O atual estágio de desenvolvimento científico e tecnológico já permite que a produção de bioenergia possa ser feita em larga escala no mundo. Mas, para que isso aconteça de fato, é necessária a adoção de políticas públicas que se preocupem com toda a cadeia de produção de energias renováveis, incluindo desde a questão do uso da terra e a eficiência das tecnologias de conversão de biomassa em energia até os desafios ambientais, econômicos e sociais envolvidos. Essa é uma das principais conclusões de um relatório sobre a implantação de sistemas de bioenergia no mundo, do qual alguns aspectos foram apresentados na abertura da segunda edição do Brazilian BioEnergy Science and Technology Conference (BBest), realizado entre 20 e 24 de outubro em Campos do Jordão (SP). Denominado Processo Rápido de Avaliação sobre Biocombustíveis e Sustentabilidade, o relatório foi elaborado por pesquisadores vinculados aos programas especiais da FAPESP de Pesquisa em Bioenergia (Bioen), de Pesquisas em Caracterização, Conservação, Restauração e Uso Sustentável da Biodiversidade (Biota) e de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais.
“As políticas públicas globais estão acenando para o fato de que precisaremos triplicar a produção da bioenergia moderna até 2030”, disse Glaucia Mendes Souza, pesquisadora do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP) e coordenadora do Bioen. Ela foi a responsável pela organização do relatório, feito em colaboração com cientistas de 24 países, sob a responsabilidade do Comitê Científico para Problemas do Ambiente (Scope, na sigla em inglês), parceiro da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). O documento final será divulgado nos dias 14 e 15 de abril de 2015, durante um seminário na FAPESP, que incluirá também o lançamento de um resumo para guiar políticas públicas.
O relatório destaca o papel da bioenergia na questão da segurança alimentar. Segundo o documento, a bioenergia moderna pode ter o condão de aumentar a produtividade da terra, ao integrar, por exemplo, a produção de milho e cana para produção de etanol, ou de soja e dendê para biodiesel, com a agricultura ligada ao abastecimento de alimentos. “A produção de bioenergia em áreas rurais mais pobres também pode impulsionar a economia local, criando empregos e mercado”, explica Glaucia Souza.
No entanto, o relatório ressalta que é preciso ter uma compreensão melhor dos impactos das medidas adotadas para o uso da terra na produção de bioenergia. Um mesmo tipo de biomassa, como a cana-de-açúcar, pode ter destinos diferentes – aquecimento, uso como combustível líquido, geração de eletricidade – e impactos também diferentes. Monitorar tais impactos é essencial. “Se, para plantar cana, forem depositadas toneladas de nitrogênio no solo, isso pode aumentar as emissões de gases de efeito estufa, como o óxido nitroso. Há que se tomar muito cuidado com as tecnologias utilizadas”, avaliou Reynaldo Victoria, professor da USP e membro da coordenação do Programa FAPESP de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais.
Um estudo ligado ao Bioen mostra que as emissões diretas de gases causadores do efeito estufa no cultivo de cana-de-açúcar no Brasil são inferiores às estimadas na literatura científica internacional. “As condições nas quais produzimos cana aqui não levam a grandes emissões de óxido nitroso”, diz Heitor Cantarella, pesquisador do Instituto Agronômico (IAC) e coordenador do estudo. No entanto, diz ele, o ideal é que os canaviais adotem soluções para reduzir ou mitigar as emissões do gás. Algumas estratégias começam a ser avaliadas pelo grupo de pesquisa de Cantarella no interior de São Paulo. Uma delas é não aplicar ao mesmo tempo fertilizante e vinhaça – um resíduo do processamento industrial do álcool –, já que a combinação de ambos leva à produção de óxido nitroso no solo. “A prática das usinas é aplicá-los simultaneamente, para acelerar o processo. É preciso mudar essa mentalidade”, afirma Cantarella. “A cana-de-açúcar continua sendo sustentável. Nosso objetivo agora é melhorar os indicadores dela em relação às emissões de gases do efeito estufa”, diz.
Versatilidade do etanol
A produção de bioenergia a partir de biomassa também pode contribuir para a recuperação e o aumento de recursos ambientais para a fauna de solos degradados. “Em algumas circunstâncias, quando pastagens degradadas são substituídas pelo cultivo de cana ou de eucalipto, isso pode permitir a recuperação do solo e, inclusive, um aumento de recursos para a fauna nessa área”, diz Luciano Verdade, professor da USP e membro da coordenação do Programa Biota-FAPESP, que também ajudou a fazer o relatório.
Em apresentações feitas por especialistas ao longo da semana no BBest, foram apresentados casos concretos que ilustram o potencial de aproveitamento de biomassa. Um deles é o uso do etanol de cana-de-açúcar para a obtenção de hidrogênio, que por sua vez poderá servir para alimentar carros movidos a célula a combustível. O projeto está em andamento no Laboratório de Hidrogênio da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que, em parceria com a empresa Hytron, busca desenvolver pequenas estações de extração de hidrogênio a partir do etanol comercializado em postos de gasolina. “A ideia é mostrar que o etanol é versátil e, na forma como é vendido hoje nos postos, pode ser utilizado de maneira mais eficiente”, explica Carla Cavaliero, professora da Unicamp e pesquisadora do laboratório.
