O laser era uma tecnologia ainda pouco conhecida nos anos 1950, no Brasil e no mundo. A possibilidade de usar radiação para estimular a produção de partículas de luz de modo concentrado em um feixe contínuo restringia-se a filmes e séries de ficção científica. Poucos foram os cientistas que conseguiram, àquela época, enxergar as múltiplas possibilidades de pesquisa e aplicação que o laser poderia vir a ter. Um deles foi o físico brasileiro Sérgio Porto, morto há 40 anos. Ainda hoje ele é considerado por físicos e historiadores da ciência o principal responsável por alguns dos avanços das pesquisas sobre essa tecnologia no mundo, bem como sua introdução no Brasil e aplicação em várias áreas do conhecimento para além da física.
Sérgio Pereira da Silva Porto (1926-1979) era filho de pescadores de Niterói, no Rio de Janeiro, onde nasceu. Graduou-se em química na antiga Faculdade Nacional de Filosofia (FNFi) da Universidade do Brasil – atual Universidade Federal do Rio de Janeiro – aos 20 anos de idade. Mudou-se para os Estados Unidos logo em seguida para fazer o doutorado em física na Universidade Johns Hopkins, em Baltimore. De volta ao Brasil, em 1954, iniciou sua carreira como professor de mecânica estatística no Departamento de Física do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), em São José dos Campos, interior de São Paulo.
Foi no ITA, em meados de 1959, que o físico brasileiro entrou em contato pela primeira vez com as bases teóricas do laser, por meio de um artigo publicado na revista Physical Review pelos físicos Arthur Schawlow (1921-1999) e Charles Townes (1915-2015), ambos do Bell Telephone Laboratories, ou Bell Labs, companhia com forte tradição de pesquisa básica orientada para a tecnologia situada em Nova Jersey, nos Estados Unidos (ver Pesquisa FAPESP nº 151). “Porto ficou muito animado com a nova ótica dada à luz e passou a fazer vários seminários sobre o assunto no ITA”, conta o físico e historiador da ciência Olival Freire Junior, do Instituto de Física e pró-reitor de Pesquisa da Universidade Federal da Bahia (UFBA). “A leitura desse artigo lhe abriu várias janelas de oportunidades ao longo de sua carreira e ele soube aproveitá-las todas muito bem para redefinir sua própria inserção no campo científico.”
O entusiasmo de Porto pelo laser resultou, naquele mesmo ano, na vinda de um grupo de pesquisadores do Bell Labs para dar algumas palestras no ITA. “Na visita, o físico brasileiro foi convidado para voltar para os Estados Unidos e trabalhar com Townes e Schawlow”, destaca Freire. O primeiro ganhou o Nobel de Física em 1964 pelas suas contribuições no campo da eletrônica quântica, o que levou à construção de osciladores e amplificadores baseados no princípio maser-laser. Já o segundo foi laureado com o Nobel de Física em 1981, pelas suas contribuições para a espectroscopia eletrônica de alta resolução.
Freire e o historiador da ciência Walker Lins de Santana, da UFBA, analisaram parte do trabalho de Porto e suas contribuições para a introdução do laser no Brasil em artigo publicado na Revista Brasileira de Ensino de Física. Freire explica que as condições de trabalho nas instituições científicas e universidades deterioravam-se à época no Brasil e isso contribuiu para que Porto aceitasse o convite para trabalhar no Bell Labs.
Ao ir para os Estados Unidos, Porto soube se colocar no lugar certo, na hora certa. As pesquisas envolvendo a nova tecnologia ganharam cada vez mais destaque a partir do início dos anos 1960 no mundo. Ao mesmo tempo, o físico brasileiro pôde trabalhar e interagir com alguns dos mais destacados pesquisadores dessa área – vários deles foram mais tarde laureados com o Nobel de Física por suas contribuições para o avanço das pesquisas sobre o laser, como o holandês Nicolaas Bloembergen (1920-2017) e o soviético Aleksandr Mikhailovich Prokhorov (1916-2002).
