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Nova arma contra a hipertensão arterial

CAT/Cepid, em parceria com indústrias farmacêuticas, deposita patente de anti-hipertensivo

O Centro de Toxinologia Aplicada (CAT), no Instituto Butantan, depositou no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) a patente do princípio ativo de um protótipo molecular que será utilizado na produção de um fármaco com propriedades anti-hipertensivas. Batizado com o nome genérico de Evasin (endogenous vasopeptidase inhibitor), o novo medicamento tem potencial para concorrer com o Captopril, anti-hipertensivo produzido pela Squibb, que garante a essa indústria farmacêutica multinacional um faturamento anual estimado em US$ 5 bilhões, em todo o mundo. A patente também será depositada nos Estados Unidos, Japão e na União Européia (UE). A expectativa é que o Evasin esteja disponível aos indivíduos hipertensos nos próximos anos. “Agora, é partir para os testes pré-clínicos e clínicos”, anunciou Antonio Martins de Camargo, diretor do CAT.

No desenvolvimento do Evasin, o centro terá como parceiro o Consórcio Farmacêutico Nacional (Coinfar), formado pelos laboratórios Biolab-Sanus, Biosintética e União Química. “A iniciativa privada tem flexibilidade e agilidade necessárias para levar avante um projeto como esse, já que as instituições públicas não têm cultura de mercado”, diz Camargo.O CAT é um dos dez Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepids) qualificados pela FAPESP e a parceria com a indústria farmacêutica para o desenvolvimento do novo medicamento atende a um dos principais quesitos do programa que é o de aproximar as atividades acadêmicas de pesquisa com o mercado. Antes do registro no INPI, a FAPESP avaliou a patente do Evasin por meio do Programa de Apoio à Propriedade Intelectual (PAPI/Nuplitec). “Nossa assessoria entendeu que esse fármaco tem grande potencial de mercado”, disse José Fernando Perez, diretor-científico da Fundação. “A adesão dos três laboratórios mostra que a avaliação estavacorreta.”

A FAPESP apóia as atividades de pesquisa do CAT desde setembro do ano passado, quando foi lançado o Programa Cepid. “As investigações tiveram início antes disso. Entretanto, mais de 90% dos investimentos na pesquisa do Evasin, tanto nos insumos, bolsas de pós doutoramento, de pós-graduação e os equipamentos, já tinham sido financiados pela FAPESP por meio de bolsas-auxílio”, ressalva Camargo.

Titularidade
A titularidade da patente será da FAPESP e do consórcio parceiro (Coinfar), de acordo com os termos de outorga da Fundação. Os dividendos provenientes da venda do produto serão repartidos entre os inventores, o Instituto Butantan, os parceiros privados e a FAPESP. Cabe ao consórcio de laboratórios arcar com as despesas da patente, no Brasil e no exterior, com os recursos para a administração do CAT/Cepid e com investimentos na infra-estrutura dos laboratórios de pesquisa do centro, que serão equipados com recursos da FAPESP. Também está previstoque osparceiros privados deverão financiar os testes clínicos necessários ao desenvolvimento do fármaco.

A FAPESP se compromete a apoiar as atividades do centro, com R$ 3 milhões anuais, por um período de até 11 anos. E o Instituto Butantan, assim como as demais instituições que constituem a sede dos dez Cepids, fica com a responsabilidade de pagar os salários dos pesquisadores e do pessoal de apoio, além de ceder as instalações e equipamentos e outros materiais para o desenvolvimento das pesquisas. Camargo acredita que o fármaco poderá chegar ao mercado dentro de dois anos, já que, tudo indica, o protótipo molecular, base do Evasin, parece fazer parte do sistema endógeno de regulação da pressão arterial dos seres humanos. Isso significa que o próprio Evasin poderá ser utilizado como medicamento.

“A desvantagem é que, por tratar-se de um peptídeo, não poderá ser ministrado por via oral sob risco de ser destruído pelo estômago, como é o caso da insulina ou dos hormônios de crescimento. Deverá, portanto, ser fornecido aos pacientes na forma injetável ou em spray”, entre outros métodos que estão sendo desenvolvidos pela farmacotécnica moderna para o uso de peptídeos como medicamento, prevê Camargo. Não está descartada a possibilidade de os testes clínicos indicarem outra alternativa para a administração oral do anti-hipertensivo, que poderá ser obtida por modelagem molecular e biologia molecular. “Neste caso, provavelmente teremos como parceiro o Laboratório Nacional de Luz Síncrotron, em Campinas”, diz Camargo. “Se adotarmos esse procedimento, o medicamento só chegará ao mercado em cinco ou seis anos”, prevê.

