MONTAGEM DE FOTOS DE MIGUEL BOYAYAN (CUBO MÁGICO) E NASA/HST
Em meio à constelação dos Cães Caçadores, nesta época do ano visível no céu do hemisfério Norte após o início da noite, há uma galáxia espiral semelhante à Via Láctea que há décadas instiga a curiosidade de astrônomos e astrofísicos. Identificada pelo astrônomo francês Pierre Méchain em 1781 e catalogada sob o número 94 por seu mestre, Charles Messier, essa galáxia conhecida pela sigla M 94 se parece com a maioria das galáxias espirais. Distante apenas 15 milhões de anos-luz da Terra, ela abriga dezenas de bilhões de estrelas em uma região esférica central (o núcleo) e outras dezenas de bilhões em um disco achatado de gás e poeira. Ocupando uma área menor que a do Sistema Solar, a região mais central dessa galáxia emite um tipo de luz diferente da produzida pelas estrelas. Esse brilho concentrado em espaço tão restrito costuma indicar a presença de um gigantesco buraco negro, que sorve continuamente a matéria de estrelas e nuvens de gás e poeira ao redor. A luminosidade vem do movimento da matéria que está para ser absorvida: próximo ao buraco, ela espirala a velocidades tão elevadas que se transforma em energia e escapa para o espaço na forma de radiação eletromagnética – da mais tênue, como as ondas de rádio, à mais energética, como os raios gama, passando pela luz visível.
Nas últimas décadas diversos grupos de pesquisa do Brasil e do exterior sondaram as entranhas dessa galáxia, também conhecida pela sigla NGC 4736, com os mais potentes telescópios disponíveis, sem, no entanto, localizar o buraco negro que esperavam encontrar. Alguns astrofísicos chegaram a propor outros mecanismos para explicar a origem de tanta luminosidade, como a colisão de ventos ultrarrápidos ou a transferência de energia das estrelas para as nuvens de gás (fotoionização). Mas as evidências recentes continuavam a indicar que os buracos negros devem estar na origem da maior parte das galáxias, servindo como uma espécie de suporte sobre o qual se estruturam.
Depois de quase três anos analisando imagens obtidas com um dos maiores telescópios ópticos em terra – o Gemini Norte, instalado nas montanhas de Mauna Kea, no Havaí, com um espelho de 8,1 metros de diâmetro –, o astrofísico brasileiro João Steiner finalmente obteve provas inequívocas de que a M 94 abriga de fato um buraco negro voraz, um dos mais próximos do Sistema Solar. Mas, para surpresa de todos, Steiner inclusive, ele não se encontra onde os pesquisadores acreditavam que deveria estar.
Com massa milhões de vezes superior à do Sol concentrada em um espaço reduzido, os buracos negros exercem uma atração gravitacional muito intensa sobre as estrelas mais próximas, e podem até mesmo consumir as que se aproximam demais. Virtualmente presas a eles pela gravidade, as estrelas vizinhas contribuem para atrair as mais distantes – e assim sucessivamente, como se os buracos negros fossem ímãs colossais que estruturam a galáxia. Por essa razão, imagina-se que sejam o centro das galáxias. Mas não foi o que Steiner e sua equipe viram. Na M 94, o buraco negro não está no centro, mas um pouco deslocado (cerca de 10 anos-luz) para a periferia. “Era tão óbvio que ele deveria se encontrar no centro da galáxia que jamais se imaginou que estivesse em outro lugar”, comenta Steiner, professor do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP).
O achado do grupo de Steiner não se deve apenas ao poder de ampliação de imagens do Gemini, telescópio que ele próprio ajudou a construir e no qual os pesquisadores brasileiros dispõem de aproximadamente 20 noites de observação por ano. Resulta principalmente de uma estratégia de análise de informações aprimorada pelo astrofísico da USP e sua equipe nos últimos dois anos e apresentada em artigo publicado este mês na Monthly Notices of the Royal Astronomical Society. Em colaboração com os astrofísicos Roberto Menezes e Tiago Ricci, da USP, e Alexandre Oliveira, da Universidade do Vale do Paraíba, no interior de São Paulo, Steiner aprimorou um método estatístico adotado em outras áreas da ciência (a análise de componentes principais) e o utilizou para filtrar a imensa quantidade de dados gerada por uma poderosa técnica de observação astronômica recente, a espectrografia de campo integral.
