Há algo de comum entre as flutuações dos valores das ações negociadas em bolsas e a distribuição dos nucleotídeos numa molécula de DNA, entre as órbitas dos planetas do sistema solar e a arritmia cardíaca, entre o funcionamento de ferramentas industriais e a transmissão de sinais de comunicação: o que aproxima esses fenômenos tão diversos é sua natureza caótica. Hoje se sabe que os fenômenos caóticos são não apenas previsíveis até certo ponto – ao contrário dos aleatórios, totalmente imprevisíveis -, como potencialmente controláveis. Assim, o caos pode ser um aliado que permita ao ser humano exercer mais livremente sua criatividade: as aplicações potenciais do controle do caos se espalham por áreas como o mercado financeiro, a telecomunicação, a engenharia mecânica e a genética.
Na vanguarda atual das aplicações da teoria do caos está o físico brasileiro Celso Grebogi, que passou duas décadas em instituições americanas de pesquisa e publicou cerca de 250 artigos sobre o tema, em revistas como Nature, Science e Physical Review Letters. Em março de 1990, Grebogi e seus colegas Edward Ott e James Yorke, na Universidade de Maryland, revelaram a possibilidade de se controlar o caos. O impacto da idéia, publicada pela Physical Review Letters, foi expressivo. Em poucos meses, grupos experimentais de outras instituições passaram da idéia à prática em vários campos.
Versatilidade
Agora, no Instituto de Física da Universidade de São Paulo (Ifusp), o paranaense Grebogi integra uma equipe – com os veteranos Iberê Luiz Caldas e José Carlos Sartorelli, mais o jovem pós-doutorando Murilo da Silva Baptista – que desenvolve um projeto temático sobre o caos. As contribuições do grupo incluem um modelo da dinâmica do mercado financeiro, os fundamentos teóricos de um sistema de comunicação, um estudo experimental da formação de bolhas destinado a aperfeiçoar processos industriais e um modelo da dinâmica das misturas, cujas possibilidades vão da criação de plâncton à produção de tintas.
O desenvolvimento da dinâmica caótica permite algo considerado impossível: prever o comportamento do pregão da bolsa de valores. A confiabilidade do programa feito pela equipe da USP se estende por um período de até dois meses (ver gráfico na página seguinte). “As oscilações da bolsa estão quase na borda da aleatoriedade. Elas são, como se costuma dizer, totalmente caóticas ou supercaóticas”, afirma Baptista. “É um sistema turbulento, com muitas variáveis. É impossível conhecer todas, mas no conjunto sua recorrência é típica de um sistema com poucas variáveis.” Por essa razão, os físicos não pretendem determinar qual será o valor de cada ação individual, mas conseguem prever quanto tempo o sistema como um todo precisa para voltar ao seu estado atual.
Caldas completa: “O tempo médio para que as ações voltemaapresentar determinado ganho ou perda relaciona-se com a amplitude das oscilações por meio do mesmo tipo de estatística que permite estimar onde determinado nucleotídeo deverá recorrer na cadeia do DNA. Trata-se de uma distribuição de Poisson, uma função de probabilidade que determina a freqüência de um evento, algo bem conhecido pelos matemáticos”.
Comunicação caótica
A área das telecomunicações é outra em que o uso do caos é altamente promissor e no qual o time do Ifusp tem um trabalho experimental e teórico bastante avançado. “Com um oscilador de potência, produz-se uma onda caótica”, descreve Baptista. “Por meio de pequenas perturbações, é possível fazer com que essa onda fique acima ou abaixo de um certo patamar. Convenciona-se que, se ela ficar acima, isso significa ‘1’ e, se ficar abaixo, ‘0’. Dessa forma, temos tudo o que é necessário para estabelecer uma comunicação binária.”Qual a vantagem disso? Baptista responde: “Na comunicação linear tradicional, a perda de uma parte da onda é irrecuperável, pois é impossível saber se perdemos um ‘0’ ou um ‘1’. Num sistema caótico, isso não acontece. Cada estado do sistema depende do anterior. De modo que, ao menos como probabilidade, é sempre possível reconstituir o material perdido.”