Ação seletiva
Uma grande vantagem do Evasin, qualquer que seja a forma com que ele chegue aos pacientes, é que ele é um produto natural, com atividade seletiva, não é imunogênico e tem efeito prolongado. Essas características, aliás, foram o ponto de partida das pesquisas que levaram à descoberta do novo fármaco. “Buscamos encontrar esse anti-hipertensivo na natureza, procurando substâncias capazes de inibir a ação de enzimas que revestem os vasos sanguíneos (vasopeptidases) cujas disfunções podem levar à hipertensão arterial, como a enzima conversora da angiotensina, conhecida como ACE, e a endopeptidase neutra, conhecida como EP 24.11. Essas enzimas são fundamentais para manter nossa pressão arterial em valores normais, controlando a concentração sanguínea da angiotensina II e bradicinina, impedindo a hipertensão arterial”, explica Carmargo.

Já que essas duas substâncias são vitais para o organismo, com força para produzir um choque cardiocirculatório ou hipertensão arterial e levar à morte, a equipe do CAT apostou que a natureza, ao longo de milhões de anos de evolução, também teria selecionado inibidores endógenos dessas enzimas capazes de mantê-las em níveis normais, numa espécie de ação em defesa dos seres vivos. A fisiopatologia cardiovascular, nas últimas décadas, tem encontrado respostas positivas para problemas da pressão arterial, processos inflamatórios, mecanismos de dor, processos alérgicos e asma brônquica, entre tantos outros, nas pesquisas com os venenos animais.

Já se sabia que, ao longo de um processo de mutação e seleção natural, as serpentes desenvolveram “armas”, a partir de substâncias endógenas, capazes de atuar sobre enzimas desorganizando o sistema cardiocirculatório de suas vítimas. Procurando explicar como o veneno de jararaca mata ou paralisa suas vítimas, em 1948, Gastão Rosenfeld, do Instituto Butantan, levou para o laboratório de Maurício Rocha e Silva uma amostra do veneno da Bothrops jararaca com oobjetivo de estudar os efeitos emcães. Os pesquisadores incubaram o veneno com o plasma do cão e dessa reação formou-se uma substância que contraía fortemente os intestinos da cobaia e possuía intensa ação hipotensora.

Essa substância não era a histamina, mas um polipetídeo que foi denominado bradicinina. Rocha e Silva descobriu que a jararaca, ao inocular o veneno em sua presa para alimentar-se ou defender-se, injeta-lhe toxinas que desorganizam o sistema de coagulação e liberam a bradicinina, levando à hipotensão, ao desequilíbrio dos vários sistemas de células e líquidos do sangue, paralisando ou comprometendo a vida da sua presa. As toxinas das serpentes, portanto, colocam em evidência os mecanismos celulares e moleculares manifestos nas reações anafiláticas e alérgicas, entre outros efeitos reativos do organismo.

Milhões de dólares
Posteriormente, na década de 60, Sérgio Ferreira, ex-aluno de Rocha e Silva, constatou que a hipotensão provocada pela liberação da bradicinina no sangue da vítima é potencializada por ação de pequenas toxinas encontradas em grandes quantidades no veneno da jararaca. Essas pequenas toxinas, denominadas peptídeos potenciadores da bradicinina ou BPPs, foram isoladas por Ferreira e colaboradores e levadas por ele ao Imperial College de Londres, permitindo que o cientista inglês John Vane (ganhador do prêmio Nobel) chegasse ao protótipo molecular que daria origem ao bilionário captropil, da Squibb, o primeiro de uma série de anti-hipertensivos utilizados por milhões de pessoas.

Desde então, indústrias farmacêuticas de todo o mundo passaram a investir milhões de dólares no desenvolvimento de drogas anti-hipertensivas. “O mérito dessa descoberta, ficou quase todo com os ingleses e americanos”, conta Camargo. “Todos sabem que a hipertensão é um mal que acomete grande parte da humanidade, sobretudo os mais velhos, mas poucos sabem que o medicamento anti-hipertensivo mais utilizado no mundo partiu de pesquisas iniciadas no Brasil 50 anos atrás.

