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Epidemiologia

Noites maldormidas

Marcada por breves interrupções na respiração, apneia prejudica o sono de milhões de paulistanos

Reprodução de cena do filme Laranja Mecânica

Um terço dos moradores da cidade de São Paulo — mais precisamente 32,9% — convive com um problema respiratório crônico que prejudica o sono e piora a qualidade de vida. Esse problema é a chamada síndrome da apneia obstrutiva do sono, uma série de breves interrupções na respiração que geralmente levam a um despertar momentâneo. Por acordar, ainda que sem perceber, toda vez que falta o ar, quem tem apneia e sofre ao menos cinco pausas de até dez segundos na respiração a cada hora não descansa como deveria. As consequências aparecem já no dia seguinte: sonolência, cochilos fora de hora, irritação e queda do rendimento. Se não for tratada, a apneia aumenta o risco de problemas cardiovasculares.

A constatação de que um em cada três paulistanos sofre de apneia — e muitos nem sabem — é um dos resultados mais impressionantes do mais amplo e detalhado levantamento já feito sobre a qualidade do sono dos habitantes da capital paulista. A proporção de casos identificados nessa pesquisa é tão elevada que inquietou até mesmo os coor­denadores do estudo, conduzido por uma equipe da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Eles esperavam encontrar um índice de apneia um pouco superior ao observado em trabalhos anteriores conduzidos no Brasil e no exterior — a prevalência varia de 2% a 7% entre os adultos —, mas nada próximo do que observaram em São Paulo.

Outros resultados desse estudo, que avaliou a qualidade do sono de 1.101 pessoas sorteadas aleatoriamente entre os 11 milhões de moradores da capital, são mais próximos aos encontrados em outras pesquisas. E também indicam que dormir mal parece ser a sina de quem vive em São Paulo: 25% dos moradores da cidade têm dificuldade para dormir; 42% roncam, muitas vezes em razão da apneia; 24% têm pesadelos ao menos uma vez por mês; e 13,2% sofrem de insônia crônica.

As mulheres têm menos apneia e roncam menos que os homens — a proporção de casos de apneia evolui de modo diferente entre os dois grupos, crescendo gradualmente à medida que os homens envelhecem e aumentando subitamente entre as mulheres depois da menopausa. Mas elas relatam mais dificuldade para dormir. Os pesadelos perturbam o sono de 30% delas e de apenas 17% dos homens. A proporção de mulheres que sofrem de insônia crônica (16,5%) é duas vezes maior que a de homens (9,2%) e a sonolência diurna também é mais comum entre elas (10% das mulheres sentem sono durante o dia, ante 7% da população masculina).

Há razões para crer que esses dados representem melhor a realidade da população de São Paulo e de outras metrópoles do que os conhecidos até então. “Por causa de limitações materiais ou financeiras, os estudos anteriores foram feitos com amostras que não representavam o conjunto da população, como os trabalhadores de fábricas, nem incluíam a população de baixa renda ou a que tem tendência a obesidade”, explica Rogério Santos Silva, coordenador da pesquisa.

Representantes da cidade
O fôlego e a motivação para um estudo mais amplo vieram com o médico Sérgio Tufik, diretor do Instituto do Sono, ligado à Unifesp, e do Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) do Sono, financiado pela FAPESP. Além de participar do planejamento, com a experiência de quem trabalha há três décadas nessa área, Tufik liberou 16 dos 80 leitos do instituto e R$ 2,4 milhões do Cepid para esse levantamento.

Os pesquisadores da Unifesp contrataram uma estatística e entrevistadores de empresas especializadas para analisar os mapas de população do IBGE e sortear em cada bairro da cidade os potenciais entrevistados: pessoas com idade entre 20 e 80 anos que representassem a distribuição por idade, gênero e classe social da população da capital paulista.

Além da abrangência e do esmero metodológico, a taxa elevada de apneia pode ser explicada com a prevalência também acima do esperado de uma de suas causas: o peso acima do considerado saudável pelas autoridades de saúde. “Eu esperava algo próximo da média nacional de 30%, mas não 60% de pessoas com sobrepeso e obesidade”, diz José Augusto Taddei, um dos pesquisadores da Unifesp que esteve à frente desse estudo. “Por causa da capacidade de comprar mais alimentos e do sedentarismo mais acentuado, São Paulo é diferente do Brasil.” Em Geografia da fome, estudo pioneiro sobre a nutrição no Brasil publicado em 1946, o médico Josué de Castro observava que os moradores do Sudeste, a região economicamente mais rica do país, de fato comiam mais que os de outras regiões do país. Mas nem sempre melhor. Para evitar influências sobre os resultados — as estações do ano, por exemplo, tendem a ampliar ou reduzir as horas de sono —, a pesquisa foi executada em seis meses, de julho ao final de dezembro de 2007. Dos 1.101 selecionados que aceitaram participar do estudo e responderam a questionários sobre o padrão e a qualidade do sono, 1.042 foram levados para dormir uma noite no Instituto do Sono, onde passaram pelo exame de polissonografia — teste que registra a atividade elétrica cerebral, os movimentos corporais, os batimentos cardíacos e a respiração durante o sono — e fizeram exames de sangue, que avaliavam o estado geral de saúde. Silva e Roberta Siufi acompanhavam quase 60 pessoas que entrevistavam, transportavam e examinavam os participantes do estudo. “Em muitas noites ocupamos todos os 16 leitos do instituto cedidos para esse estudo”, conta Silva. Com essas informações, o grupo da Unifesp construiu uma base de dados com cerca de 900 variáveis que deve ainda contar muito mais sobre a metrópole de 10 milhões de habitantes.

