Podcast: Marcos Boulos e Éder Gatti
Para os seres humanos, o vírus da febre amarela pode ser fatal, mas pode ser detido pela vacinação. Para os macacos, para os quais não há vacinas, está sendo catastrófico. Os órgãos públicos de saúde registraram a morte de mais de 2 mil animais – principalmente bugios – durante o surto de 2008 e 2009 no Rio Grande do Sul, mas o efeito do vírus deve ter sido mais amplo. Biólogos e epidemiologistas estimam que o número de primatas silvestres mortos por causa da febre amarela registrados em áreas urbanas corresponda a apenas 10% do total exterminado pela doença. Os outros 90% morrem no interior das matas, deterioram-se e não são encontrados. Calcula-se que cerca de 1,3 mil macacos devam ter morrido no Espírito Santo e 5 mil no estado de São Paulo em 2017.
As mortes dos macacos indicam as áreas de maior risco de transmissão do vírus da febre amarela e orientam as campanhas de vacinação (ver quadro). “Sem os macacos, estamos desprotegidos para perceber a chegada e os deslocamentos do vírus”, alerta o biólogo Júlio César Bicca Marques, professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). “Antes de começar o monitoramento das mortes de macacos, o mapeamento da febre amarela dependia somente das pessoas que adoeciam e morriam”, diz o biólogo Renato Pereira de Souza, diretor técnico do núcleo de doenças de transmissão viral do Instituto Adolfo Lutz, de São Paulo. “Só apareciam os casos graves, porque as pessoas com os sintomas mais leves não iam até os hospitais para se tratar.” O Ministério da Saúde propôs em 1999 aos órgãos de saúde o acompanhamento das mortes de macacos como estratégia para identificar as novas áreas de transmissão do vírus e planejar as medidas de proteção dos moradores das cidades, principalmente das áreas próximas a matas.
A febre amarela silvestre é causada por um vírus transmitido a macacos pelos mosquitos dos gêneros Haemagogus e Sabethes, após se alimentarem do sangue de macacos infectados. Os insetos repassam o vírus para novos macacos e eventualmente para seres humanos que entram na floresta. Os macacos não transmitem o vírus diretamente às pessoas. “Doenças como a febre amarela podem causar a extinção local de espécies de primatas e devem chamar nossa atenção porque esse tipo de ameaça se adiciona a outras, como a perda de hábitat e a caça”, diz a bióloga Laurence Culot, professora da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Rio Claro. “Os primatas são vítimas duas vezes: da doença, à qual algumas espécies são muito sensíveis, e da perseguição das pessoas, que acham erradamente que são os primatas que causam a doença e os matam, pensando que assim iriam resolver o problema.”
Os primatas do gênero Alouatta (bugios e guaribas) são mais sensíveis ao vírus e morrem mais facilmente que os do gênero Sapajus (macacos-prego) – os dois grupos vivem na Amazônia e na Mata Atlântica. Os Callithrix (saguis e micos), exclusivos da Mata Atlântica, também se mostraram resistentes. Como o vírus circula em áreas de floresta, os animais continuam a morrer por causa da doença, embora uma parte próxima a 20% do total da população sobreviva por criar anticorpos contra o vírus. A área de recomendação permanente de vacinação para moradores e viajantes, antes limitada à Amazônia, cresceu e hoje abrange quase todo o país (ver Pesquisa FAPESP no 253).
O surto de febre amarela iniciado em dezembro de 2007 terminou em abril de 2008, com 40 casos humanos confirmados e 21 mortes. Em São Paulo, 28 pessoas foram diagnosticadas, das quais 11 morreram por causa da doença. No atual, considerado o maior dos últimos 14 anos, 779 pessoas foram diagnosticadas e 262 morreram com febre amarela em todo o país de dezembro de 2016 a agosto de 2017, de acordo com um boletim de dezembro de 2017 da Organização Mundial da Saúde. O boletim de 26 de dezembro de 2017 da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo (SES-SP) relatava 53 pessoas infectadas pelo vírus no estado, das quais 16 tinham morrido, desde o início do ano passado. Houve mais quatro mortes na Grande Paulo até 9 de janeiro de 2018.