Na espectrografia de campo integral, a imagem de uma área do céu equivalente à da ponta de um lápis vista à distância de um metro é focalizada sobre um conjunto de lentes microscópicas conectadas por fibra óptica a um poderoso espectrógrafo. Esse aparelho decompõe a luz nos diferentes níveis de energia do espectro eletromagnético.
Filtro de luz
No caso do Gemini Norte, a luz captada de uma estrela ou galáxia converge para 500 microlentes, que, unidas, cabem na superfície de uma moeda de dez centavos. Cada microlente recebe a luz de um ponto distinto dessa imagem e a separa em 6 mil níveis de energia, que indicam a quantidade e a variedade de elementos químicos encontrados naquela região do espaço. Identificar a composição química de uma determinada região é importante porque, a rigor, tudo o que existe no Universo, das estrelas aos seres vivos, é formado por diferentes combinações de 116 elementos químicos originados no interior das estrelas.
MIGUEL BOYAYANA espectrografia de campo integral, no entanto, gera um volume absurdamente grande de dados, milhões de vezes maior do que os obtidos com as estratégias de investigação dos céus que fizeram a astronomia avançar no século passado. O problema então deixou de ser como obter informação e passou a ser o que fazer com tanta informação – uma espectrografia de campo integral do Gemini produz 30 milhões de dados para cada imagem. “Não se conseguia interpretar toda essa informação e a maior parte era simplesmente descartada”, explica Steiner.
Até a década de 1990 o conhecimento sobre os planetas, as estrelas e as galáxias progrediu impulsionado por duas técnicas usadas separadamente: a observação por meio de telescópios com poder de ampliação centenas de vezes superior ao dos usados por Galileu no início do século XVII e pela análise da luz dos objetos celestes por meio da espectrografia, desenvolvida pelo físico alemão Robert Bunsen em fins do século XIX. Equipamentos mais sofisticados permitiram unir as duas técnicas, inicialmente fornecendo aos pesquisadores informações sobre o espectro da luz – e consequentemente da composição química – de um único ponto de cada imagem.
Um astrofísico que, além da forma, desejasse conhecer minimamente a composição química e a população de estrelas de uma galáxia como a M 94 precisava fazer medições do espectro em diferentes pontos dela. Era um processo lento e trabalhoso como o enfrentado por quem tenta conhecer a temperatura da água de um lago mergulhando um termômetro em vários pontos. Com o aprimoramento da espectrografia, tornou-se possível obter, de uma única vez, os dados de energia ao longo de toda uma linha imaginária que corta o objeto observado e, agora, com a espectrografia de campo integral, de toda a sua superfície.
As informações obtidas por essa forma de espectrografia geralmente são representadas por um gráfico tridimensional com eixos perpendiculares entre si que tem a forma de cubo, razão por que é conhecido entre os especialistas como cubo de dados. É um gráfico semelhante àquele em que se representam as três grandezas espaciais (largura, altura e profundidade) da sala de uma casa. Nos cubos de dados construídos com informações de imagens de astronomia, porém, apenas duas das dimensões são espaciais (altura e largura), uma vez que as imagens obtidas pelos telescópios são bidimensionais. A terceira dimensão, que corresponderia à profundidade, costuma ser representada pelos níveis de energia (espectro). “O problema com os cubos de dados gerados com essa técnica tem sido avaliar a quantidade absurda de informações de modo que se consiga extrair algum significado físico delas”, comenta o astrofísico Keith Taylor, do Observatório Anglo-australiano, em Epping, Austrália, um dos pioneiros no uso de cubos de dados em astronomia.
Foi em 2007 que Steiner, com imagens do Gemini em mãos e inconformado com a falta de uma ferramenta matemática que permitisse utilizar a montanha de dados que havia conseguido, saiu em busca de uma solução. Testou diversas alternativas e notou que a análise de componentes principais poderia ser útil. “Essa ferramenta estatística procura associações entre os dados nem sempre claramente relacionados e permite eliminar as redundâncias, comuns nas espectrografias de campo integral de uma galáxia”, explica o astrofísico Roberto Cid Fernandes, da Universidade Federal de Santa Cantarina (UFSC). “Por eliminar o desnecessário, a análise de componentes principais torna possível usar o mínimo de dados para representar o fenômeno com o máximo de realismo possível”, completa Fernandes, outro colaborador de Steiner, que anteriormente havia procurado sem sucesso o buraco negro da galáxia M 94 e proposto uma explicação alternativa para o brilho da região central da galáxia.
