Ao cruzar diferentes bancos de dados oficiais, sistema permite aprofundar análises
Ilustração com fotos de Léo Ramos Chaves
Uma plataforma aberta, com interface amigável, que compila informações de múltiplas bases de dados oficiais deve viabilizar novas investigações acerca das desigualdades raciais no Brasil. Desenvolvido pelo Centro de Estudos e Dados sobre Desigualdade Racial (Cedra), o sistema que acaba de ser lançado permite cruzar informações sobre renda, ocupação, habitação e escolaridade conforme critérios de cor, raça e sexo da população e visa oferecer subsídios à elaboração de políticas públicas e investigações científicas sobre a temática.
Um de seus criadores é o economista Eduardo Pereira Nunes, ex-presidente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e ex-professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio (PUC-Rio). Ele explica que a plataforma, que combina dados do Censo de 2010 e da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnadc) entre 2012 e 2019, oferece métodos inéditos de leitura de dados do IBGE. Segundo Nunes, a base do sistema são os dados sobre os responsáveis pelos 57 milhões de domicílios registrados no Censo de 2010. “Algumas das informações reveladoras trazidas pela plataforma envolvem a configuração desses 57 milhões de lares em relação a itens como raça, cor e gênero”, detalha o economista. Assim, foi possível identificar, por exemplo, que em 2010 em 33,8% das residências do país moravam somente negros, 27,3% eram habitadas por moradores negros e pessoas de outra cor ou raça, enquanto 38,9% das casas não eram habitadas por moradores negros. No mesmo ano, a renda média por morador em casas resididas por negros era de R$ 598, em domicílios ocupados por negros e não negros era de R$ 627 e em lugares sem moradores negros era de R$ 1,4 mil. “Isso significa que as casas habitadas por negros têm rendas mais baixas do que aquelas ocupadas somente por brancos, o que indica uma situação de exclusão social”, comenta.
Em relação ao mercado de trabalho, Nunes destaca que outro cruzamento de dados inédito feito pela plataforma evidenciou as ocupações onde a maioria das pessoas é branca ou negra. Em 2010, nos trabalhos em que predominavam pessoas negras o rendimento médio por hora correspondia a 20% do valor médio de ocupações em que a maioria das pessoas era branca. A plataforma também evidenciou que a renda média dos brancos é mais alta mesmo em ocupações em que a maioria dos trabalhadores é negra. “Identificamos que, quanto menos sofisticado o grau de exigência da mão de obra, maior será a presença de pessoas negras”, afirma. Na perspectiva de Nunes, apenas por meio de iniciativas como as políticas de cotas é possível mudar esse cenário. “Como contar com mais pessoas negras na medicina, por exemplo, se suas condições de vida são diferentes das dos brancos desde a origem familiar, de forma que elas precisam trabalhar enquanto estudam, e brancos contam com uma situação mais favorável para poder se preparar para os vestibulares?”, questiona.
Alexandre Affonso / Revista Pesquisa FAPESP
A plataforma, indica, ainda, que em 2010 19,9% dos jovens brancos de 18 a 24 anos frequentavam o ensino superior, enquanto o percentual equivalente entre pessoas negras de 18 a 24 anos era de 7,8%. Em 2019, os valores correspondentes passaram a ser de 28,5% e 15,4%, respectivamente, evidenciando expansão mais acentuada entre os negros. No entanto, a diferença entre os dois grupos aumentou, passando de 12,1 pontos percentuais para 13,1 pontos percentuais no intervalo de tempo analisado. Já o percentual de toda a população negra no ensino superior aumentou de 34,9% para 47,6% entre 2010 e 2019, enquanto a de brancos foi reduzida de 63,7% para 51,4%. Nesse período, a frequência de estudantes mulheres entre 18 e 24 anos no ensino superior saiu de 22,2% para 30,7% entre brancas e de 9,3% para 17,8%, entre negras. Mesmo com o aumento de mulheres negras na educação superior, a diferença entre os grupos permaneceu em 12,9 pontos percentuais.
Entrevista: Wania Sant’anna
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Além disso, o sistema mostra que negros eram responsáveis pela maioria das casas na linha da pobreza extrema, ou seja, com renda média mensal de até 12,5% do salário-mínimo. Também em 2010, o rendimento médio de casas com mulheres negras como responsáveis era de 42% do valor da renda média per capita de domicílios que contavam com homens brancos como responsáveis. Outro dado levantado é que o número de negros que viviam em regiões periféricas era mais do que o dobro dos habitantes brancos. Considerando moradores de áreas na periferia das cidades, o acesso ao ensino superior era desigual entre brancos e negros em 2010, sendo que 5,9% das mulheres negras que ali viviam cursavam ensino superior, em comparação com 11,5% das mulheres brancas.
Em 2010, 55% dos negros com 15 anos ou mais não tinham instrução ou apresentavam ensino fundamental incompleto, enquanto entre brancos o valor equivalente era de 37,5%. Entre a população que recebia menos de 12,5% do salário-mínimo naquele ano, 31,1% dos domicílios eram chefiados por mulheres negras e 9,8% por mulheres brancas. Além disso, cerca de 2,7 milhões de casas com responsável negro não dispunham de banheiro de uso exclusivo dos habitantes. Entre os brancos eram 750 mil moradias. Considerando a renda média de todos os trabalhadores, pessoas negras ganhavam R$ 871 mensais, enquanto as brancas R$ 1,6 mil, em 2010. Além disso, a população negra com mais de 15 anos apresentava, naquele mesmo ano, maior taxa de analfabetismo do que a população branca, 18,7% e 7,8%, respectivamente. Entre idosos, ou seja, pessoas acima de 60 anos, a taxa de analfabetismo entre negros era o dobro da identificada entre os brancos.
Alexandre Affonso / Revista Pesquisa FAPESP
A plataforma recebeu investimento e apoio de instituições como Instituto Çarê, Fundação Itaú, Instituto Galo da Manhã e Instituto Ibirapitanga e está sendo aperfeiçoada para, no decorrer de 2023, passar a incorporar informações de bancos de dados do Sistema Único de Saúde (SUS), Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep) e estatísticas oficiais sobre violência. “A inclusão desses novos bancos de dados permitirá, por exemplo, conhecer a incidência de mortes violentas em domicílios cujas mulheres negras são as responsáveis, entre outras informações, por saúde e educação”, detalha. No futuro, o economista informa que os dados do Censo de 2022, que estão sendo coletados, também serão utilizados para alimentar a plataforma. Além de Nunes, o Cedra foi fundado em 2020 pelo economista Hélio Santos, presidente da Oxfam Brasil, a historiadora Wania Sant’anna, do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), o físico Marcelo Tragtenberg, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e o economista Mário Theodoro, da Universidade de Brasília (UnB).
Durante evento de lançamento em dezembro em São Paulo, Santos explicou que a plataforma pretende funcionar como uma “usina de dados que induz a implementação de políticas públicas”. Na perspectiva do economista, nos últimos quatro anos a universidade pública foi enfraquecida, “justamente em um momento em que negros ampliavam sua presença nessas instituições”, sendo necessário “adotar ações afirmativas sistêmicas”.
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