EDUARDO CESAROs tomates ao lado correspondem à imagem popular de um mutante: no mínimo esquisito. Uma alteração genética espontânea transformou os estames – que caem quando a flor seca – em órgãos reprodutivos femininos, a parte que dá origem ao fruto. O resultado são tomates múltiplos, como gêmeos siameses. Geralmente invisível aos olhos leigos, a maior parte das mutações não escapa aos especialistas, que descobriram nos mutantes uma ferramenta para entender a intimidade das plantas, em seus genes e hormônios. “Só entendemos realmente a função de um gene se conhecemos variações dele”, comenta Lázaro Peres, agrônomo da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da Universidade de São Paulo (USP), em Piracicaba.
Para entender como os genes e hormônios regulam as plantas, o pesquisador adotou uma variedade de tomateiro em miniatura, conhecida como Micro-Tom. São plantas pequenas e com ciclo de vida rápido. Numa estufa ele mantém por volta de 3 mil tomateiros, que com apenas 8 centímetros de altura e 70 dias de idade estão carregados de frutos e acumulam mutações para todos os gostos. Com a ajuda desses mutantes, o grupo da Esalq tem conseguido aprofundar o conhecimento sobre como as plantas resistem à seca, percebem luz e desenvolvem frutos com polpa mais concentrada.
Em 2006 Peres descobriu um gene que regula a eficiência no uso de água pela planta, que batizou de Well. Significa “poço” em inglês, mas é também o nome dado a cada furo da bandeja onde cultiva seus tomateiros; e é uma sigla, que traduzida significa “loco de economia de água em Lycopersicon“. A mutação do gene Well é uma variação genética natural que controla a diferenciação celular e permite sobreviver em condições áridas. Ela define, por exemplo, a proporção de células que darão origem a estômatos, os poros de respiração e transpiração localizados na superfície das folhas. Além de afetar o número de estômatos, a mutação Well produz estruturas anatômicas que permitem que a planta realize mais fotossíntese com menos água. O projeto continua nas mãos do pós-doutorando Ricardo Fornazier, que está fazendo medições para preencher os detalhes de como funciona esse processo, útil para reduzir o volume de água necessário no cultivo não só de tomateiros, mas da agricultura como um todo.
Além das mutações, uma fonte importante de variação genética são espécies aparentadas. A equipe da Esalq foi buscar essas variações em Lycopersicon hirsutum, um parente próximo do tomateiro doméstico (L. esculentum). Suas folhas e frutos peludos (hirsutos, como diz o nome científico) permitem resistir a insetos, além de a planta ser afeita ao frio da cordilheira dos Andes, onde cresce naturalmente. Com cruzamentos entre as duas espécies, técnica usada desde que o homem é agricultor, Peres obteve microtomateiros resistentes ao frio. “Estamos interessados em estudar variações genéticas silvestres, pois elas surgiram como resposta à seleção natural”, explica. O sucesso do Micro-Tom como modelo vegetal põe o agrônomo da Esalq em posição de destaque: “Em lugar nenhum do mundo existe uma coleção de mutantes como a que temos”.
Mas genes não bastam para entender a fisiologia das plantas. Peres explica que os responsáveis por moldar boa parte das características e das funções vitais são os hormônios, que até recentemente eram muito pouco conhecidos – até que pesquisadores começaram a usar mutantes. Para estudar os hormônios vegetais, ele cria tomateiros com mutações que os tornam insensíveis à ação dessas substâncias.
Além dos genes
Alguns dos mutantes da Esalq ajudam a entender como plantas percebem luz. Quando há sol, é preciso avisar ao organismo que é hora de produzir clorofila para a fotossíntese, o processo que usa luz solar para converter o gás carbônico em açúcares, a reserva de energia das plantas. Os responsáveis por essa visão vegetal são pigmentos chamados fitocromos. Um mutante com deficiência de fitocromo percebe mal a luz, e mesmo que esteja em pleno sol fica amarelado e com ramos compridos, como se lhe faltasse luminosidade. O aluno de doutorado Rogério Carvalho conseguiu gerar duplos-mutantes, que combinam a mutação do fitocromo com outras que tornam a planta insensível a hormônios específicos, para investigar quais deles o fitocromo usa para modular a resposta da planta à luz. Descobriu que uma alta resposta à luz envolve uma concentração baixa de giberelina e alta de citocinina. Peres explica que a descoberta tem aplicação direta, pois o nível desses hormônios pode ser manipulado adicionando substâncias químicas à planta.
Hormônios são também usados na produção de mudas a partir de estacas. Para cada espécie os cultivadores aplicam os hormônios auxina e citocinina, por tentativa e erro, até chegar a uma combinação que induza um pedaço da planta a produzir raízes e caules. Para tornar esse processo menos empírico, o pesquisador busca entender como funciona a competência das plantas, que é a capacidade das células de dar origem a qualquer tipo de tecido. Ao contrário das células-tronco animais, que concentram sua versatilidade na fase embrionária, as plantas precisam de células competentes durante toda a sua vida – para a qualquer momento produzir raízes, folhas, frutos, flores e caule.