À espera do vírus
O vírus que causou o surto atual deve ter partido em 2014 da Amazônia e, por meio de corredores de florestas, atravessado a região Centro-Oeste, entrado em Minas Gerais e São Paulo e seguido em direção ao Espírito Santo, de acordo com um estudo recente da Superintendência de Controle de Endemias (Sucen) e do Instituto Adolfo Lutz. Em São Paulo o atual surto emergiu em abril de 2016 na região de São José do Rio Preto e avançou para a de Campinas, criando a expectativa de que logo chegaria à capital (ver mapa).
A bióloga Juliana Summa, diretora da Divisão de Fauna Silvestre da prefeitura de São Paulo, observou que começaram a chegar de cinco a seis macacos mortos por dia, o triplo do habitual, ao Centro de Manejo e Conservação de Animais Silvestres (CeMaCAS), instalado no Parque Anhanguera, na zona norte da cidade, desde o primeiro domingo de dezembro, coincidindo com a intensificação das chuvas de verão e a consequente proliferação de mosquitos.
“Agora a febre amarela está entrando com força na zona norte da cidade. Antes estava apenas avisando que ia chegar”, ela comentou no início da tarde de 11 de dezembro. Naquele dia já tinham chegado cinco bugios e um sagui mortos; no final de semana seguinte, mais 12. “Sabíamos que o vírus ia chegar à capital, mas não conseguimos prever tudo”, diz Juliana. “No início não sabíamos o que fazer com os filhotes que chegavam vivos, com as mães mortas, desenvolviam a doença em poucos dias e morriam.” Os raros animais que chegam vivos permanecem em quarentena e, se não morrerem em uma semana, são transferidos para os abrigos do CeMaCAS.
Pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP), da prefeitura e da Sucen tinham encontrado em 2015 os mosquitos Haemagogus leucocelaenus e Sabethes melanonymphe, as principais espécies transmissoras do vírus da febre amarela, no Parque Anhanguera e na Cantareira. “Os mosquitos se alimentam do sangue de macacos que vivem na copa das árvores, descendo à superfície apenas quando falta alimento ou o vento os empurra, picando ao acaso outros animais, incluindo as pessoas”, explica o biólogo Mauro Marrelli, professor da Faculdade de Saúde Pública da USP.
A morte de saguis e macacos-prego no interior do estado e de bugios nos municípios próximos à capital intensificou o trabalho conjunto de especialistas de instituições de pesquisa e equipes das secretarias estaduais e municipais de saúde e do meio ambiente, a Polícia Florestal e a Guarda Civil Metropolitana. Em junho de 2017, a Coordenadoria de Vigilância Sanitária, por meio de um comunicado, definiu as atribuições e os procedimentos das equipes da Secretaria de Saúde do município. No final de julho, a médica Helena Keiko Sato, diretora de imunização da SES-SP, fez uma palestra para funcionários de órgãos públicos e de empresas que trabalham no Horto, contíguo a outra área de mata, a Cantareira, a maior floresta urbana do país, com 80 quilômetros (km) quadrados, que abarca os municípios de São Paulo, Mairiporã, Caieiras e Guarulhos (ver Pesquisa FAPESP nº 207). Ela falou do surto em São Paulo e da campanha de vacinação, realizada no final de agosto. Em seguida, Carvalho, do Instituto Florestal, informou sobre os procedimentos a serem tomados quando achassem macacos mortos no interior ou na vizinhança dos parques.
Resposta rápida
Por ter participado da palestra, um funcionário responsável pela limpeza das matas, Manoel Ferreira Costa, soube o que fazer na manhã do dia 9 de outubro, ao encontrar um bugio morto em meio a uma plantação de eucalipto, a meia hora de caminhada da entrada do arboreto Vila Amália, uma mata do Horto anexa a um bairro com cerca de 3 mil moradores – em muitos trechos não há muros e os quintais das casas se fundem com a mata. Avisados, Carvalho e um dos biólogos do parque, Paulo Roberto dos Santos, foram buscar o animal. Costa os acompanhou e viram que era um macho de menos de 1 ano de idade, sem sinais de que tivesse sido agredido por cães ou por outros macacos, eletrocutado nos fios dos postes ou atropelado, e que devia ter morrido pelo menos dois dias antes. Carvalho avisou Juliana, do CeMaCAS, que logo depois recebeu o animal e retirou amostras do fígado, enviadas no mesmo dia para análise no Instituto Adolfo Lutz.