Algumas montadoras, como Honda, Toyota e Hyundai, lançaram recentemente modelos movidos a célula a combustível. O custo da produção desses carros, no entanto, ainda é alto. Em países da Europa e nos Estados Unidos, a extração do hidrogênio é feita diretamente em alguns postos de gasolina, mas não a partir do etanol, e sim por meio da eletrólise (decomposição) da água. “A vantagem de se usar etanol para obter hidrogênio é que o Brasil já tem vantagem competitiva na produção do combustível a partir da cana, o que torna o processo mais barato”, diz a pesquisadora.
As possibilidades para a produção de biocombustíveis líquidos avançados também foram discutidas no BBest. Os participantes tiveram a oportunidade de conhecer os avanços da produção de etanol de celulose, feito a partir de resíduos agroindustriais, como bagaço de cana, no Brasil. Neste ano, duas empresas iniciaram a produção em escala comercial do etanol de segunda geração, como também é chamado o etanol celulósico. Uma delas é a GranBio, que inaugurou uma unidade de produção em Alagoas. Foram investidos cerca de US$ 190 milhões na parte industrial e mais R$ 300 milhões por parte do BNDES. A fábrica tem capacidade para produzir 82 milhões de litros de etanol anidro por ano e deverá operar de forma completa a partir de 2015. Outra iniciativa é o Centro de Tecnologia Canavieira (CTC), criado em 1969 pela Copersucar, que colocou em operação uma planta de demonstração de etanol de segunda geração, localizada em São Manoel, interior de São Paulo. A usina tem capacidade de processar 100 toneladas de biomassa de cana-de-açúcar por dia. O objetivo da unidade é apresentar o potencial da tecnologia desenvolvida pelo centro, que pode multiplicar a produção de etanol sem expandir a área plantada de cana.
Em 2008, o processo desenvolvido pelo CTC para obter etanol celulósico da cana foi patenteado, por representar uma diferença estratégica em relação aos métodos adotados por outras empresas que estão na corrida da pesquisa com etanol de segunda geração no país. O processo de hidrólise enzimática da celulose presente no bagaço e na palha será completamente integrado à estrutura existente da usina (ver Pesquisa FAPESP nº 208).
Enzimas
No entanto, ainda existem barreiras que impedem o avanço da produção do etanol de segunda geração numa escala industrial. “A principal dificuldade está relacionada às enzimas”, diz Jaime Finguerut, assessor técnico da presidência do CTC. A produção do etanol de segunda geração depende de enzimas utilizadas na quebra da lignina e das hemiceluloses das células da cana para obter a celulose e, em seguida, a glicose, possibilitando, assim, a fermentação do açúcar para a obtenção do etanol. “Existem poucas empresas fornecedoras dessas enzimas e o custo delas é muito alto, o que torna a produção do etanol celulósico mais cara”, diz Finguerut. Atualmente, o CTC, em parceria com a Embrapa e o Laboratório Nacional de Ciência e Tecnologia do Bioetanol (CTBE), buscam novos insumos para esse processo.
A programação do BBest não se limitou à discussão em torno dos biocombustíveis, como o etanol. O futuro das energias renováveis, como a eólica e a solar, também teve destaque em um dos dias do evento. A ideia era mostrar que existem outras formas de geração de eletricidade que podem complementar a produção de bioenergia feita a partir das biomassas. “Filmes fotovoltaicos, por exemplo, são flexíveis e podem ser acoplados na construção de casas e edifícios ou mudar a configuração das janelas, diminuindo ou aumentando a incidência de luz”, disse Helena Li Chum, brasileira radicada há 30 anos nos Estados Unidos, pesquisadora do Laboratório Nacional de energia Renovável do Departamento de Energia Norte-Americano. Segundo Helena, o processo de individualizar a captação e distribuição de energia é uma forma de atender às demandas específicas de diferentes setores da indústria.
Um exemplo de como energias renováveis podem interagir foi apresentado por Danny Krautz, do Berlin Partner for Business and Technology, agência alemã de apoio à inovação. Ele mostrou as vantagens das células fotovoltaicas cristalinas, tecnologia utilizada na fabricação de filmes de polímeros bem finos capazes de converter luz solar em energia elétrica com mais eficiência do que as placas solares de silício. “As células fotovoltaicas cristalinas já são usadas na Ásia, principalmente em áreas rurais. Elas são leves e fáceis de serem instaladas”, explica Krautz.
Assim como os filmes fotovoltaicos, as miniusinas eólicas também despontam como alternativas para a geração de energia elétrica de maneira descentralizada. Formadas por pequenas hélices de cinco metros de altura, elas chegam a pesar cerca de 800 quilos e podem ser instaladas em casas, fábricas ou pequenas comunidades. Jon Samseth, da Oslo and Akershus University College of Applied Sciences, na Noruega, explicou que a ideia desses projetos, muitos ainda em fase de elaboração, é apresentar uma alternativa ao modelo de distribuição centralizado de energia, como existe hoje. “A produção de eletricidade de forma descentralizada busca atender necessidades específicas, evitando desperdícios e altos custos”, disse ele. Um exemplo citado por Samseth é o NuScale SMR, um pequeno reator nuclear desenvolvido pela empresa americana NuScale Power. O equipamento, que só deve estar pronto para comercialização a partir de 2020, poderá ser transportado por caminhão ou trem e tem como objetivo atender pontualmente os clientes, como indústrias e hospitais. Com capacidade de gerar 540 megawatts de energia ao longo de 60 anos, o minirreator pode ser construído rapidamente e, em caso de acidente, os danos ambientais e econômicos são mais fáceis de ser controlados.
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