No laboratório da Esalq, estudantes alinham pedacinhos de folhas em placas com uma gelatina nutritiva: daquelas retiradas de mutantes para o gene Rg1, nome derivado de regeneração, em dois dias brotam raízes da borda do fragmento de folha. O gene Rg1 foi descoberto em um parente silvestre do tomateiro por um pesquisador holandês, que distribuiu sementes pelo mundo todo. Peres transferiu o gene para Micro-Tom para produzir e estudar duplos-mutantes. Assim, ele e sua aluna de doutorado Simone Lombardi verificaram que o gene da competência age em consonância com os hormônios auxina e giberelina. Um teor mais baixo de giberelina aumenta a competência da planta – que no meio de cultivo em laboratório produzirá mais caules a partir dos pedaços de folha. Além de facilitar a produção de mudas para uso agrícola, entender esses processos abre caminhos para gerar plantas transgênicas em grande escala.
A relação entre competência e desenvolvimento é íntima e se manifesta em diversas situações da vida da planta. As células das folhas costumam ser pouco competentes: uma folha é um beco sem saída, nada brotará dali. A ponta dos ramos, ao contrário, tem células responsáveis pelo crescimento da planta e pela produção contínua de folhas, frutos, ramos e flores. Em plantas de competência aumentada as células das folhas têm maior propensão a dar origem a outras estruturas. Por isso se desenvolvem mais devagar e geram bordas serrilhadas, recortadas ou até subdivididas em folíolos, num crescendo que corresponde ao grau de competência. “Uma folha composta está a um passo de tornar-se um caule com crescimento aberto”, explica Peres, em contraposição ao crescimento fechado – o tal beco sem saída – que caracteriza as folhas.
Para todos
A coleção de tomateiros mutantes permite que se investiguem mistérios das plantas até então inacessíveis. Mas Peres não tem intenção de monopolizar o tomatal: ele está à disposição de outros pesquisadores e melhoristas – aqueles que buscam aprimorar propriedades de plantas com valor comercial.
Um dos genes encontrados na Esalq induz a planta a produzir frutos mais carnosos – um parâmetro conhecido como grau brix, que mede o teor de sólidos solúveis (ácidos orgânicos e açúcares) na polpa. O grau brix de um tomateiro normal não passa de 5, mas o grupo da Esalq conseguiu gerar um mutante com brix 10, um resultado sem precedentes. Além de ter uso direto para melhoristas, o resultado demonstra o valor do tomateiro como modelo vegetal. O mesmo gene pode afetar o brix em outras espécies com frutos carnosos, como laranja e café. A planta Arabidopsis, modelo mais usado para estudos em botânica, tem frutos secos e por isso o que se vê nela não se aplica às espécies com frutos de importância econômica.
Peres usa seus mutantes também como material didático. Em aulas práticas de cursos universitários de fisiologia vegetal estudantes são orientados a aplicar hormônios em plantas para ver quais são as alterações causadas. “Como os hormônios são muito caros”, explica o pesquisador, “cultivar plantas mutantes para determinados hormônios sai muito mais barato”. Numa disciplina de graduação no curso de biologia da Esalq, ele deu aos alunos sementes de tomateiros mutantes. Cada grupo ganhou um tipo diferente, não identificado. Ao longo do curso eles plantaram as sementes e acompanharam o crescimento das plantas. Ao reunir o conhecimento adquirido nas aulas teóricas às próprias observações, até o fim do semestre os estudantes deviam descobrir qual função fora afetada pela alteração genética. “Deu muito certo, foi um exercício estimulante que envolveu os alunos”, comemora o professor.
O tomateiro percorreu um caminho aventuroso desde sua origem nos Andes até o Micro-Tom das salas de aula em Piracicaba. Foi domesticado pelos astecas, que viveram entre os séculos XIV e XVI no que agora é o México, onde tomateiros não nasciam espontaneamente. Ao colonizar o império asteca, os espanhóis levaram as plantas de frutos vermelhos para a Europa como ornamentais, por medo que fossem tóxicas. Foram os italianos que não resistiram à aparência apetitosa, incorporaram o tomate em sua culinária e desenvolveram variedades melhoradas que depois se espalharam pelo mundo. Hoje ele é um modelo promissor que abriu rotas de pesquisa que devem ajudar a desvendar o funcionamento genético e hormonal de várias espécies com valor econômico, e quem sabe das plantas em geral.
O Projeto
Bases genéticas e bioquímicas da competência utilizando microtomateiro como modelo
Modalidade
Linha Regular de Auxílio a Pesquisa – Jovem Pesquisador
Coordenador
Lázaro Eustáquio Pereira Peres – Esalq/USP
Investimento
R$ 224.126,65 (FAPESP)