Souza, do Adolfo Lutz, recebe órgãos de bugios mortos no estado de São Paulo desde 2016, mas deu atenção especial àquele pedido de exame por ser o primeiro de uma cidade ainda sem sinais do vírus da febre amarela. Sua equipe extraiu o DNA, fez os exames e depois os refez para confirmar o resultado positivo para o vírus. Na manhã do dia 19 ele comunicou o resultado à biomédica Regiane Cardoso de Paula, diretora do Centro de Vigilância Epidemiológica da SES-SP. De imediato ela levou o resultado para o infectologista Marcos Boulos, coordenador da Coordenadoria de Controle de Doenças da SES-SP e professor da Faculdade de Medicina da USP.
O dia de reuniões com as equipes de saúde e do meio ambiente terminou com duas decisões: começar imediatamente a vacinação dos moradores das áreas próximas à mata onde o bugio tinha sido encontrado e fechar o Horto e a Cantareira para evitar o contato das pessoas com os mosquitos transmissores do vírus. No dia 20 de outubro, logo após o fechamento dos parques, as equipes do Instituto Florestal, da SES-SP e da Polícia Ambiental voltaram ao arboreto e encontraram mais três carcaças de bugios; dois dias depois, mais duas, indicando que todo o bando tinha sido eliminado. Na última semana de dezembro, depois de 10 macacos terem sido encontrados mortos no município de Itapecerica da Serra, ao sul da Grande São Paulo, outros 10 parques foram fechados, totalizando 26.
Repovoamento
As mortes de macacos devem continuar até maio, quando as chuvas acalmarem, dificultando a proliferação dos mosquitos transmissores do vírus. “A próxima batalha será o repovoamento das áreas antes ocupadas pelos bugios”, diz Juliana. Os 22 animais mantidos em compartimentos de 18 metros quadrados do CeMaCAS possivelmente serão estratégicos para repovoar as matas. Bácaro é o mais velho e o mais antigo da turma. Chegou adulto, em 2009, e formou uma família, composta por uma fêmea, um macho jovem e um filhote, que poderia ser solta nas áreas despovoadas. Os outros, como Abrolhos, de 6 anos, e Benjamin, de 5, chegaram filhotes e teriam de ser treinados para sobreviver na mata.
O surto de febre amarela em 2008 e 2009 causou uma perda de 80% dos grupos de bugios-pretos e ruivos no Rio Grande do Sul, de acordo com um levantamento da PUC-RS e da Universidade Federal de Santa Maria em 82 fragmentos florestais dos municípios de Bossoroca e Santa Maria. “Não encontramos indivíduos solitários, indicando que todo o grupo tinha morrido”, relatou Marques. Em 2009, para evitar a agressão das pessoas que pensavam que os macacos transmitiam a doença, Marques lançou uma campanha de proteção dos bugios, descrita em 2010 na Tropical Conservation Science.
Se não houver outra epidemia como essa, a população de bugios do Rio Grande do Sul talvez chegue em 100 anos à metade do que era antes de 2008, estimou a equipe de Santa Maria. Trata-se de um problema mundial. De acordo com um estudo de 2017 na Science Advances, das 504 espécies de primatas do mundo – concentradas no Brasil, Congo, Madagascar e Indonésia –, 75% apresentam declínio populacional e 60% estão em risco de extinção, em consequência de desmatamento, caça e doenças.
Chegando antes do vírus
Estratégia antecipa vacinação de moradores de áreas de risco
Com base nas datas e localização das mortes dos macacos, o veterinário e epidemiologista Adriano Pinter, pesquisador da Sucen, construiu um modelo epidemiológico que descreve o sentido, a velocidade de deslocamento e os prováveis caminhos – os corredores ecológicos funcionais – do vírus causador da febre amarela. Seus mapas embasaram a decisão da Secretaria de Saúde de deixar de lado a estratégia recomendada por organismos internacionais – vacinar todos os moradores em um raio de 30 quilômetros (km) do ponto em que o animal morto foi encontrado – e vacinar somente os moradores das áreas de risco, até mesmo antes de aparecerem os macacos mortos que indicam a chegada do vírus.