Com a onda caótica, diz ele, todas as exigências dos protocolos (etapas) de comunicação são realizadas simultaneamente, enquanto para o mesmo resultado com ondas lineares o processo se realiza seqüencialmente. Além disso, a produção da onda caótica demanda um mínimo de energia, enquanto seu uso aumenta significativamente a capacidade do canal, porque permite transmitir numa linha cheia de ruídos como se eles não existissem. E essa é uma forma de comunicação natural, que caracteriza, por exemplo, a troca de íons entre as células.
Gotas e bolhas
Em outra frente de pesquisa, Sartorelli refez com requintes um experimento com gotas criado nos anos 80 por Robert Shaw, da Universidade Santa Cruz, Estados Unidos. Shaw estudou o gotejar de uma torneira de água e, ao anotar o intervalo de tempo em que a gota cai, constatou que era um fenômeno caótico. Sartorelli montou um aparato refinado – caixas d’água, cilindros com uma mistura de água e glicerina e um monitor – que lhe mostrou como gotas e bolhas se formam e comprovou a existência e o comportamento de sistemas caóticos.
A partir daí, estudou a formação de bolhas de ar numa coluna líquida e deduziu um modelo matemático de aplicações bem amplas. Pode ajudar no controle e na qualidade da produção de derivados de petróleo, com ganhos na eficiência da destilação de nafta. No processo de fermentação de bebidas e alimentos, permite acentuar o sabor de bebidas gasosas ou obter maior rendimento na preparação de pães. Ao ajudar a prevenir a formação de bolhas na circulação sanguínea, permite aos mergulhadores ir mais fundo e por mais tempo.
Bendito caos
Nem sempre interessa controlar o caos. Às vezes, é mais vantagem provocá-lo. Para controlar a epilepsia, por exemplo. O estado epiléptico é um fenômeno periódico pelo qual, recrutados por um foco, cada vez mais neurônios passam a atuar sincronizadamente, o que é anormal. Numa situação dessas, que pode danificar osistema nervoso, o cérebro lança mão de mecanismos que possam romper essa sincronia e recuperar o funcionamento caótico normal. Essa é também a função dos medicamentos anticonvulsivos. Para a equipe da USP, é possível obter um efeito análogo se, em vezdeapostar na inibição dos neurônios, comunicar a eles um pequeno estímulo suplementar, capaz de desorganizar sua atividade uníssona e reinstalar o caos no sistema.
O uso neurológico do caos induzido ainda é especulação, mas nos Estados Unidos o trabalho da equipe de Grebogi inspirou um experimento valioso. Pesquisadores da Universidade da Califórnia demonstraram que se pode usar o controle do caos para direcionar a atividade cardíaca. Por meio de uma droga, induziram batimentos caóticos em corações de coelhos e, com pequenos impulsos elétricos, levaram os corações de volta a estados periódicos normais, manipulando essa condição: ao seu comando, os corações batiam mais depressa ou mais devagar. Uma das possibilidades abertas pelo experimento é a de implantar um dispositivo junto ao coração para detectar alguma anomalia e levá-lo outra vez ao batimento periódico. “Teríamos, dessa forma, um marcapasso inteligente”, imagina Grebogi.
O extraordinário potencial de um sistema caótico decorre de sua versatilidade. A partir de uma dada configuração, pode evoluir de muitos modos. Um exemplo é a molécula de DNA: combinando apenas quatro nucleotídeos, formam-se milhares de proteínas distintas.
Ordem oculta
Grebogi e seus colegas norte-americanos mostraram que se pode direcionar o andamento de sistemas caóticos por meio de pequenas intervenções – em vez de brigar com o caos, tirar partido dele. “Escolhemos um dos desenvolvimentos possíveis do sistema e o induzimos com estímulos adequados”, resume. Isso só acontece porque há sempre uma ordem escondida no caos. É importante sublinhar isso, pois o senso comum costuma confundir fenômenos caóticos com fenômenos aleatórios.