A equipe de pesquisadores do CAT retomou o caminho trilhado por Rocha e Silva e Ferreira. Identificaram, por biologia molecular, uma proteína precursora dos BPPs na glândula onde se forma o veneno da Bothrops jararaca. “Encontramos sete BPPs e uma molécula do hormônio natriurético numa mesma proteína, como se fosse um rosário de moléculas anti-hipertensivas, capazes de causar um choque cardiovascular na vítima picada por essa serpente”, descreve Camargo. Recentemente, a equipe constatou, também por biologia molecular, que esses BPPs não são apenas toxinas, mas fazem parte do sistema endógeno de regulação da pressão arterial. A eficácia desses peptídeos foi testada em ratos.

As pesquisas avançaram e, em parceria com o Dr. Vincent Dive, da CEA, na França, a equipe do CAT conclui que a ação desses peptídeos sintéticos (BPPs), além de inibir as enzimas que revestem os vasos sanguíneos importantes por causar a hipertensão (ACE e EP 24.11), tem uma seletividade para uma das “cabeças” da enzima conversora da angiotensina (ACE).

Defesa imunológica
Essa enzima, ACE, presente nas paredes dos vasos sanguíneos, é fundamental para manter nossa pressão arterial. Ela possui duas “cabeças” ativas, identificadas como C e N. As duas “cabeças” podem gerar a angiotensina II e, conseqüentemente, produzir hipertensão. O quadro se agrava porque tanto a ACE como a EP 24.11 podem inativar a bradicinina, substância hipotensiva natural. As duas “cabeças”, no entanto, não são iguais. A “cabeça” C é mais específica para formar a angiotensina II e inativar a bradicinina. A “cabeça” N faz a mesma coisa, mas com menor eficiência. Mas ela desempenha outra tarefa importante para o organismo, o de inativar um hormônio recentemente descoberto, o AcSDKP, que regula a proliferação de células do sangue responsáveis pela defesa imunológica.

Nem o Captopril nem seus derivados modernos são capazes de distinguir entre as “cabeças” C e N, inibindo as duas cabeças igualmente. Seu uso prolongado pode levar a alterações nas células sanguíneas. Acertar o alvo, ou seja, a “cabeça” C, com anti-hipertensivos seletivos, seguros e mais eficientes, tem sido um dos grandes desafios da indústria farmacêutica multinacional. O Evasin tem essa característica: é um medicamento seletivo para a “cabeça” C da ACE e, além disso, inativa a EP 24.11. A patente depositada também garante aos titulares o direito sobre os BPPs endógenos e seus derivados, denominados Evasins, que possuem maior seletividade para a “cabeça” C da enzima conversora da angiotensina (ACE).

Recriação da natureza
Além de Camargo, integram o grupo do CAT nesse projeto, entre outros pesquisadores, as pós-doutorandas Miriam Hayahi, Fernanda Portaro, a mestranda Danielle Yanzer e a aluna da iniciação científica Alessandra Murbach, todas bolsistas da FAPESP. “Encontramos na natureza a substância que possui as propriedades dos novos anti-hipertensivos que as multinacionais farmacêuticas procuram”, explica Carmargo. “O caminho adotado pela equipe do CAT foi distinto daquele utilizado pela indústria norte-americana Millenium, que tenta chegar aos modernos anti-hipertensivos utilizando informações genômicas e química combinatória. Estamos utilizando, para essa mesma finalidade, não a recriação da natureza pelo homem, o que pode ser altamente frustrante, mas tentamos descobrir os caminhos que a própria natureza utilizou”, afirma Camargo.

Para o diretor científico da FAPESP, as perspectivas que se abrem com o depósito da patente do Evasin “são um início auspicioso” para o Cepid. “Mostra que esse modelo de parceria é um forte estímulo à interação com o setor privado. O projeto CAT/Cepid terá especial sucesso nas relações entre o setor acadêmico e a indústria farmacêutica nacional, tradicionalmente desmobilizada para esse tipo de relação”, diz Perez.

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