“Essa estratégia tem se mostrado bastante adequada”, diz a médica Helena Keiko Sato, diretora técnica da divisão de imunização da SES-SP. “Em abril de 2017, não tínhamos como vacinar 3,5 milhões de pessoas na região de Campinas, a maioria delas fora das áreas de risco. Com base nos corredores ecológicos, vacinamos apenas 1,4 milhão, nas áreas de risco de Campinas e dos municípios vizinhos.” Além de permitir a otimização do uso dos estoques de vacinas, esse método poderia reduzir as potenciais reações adversas severas à vacina em pessoas com doenças autoimunes ou alérgicas a ovo; o risco de reações adversas severas é de uma pessoa para cada grupo de 400 mil vacinadas, quatro vezes menor que o índice aceitável para as vacinas.
Até janeiro de 2018, o vírus moveu-se no sentido norte-sul a velocidade de 2,7 km por dia nos meses mais quentes e de 0,5 km por dia nos mais frios. Com base nessas informações, os especialistas da Secretaria de Saúde definem as áreas de maior risco e iniciam a vacinação, em colaboração com os órgãos municipais de saúde, antes de aparecerem os macacos mortos. “Em Jundiaí, a vacinação começou no início de maio e o primeiro macaco morto foi encontrado em 30 de julho. Em Mogi das Cruzes, ainda não temos sinal do vírus, mas começamos a vacinação em dezembro”, diz a biomédica Regiane Cardoso de Paula, diretora do Centro de Vigilância Epidemiológica da SES-SP. “Podemos agir por antecipação, sabendo onde e quando o vírus vai chegar.”
O modelo epidemiológico previa a chegada do vírus à capital em outubro ou novembro. “Tivemos sorte de encontrar um bugio morto no meio de uma mata na cidade de São Paulo”, comentou Pinter. Segundo ele, os primeiros animais infectados pelo vírus morrem no interior das matas e passam despercebidos. O vírus só é notado cerca de dois meses após sua chegada, quando muitos animais começam a morrer nas bordas das matas e são vistos pelos moradores dos bairros periféricos. O fato de um animal ter sido encontrado em outubro no Horto Florestal antecipou as medidas preventivas contra o vírus.
As equipes dos órgãos de saúde esperam evitar outras mortes de pessoas com as campanhas de vacinação nas prováveis áreas de expansão do vírus em 2018 (ver mapa). Se as previsões estiverem corretas, o vírus deve chegar em fevereiro à zona sul da capital, à região de Sorocaba e ao Vale do Paraíba. A SES-SP comunicou em janeiro que deverá fracionar a vacina, sem prejudicar seu efeito protetor, para atingir o maior número possível de pessoas, como foi feito na África. Quem mora ou circula em regiões com matas deve tomar a vacina, que ativa a produção de anticorpos contra o vírus somente sete a 10 dias depois de aplicada.
Projeto
1. Biodiversidade de mosquitos (Diptera: Culicidae) no Parque Estadual da Cantareira e na área de proteção ambiental Capivari – Monos, estado de São Paulo (nº 14/50444-5); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Mauro Toledo Marrelli (USP); Investimento R$ 272.905,54.
Artigos científicos
BICCA-MARQUES, J. C.; FREITAS, D. S. The role of monkeys, mosquitoes, and humans in the occurrence of a yellow fever outbreak in a fragmented landscape in south Brazil: Protecting howler monkeys is a matter of public health. Tropical Conservation Science. v. 3, n. 1, p. 78-89. 2010.
ESTRADA, A. et al. Impending extinction crisis of the world’s primates: Why primates matter Alejandro Estrada. Science Advances. v. 3, n. 1, e1600946. 2017.
MUCCI, L. F. et al. Haemagogus leucocelaenus and other mosquitoes potentially associated with sylvatic yellow fever in Cantareira State Park in the São Paulo Metropolitan Area, Brazil. Journal of the American Mosquito Control Association. v. 32, n. 4, p. 329-32. 2016.