FABIO COLOMBINIQuem já tentou esmagar uma daquelas moscas esverdeadas que insistem em incomodar nos churrascos sabe que não é fácil. É que o tempo de reação desses insetos é muito menor que o dos seres humanos: a mosca se prepara para desviar de um tapa em 30 milésimos de segundo, enquanto demoramos ao menos quatro vezes mais para redirecionar a mão e tentar acertá-la. Medindo a transmissão de impulsos elétricos emitidos por um neurônio associado à visão de moscas-varejeiras, um trio de físicos começa a desvendar como as informações captadas pelos olhos do inseto conseguem chegar tão rapidamente – e preservadas a ponto de conservar os dados essenciais sobre o ambiente – ao sistema nervoso central, responsável pelo comando para mudar a inclinação das asas e alterar a direção de vôo, escapando do mata-moscas.
Na Universidade de São Paulo em São Carlos, interior do estado, o físico Roland Köberle submeteu moscas-varejeiras da espécie Chrysomya megacephala a sessões de 40 minutos de vôo simulado. Em um trabalho quase de artesão, ele prende a mosca em um tubo de plástico pela parte do corpo que corresponderia aos ombros e insere eletrodos microscópicos em um par especial de neurônios localizados na cabeça do inseto: os neurônios H1, sensíveis a movimentos que ocorrem na direção horizontal e permitem à mosca saber se está fazendo uma curva para a direita ou para a esquerda. Se a mosca voa em linha reta, esses neurônios disparam sinais elétricos (pulsos nervosos) com a mesma freqüência. Quando desvia o vôo para o lado direito, por exemplo, aumenta a freqüência de pulsos emitidos pelo neurônio do lado direito. O mesmo ocorre com o neurônio da esquerda se ela se movimenta para o lado contrário.
Em cada sessão a mosca assiste a uma espécie de videoclipe ultra-rápido em um monitor especial, no qual barras verticais que aparecem em posições variadas à direita ou à esquerda a cada 2 milésimos de segundo recriam para o inseto a sensação de se encontrar em pleno vôo. Ao mesmo tempo, um computador registra os sinais elétricos que os neurônios H1 disparam como reação a mais de 1mi-lhão de estímulos visuais que a mosca recebe durante o experimento. A análise desses pulsos elétricos mostrou que todos têm características semelhantes. O que muda é o intervalo que separa um pulso de outro, uma espécie de silêncio neural, que variou de 2 a 200 milissegundos. “Os intervalos curtos sugerem a necessidade de resposta rápida aos estímulos visuais, já os longos aparecem quando o neurônio não está sendo estimulado”, diz Köberle. A comparação desses dados brutos, porém, não trazia muita informação para o pesquisador porque a variação desses intervalos era muito grande: o silêncio neural mais longo durava cem vezes mais que o mais curto.
Letras e números
Köberle decidiu então reagrupar esses intervalos não mais pela unidade de duração (milissegundo), mas por faixas de duração, que geralmente compreendiam vários milissegundos. Para simplificar, atribuiu uma letra do alfabeto a cada uma dessas faixas e passou, por exemplo, a chamar de a os intervalos com até 4 milissegundos de duração, de b aqueles entre 5 e 20 milissegundos, e assim sucessivamente. Por meio de cálculos feitos em parceria com outros dois físicos brasileiros – Murilo Baptista, atualmente na Universidade de Potsdam, Alemanha, e Celso Grebogi, professor da Universidade de Aberdeen, na Escócia –, Köberle constatou que 15 letras ou menos já representariam toda aquela variedade de silêncios neurais. Melhor ainda: quatro letras diferentes (a, b, c, d) bastavam, desde que associadas a palavras com até dez letras, compreensíveis apenas pelos neurônios.
Ao traduzir as seqüências de pulsos elétricos e silêncios emitidos pelos neurônios H1 da varejeira para esse alfabeto neural, Baptista, Grebogi e Köberle encontraram por fim alguma ordem por trás da aparente confusão. Os pulsos e intervalos se repetiam segundo padrões que voltavam a aparecer em escalas cada vez menores – por exemplo, aaabbbccc, aabbcc, abc. Conhecido como multifractal, esse padrão é semelhante ao que se observa no desenho formado pela espuma de um café cremoso perturbada por uma colher em movimento e pode ser descrito pelas fórmulas matemáticas da Teoria de Sistemas Dinâmicos, mais conhecida como Teoria do Caos. Os físicos avaliaram ainda a probabilidade de as diferentes seqüências possíveis se agruparem em palavras reconhecidas apenas pelos neurônios e confirmaram que, por razões ainda desconhecidas, conjuntos específicos de letras aparecem mais do que outros.
“Começamos a identificar uma linguagem que, no futuro, pode permitir compreender como essas seqüências de sinais elétricos e pausas são interpretadas pelo cérebro da mosca”, afirma Köberle, coordenador do estudo que apresentou esses resultados na Physical Review Letters de outubro de 2006. Em resumo, é o primeiro passo para entender como a mosca enxerga. Mas não apenas ela, também os animais com sistema nervoso mais complexo. Além da visão, essa linguagem que começa a ser decodificada pode explicar como chegam e são interpretados pelo sistema nervoso central os estímulos captados pelos órgãos do sentido que necessitam de resposta rápida e confiável, a exemplo da sensação de dor ao pisar num prego, que em menos de um segundo percorre 2 metros de células nervosas até o cérebro, onde é interpretada. “Acreditamos que essas propriedades sejam universais”, explica Köberle. “Se uma rede funciona bem em um determinado nível, a natureza em geral a reproduz em níveis superiores, às vezes, com adaptações.”
O Projeto
Explorando o código neural de mosca (nº 02/03565-4); Modalidade: Projeto Temático; Coordenador: Roland Köberle – Instituto de Física de São Carlos/USP; Investimento: R$ 179.742,12