um ano e meio no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) e na Universidade Harvard,nos Estados Unidos. Convicto de que o Brasil poderia ocupar lugar de destaque nos estudos sobre núcleos exóticos, Hussein organizou um encontro na USP que, em fevereiro de 1997, reuniu algumas das maiores autoridades científicas da área, como Richard Casten, da Universidade Yale, James Kolata, da Universidade de Notre Dame, ambas dos Estados Unidos, e Antonio Villari, físico brasileiro que trabalha no Grande Acelerador Nacional de Íons Pesados (Ganil), da França.

Feito com a ajuda desses especialistas, o projeto brasileiro, então sob a responsabilidade de Hussein, foi aprovado ainda em 1997. Os solenóides, que formam o coração do equipamento, chegaram só cinco anos depois, em abril de 2002, vindos dos Estados Unidos. Como a montagem só terminou em dezembro de 2003, não houve tempo de testar a máquina antes da Escola de Verão. “Resolvemos correr o risco e realizar o primeiro experimento científico como ele ocorre na vida real, sujeito a acertos e erros”, reforça Lichtenthaler.

Ainda durante a Escola de Verão, que durou duas semanas, de 2 a 14 de fevereiro, a equipe da USP provocou a colisão entre o lítio 8, exótico, e o vanádio 51, estável, com o propósito de analisar um fenômeno chamado espalhamento elástico. Trata-se de um tipo de choque entre partículas sem perda de energia, já conhecido com os núcleos estáveis. Com o Ribras, do mesmo modo que está sendo feito em equipamentos similares nos Estados Unidos e na França, pretende-se observar melhor detalhes do núcleo exótico – se é compacto ou nebuloso e se tem uma superfície difusa ou, ao contrário, bem definida.Nesse momento, os pesquisadores da USP, com o conforto de contarem com uma máquina que funcionou direito desde o primeiro dia, se preparam para comparar o choque do lítio 7, estável, com o vanádio, para analisar se ocorrem características e manifestações diferentes em relação ao que acontece com o lítio exótico.

Os projetos
1. The Brazilian Rib Facility Planned for the Pelletron-Linac Complex in São Paulo (nº 97/09956-5); Modalidade Linha Regular de Auxílio a Projeto de Pesquisa; Coordenador Mahir Saleh Hussein – IF/USP; Investimento R$ 1.082.150,75
2. Estudo de Propriedades Nucleares com Feixes de Núcleos Exóticos; Modalidade Projeto Temático; Coordenador Rubens Lichtenthaler Filho – IF/USP; Investimento R$ 482.797,04

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