Miguel BoyayanNesse levantamento da Unifesp apenas 40% dos homens estão com o peso dentro dos padrões considerados desejáveis, 36% apresentam sobrepeso, 17,2% são obesos e 6,65% enquadram—se na categoria obesidade mórbida. Entre as mulheres, 37% estão com o peso considerado normal, 34% com sobrepeso, 20,3% com obesidade e 8,65% com obesidade mórbida.

As análises dos pesquisadores estabeleceram uma relação direta entre apneia e excesso de peso: o risco de desenvolver o problema respiratório é 2,6 vezes maior em pessoas com sobrepeso e 10,5 vezes maior nos indivíduos obesos do que entre aqueles com peso saudável. “Ninguém morre de apneia”, comenta Silva, “mas das consequências da apneia, que aumenta os riscos de infarto, acidente vascular cerebral, hipertensão e envolvimento em acidentes automobilísticos e de trabalho, devido à sonolência diurna”.

Vinte anos de sono
A apneia, que nesse estudo se mostrou mais comum entre pessoas de renda mais baixa e de idade mais avançada, em consonância com outros levantamentos, é um dos distúrbios do sono de tratamento difícil. Quem tem apneia e quer respirar melhor durante a noite precisa perder peso, se estiver com alguns quilos a mais, e usar um aparelho conhecido pela sigla CPAP, uma máscara de silicone conectada a um pequeno compressor que facilita a passagem de ar pela laringe. Um dos fatores que restringe o acesso ao CPAP é o preço, entre R$ 500 e R$ 1 mil. “Uma alternativa é uma cirurgia realizada pelo otorrinolaringologista, que o serviço público de saúde subsidia, mas que geralmente não é o melhor tratamento”, observa Silva.

Dormir mal — e passar o dia seguinte com sonolência, irritação, cansaço, atenção baixa e memória curta — é um problema que se agravou nos últimos 20 anos na cidade de São Paulo, constataram os pesquisadores ao comparar os dados do levantamento atual com os de dois outros realizados antes pelo mesmo grupo da Unifesp. Os dois trabalhos anteriores, um de 1987 e o outro de 1995, avaliaram apenas por meio de questionários — os mesmos adotados nesse estudo mais recente— a qualidade do sono de cerca de mil pessoas. Os relatos sobre dificuldade para dormir em mais de três noites por semana praticamente dobraram. Passaram de 13,9% em 1987 para 25% em 2007. A frequência de relatos sobre sonolência diurna quase dobrou (3,8% em 1987 e 8,6% em 2007) e a de pesadelos mais de uma vez por mês subiu de 11% para 24%. Os pesquisadores da Unifesp não avaliaram, mas sabem — e veem todo dia — que a cidade se tornou mais hostil, com mais trânsito, barulho e violência. “Quando piora a qualidade de vida”, diz Taddei, “a qualidade do sono cai”.

Por causa dessa abrangência, Tad­dei acredita que esse estudo pode mudar a percepção dos distúrbios do sono nas metrópoles do mundo. “Não temos por que achar que os resultados, quando avaliados com o mesmo rigor metodológico, sejam muito diferentes em Nova York ou em Bangladesh”. Ainda não há como comparar porque os estudos feitos em metrópoles não são tão amplos e estudos amplos são feitos em cidades menores. Um dos mais abrangentes avaliou a qualidade de sono dos moradores de Dauphin e de Lebanon, duas cidades do sul da Pensilvânia, nos Estados Unidos, hoje com quase 300 mil e 30 mil habitantes. Edward Bixler e outros pesquisadores da Universidade Estadual da Pensilvânia entrevistaram por telefone 12.219 mulheres e 4.364 homens com idade entre 20 e 100 anos dessas duas cidades. Depois avaliaram a qualidade do sono, por meio de polissonografias de mil mulheres e 741 homens entrevistados. Detectaram 3,9% de apneia nos homens e 1,2% nas mulheres.

A equipe da Unifesp enfrenta agora duas batalhas. Uma delas é para publicar resultados que destoam muito dos de outras pesquisas. As duas primeiras revistas que receberam esse estudo o recusaram alegando que a prevalência de apneia era alta demais. “Um dos editores sugeriu que refizéssemos o estudo”, conta Silva. Taddei cogita: “Há um preconceito sério sobre a credibilidade dos dados que vêm do Brasil, principalmente em um trabalho como esse, que não tem coautores dos Estados Unidos”. Uma terceira revista ainda não respondeu se aceita ou não o estudo sobre apneia em São Paulo.

A outra batalha é para mostrar às pessoas como dormir melhor e perder peso. Isso implica mudar hábitos que prejudicam o sono, como comer muito, trabalhar na cama ou tomar bebidas alcoólicas antes de dormir.  “Quem bebe antes de dormir vai roncar mais e perder uma parte do sono mais profundo”, afirma Silva. No livro Counting sheep – The science and pleasures of sleep and dreams, o biólogo inglês Paul Martin oferece mais algumas sugestões, como cochilar sem culpa, considerar a cama o móvel mais importante da casa e o quarto um ambiente acolhedor, não um depósito de coisas inúteis.

Taddei empenha-se há duas décadas em motivar as pessoas a se alimentarem melhor e a perderem peso. “O fato de duas em cada três pessoas apresentarem sobrepeso quer dizer que já estamos no pico da curva da obesidade, como já registrado nos Estados Unidos”, alerta. “Temos de começar a reverter esse quadro”. Em busca de novas possibilidades de ação, com o apoio da Unifesp ele criou uma página na internet (Estilo de Vida Saudável) com recomendações para perder peso e viver melhores dias e noites — não só nas grandes cidades.

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