Há três tipos de sistemas: os periódicos, os aleatórios e os caóticos. Os periódicos são aqueles cuja evolução é totalmente previsível. É o caso do pêndulo simples: conhecendo alguns parâmetros, pode-se saber qual será sua posição, a cada instante.Já os sistemas aleatórios evoluem de modo totalmente imprevisível. De pouco vale conhecer o seu estado inicial: é impossível saber qual será o estado subseqüente, como acontece com o lance de dados, que pode resultar, com igual probabilidade, em seis números distintos.
Os sistemas caóticos situam-se entre esses extremos do vasto território que separa a periodicidade da aleatoriedade. Sua evolução só é previsível num restrito intervalo de tempo. A partir daí, a alta sensibilidade a pequenas perturbações inviabiliza as previsões. É o caso da órbita de Hipérion, uma das luas de Saturno. “Se viajássemos para lá, jamais chegaríamos”, diz Grebogi. “Ao longo do tempo, a discrepância entre a posição prevista e a posição real cresce exponencialmente”.
Pequenas perturbações
Por suas respostas não serem proporcionais aos estímulos, os sistemas caóticos também são chamados não-lineares – a não-proporcionalidade impede que a relação “resposta versus estímulo” seja representada graficamente por uma linha reta.Esses sistemas se subdividem em dois grupos: um é o dos naturalmente caóticos (ondas cerebrais, as trajetórias dos planetas e as flutuações do mercado financeiro), o outro é o dos sistemas que só se tornam caóticos quando estimulados. “Um mesmo sistema, como o gotejamento de água, pode ter comportamento periódico ou caótico”, diz Sartorelli.
A não-linearidade entre estímulo e resposta explica por que, nas fábricas de automóveis, os robôs funcionam lentamente. Qualquer tentativa de aumentar a velocidade introduz em seu movimento um termo não-linear que o faz afastar-se da trajetória estabelecida e errar a tarefa.
É justamente essa sensibilidade a pequenas perturbações que permite controlar os sistemas caóticos. Basta usar as perturbações inteligentemente para fazer o sistema responder do jeito que se quer, como já se faz nos Estados Unidos há algum tempo. “A ferramenta que corta folhas de alumínio para fazer latas de refrigerante possui um movimento caótico que tende a produzir cortes errados”, diz Grebogi. “Mas, com estímulos mínimos, pode-se eliminar a vibração indesejável do sistema.” Estima-se que o ajuste proporcione uma economia anual de milhões de dólares.
Elefante guiado com uma varinha
Com sua audácia em enveredar por territórios antes evitados pela ciência e seu inerente apelo à interdisciplinaridade, a teoria do caos tem sabor de coisa nova, de última geração. É verdade que as pesquisas na área só deslancharam na década de 1980, mas pouca gente sabe que essa teoria começou a tomar corpo há mais de 100 anos.
O precursor da dinâmica caótica foi o matemático francês Henri Poincaré (1854-1912), um homem míope, canhoto e desajeitado, que, entre outras façanhas, formulou antes de Einstein uma teoria especial da relatividade. “Ele estava envolvido com o estudo da trajetória da Terra, com o famoso problema dos três corpos (Sol, Terra e Lua) em atração gravitacional, que desafiava os cientistas desde a época de Newton. Ao investigar esse tema a fundo, Poincaré acabou por descobrir os principais conceitos da teoria do caos”, lembra Caldas.
Poincaré viveu na Paris da Belle Époque. Depois, as pesquisas do caos foram praticamente abandonadas, devido às enormes dificuldades de cálculo que envolvia. Com os computadores, o assunto voltou.”A tendência inicial dos cientistas era eliminar de suas equações os termos não-lineares”, sintetiza Grebogi. “Queríamos que um sistema físico ou uma máquina se comportassem de maneira periódica, previsível. Mas depois percebemos as vantagens do caos. Ele dá flexibilidade aos sistemas. Graças ao caos, é possível controlar sistemas muito grandes por meio de perturbações muito pequenas. É como guiar um elefante com uma varinha, dando uma pancada no lugar certo.”
Projeto
Dinâmica Não-Linear; Modalidade Projeto temático; Coordenador Iberê Luis Caldas – Instituto de Física da USP; Investimento R$ 99.120,00 mais US$ 61.852,00