Truque matemático
“Na análise de dados distribuídos em várias dimensões, essa ferramenta estatística localiza primeiro as que concentram o maior número de informações e em seguida as que reúnem o segundo maior grupo, e assim sucessivamente”, diz o astrofísico Laerte Sodré Júnior, da USP, especialista na aplicação da análise de componentes principais à astronomia. É como se o levantamento da coleção de livros de uma casa indicasse que ela pode ser mais bem representada em primeiro lugar pelos exemplares da biblioteca, em segundo lugar pelos livros da estante da sala e em terceiro pela pequena pilha ao lado da cama. Em resumo, uma estratégia de reorganizar os dados por quantidade e relevância.
Só a ferramenta estatística, porém, não resolve as dificuldades impostas pela análise do cubo de dados. Steiner, Menezes, Ricci e Oliveira desenvolveram, então, um procedimento matemático que realça as características atenuadas das imagens astronômicas. “Esse aprimoramento resultou em uma forma poderosa de extrair informação do cubo de dados”, conta Steiner. Ele aposta até mesmo que essa abordagem ultrapasse a astrofísica e se torne útil em outras áreas da ciência, que, apesar de distintas, muitas vezes estruturam a informação de modo semelhante.
Segundo Steiner, as dez primeiras imagens são suficientes para recuperar 99,9% da informação contida no cubo de dados, que, no caso da galáxia M 94, contém 6 mil imagens. Essa abordagem também ajuda a selecionar e reagrupar os dados que interessam, removendo o que não interessa, como se fossem sucessivos filtros. Para chegar ao buraco negro da galáxia M 94, o grupo de Steiner eliminou o primeiro grupo de dados, que representavam todas as estrelas, e em seguida a informação sobre o gás e a poeira. Só então conseguiram observá-lo. “As evidências de que esse buraco negro de fato existe nunca foram tão convincentes”, comenta Fernandes, da UFSC. “Como o sinal que ele emite é muito fraco, os métodos tradicionais não conseguiriam encontrá-lo.”
Essa estratégia é um tanto diferente da adotada habitualmente na astrofísica e em outras áreas da ciência. Em geral, o pesquisador formula uma pergunta e usa os métodos disponíveis à procura da resposta. Com essa abordagem, diz Steiner, a resposta é dada sem que a pergunta seja feita. “O complicado é saber interpretar os resultados que a técnica mostra”, acrescenta Fernandes. Eles nem perguntaram se havia um buraco negro na M 94.Simplesmente o encontraram, escondido onde ninguém pensaria em procurar, de modo semelhante ao que observaram em outra galáxia, a M 58 ou NGC 4579, localizada na constelação de Virgem.
Em um trabalho de arqueologia estelar recém-concluído, Steiner e Fernandes propõem uma explicação para o buraco negro da M 94 se encontrar onde não deveria estar: formada há 12 bilhões de anos, na infância do Universo, a M 94 colidiu 2 bilhões de anos atrás com uma galáxia menor. O encontrão de proporções cósmicas deslocou o buraco negro de sua posição original. “Quando ele atingir o equilíbrio”, diz Steiner, “retornará para o lugar em que deveria estar, no centro da galáxia, ainda que isso leve 1 milhão de anos”.
Os projetos
1. Diferenciação de modelos para Liners (06/05203-3); Modalidade: Bolsa de mestrado; Orientador: João Steiner – IAG-USP; Bolsista: Roberto Bertoldo Menezes; Investimento: R$ 32.026,4.
2. Análise de componentes principais de uma amostra de galáxias Seyferts próximas (05/03323-9); Modalidade: Bolsa de mestrado: Orientador: João Steiner – IAG/USP: Bolsistas: Tiago Vecchi Ricci; Investimento: R$ 31.829,4.
Artigo científico
STEINER, J. E. et al. PCA Tomography: how to extract information from datacubes. Monthly Notices of the Royal Astronomical Society. v. 370. mai. 2009.