Segundo o físico Ado Jorio, do Departamento de Física e pró-reitor de Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), foi no Bell Labs que Sérgio Porto desenvolveu uma de suas principais linhas de pesquisa e também onde o físico brasileiro teve seus anos mais produtivos. Suas contribuições envolveram o uso do laser no chamado efeito – ou espalhamento – Raman, fenômeno observado experimentalmente em 1928 pelo físico indiano Chandrasekhara Venkata Raman (1888-1970), Nobel de Física em 1930. A técnica passou a ser usada para se obter informações acerca da estrutura molecular de diversos materiais.
Nos Estados Unidos, Porto se projetou como liderança mundial nas múltiplas formas de aplicação do laser
O espalhamento acontece quando partículas de luz (fótons) se chocam com moléculas de gás, líquido ou sólido. Seu uso no estudo das propriedades dos materiais era algo limitado em laboratórios justamente pela dificuldade de se obter uma boa e intensa fonte de luz monocromática. Porto soube identificar o potencial da nova tecnologia que despontava para suprir essa lacuna. “Ao aplicar a radiação laser para produzir o efeito Raman, ele conseguiu gerar o espalhamento de forma clara e nunca antes obtida”, esclarece Jorio. “Por meio desse trabalho, tornou-se possível usar a espectroscopia Raman para se obter informação química e estrutural de quase qualquer material, permitindo sua identificação em poucos segundos.”
O achado foi publicado em 1962 na revista Journal Optical Society America e despertou grande interesse da comunidade científica internacional. “O laboratório de Porto no Bell Labs se tornou um dos mais importantes no campo da espectroscopia de estado sólido”, destaca Jorio. O prestígio o levou ao cargo de supervisor de pesquisas da empresa. “Ele se valeu da posição para recrutar jovens físicos brasileiros, entre eles Rogério Cezar de Cerqueira Leite e José Ellis Ripper Filho, para o laboratório norte-americano”, comenta Santana, que estuda a história do laser no Brasil e as contribuições de Porto nesse sentido desde o mestrado, defendido em 2006 no Programa de Pós-graduação em Ensino, Filosofia e História das Ciências da UFBA.
Formação de novos físicos
Anos mais tarde, em 1967, Porto recebeu outro convite, dessa vez para se tornar professor titular de física e engenharia elétrica na Universidade do Sul da Califórnia (USC), em Los Angeles. “Ele aceitou o convite e, tal como no Bell Labs, fez da USC um centro de formação de físicos brasileiros.” Segundo Jorio, a estratégia contribuiu para o surgimento de vários núcleos de física de estado sólido no Brasil, os quais tinham o laser e a espectroscopia Raman como alicerces principais. “Porto tinha essa característica de se dedicar aos alunos que ele acreditava ter potencial”, comenta o engenheiro eletrônico José Ellis Ripper Filho, que conheceu o físico brasileiro em fins da década de 1950, durante sua graduação no ITA. “Esse foi o meu caso”, ele conta. “Ele me orientou muito, colaborando para o desenvolvimento da minha carreira.”
O período que passou nos Estados Unidos contribuiu para que Porto se projetasse internacionalmente como uma liderança nas múltiplas formas de aplicação do laser. “Mesmo assim, ele tinha expectativa de retornar de vez ao país, desde que alguma instituição de pesquisa oferecesse as mesmas condições de trabalho das quais desfrutava nos Estados Unidos”, destaca Freire.
O contexto político e econômico que viabilizou seu retorno começou a se desenhar em 1968, no governo militar de Artur da Costa e Silva (1967-1969). Segundo Freire e Santana, houve à época grandes investimentos em áreas consideradas estratégicas para o país, e o governo federal teve interesse em trazê-lo de volta para o Brasil ao conhecer seu projeto de uso do laser para o enriquecimento isotópico do urânio. “João Paulo dos Reis Velloso [1931-2019], então ministro do Planejamento, ficou responsável pelas negociações entre o governo e o físico”, destaca Freire. Para voltar, Porto exigiu a contratação de 30 doutores, laboratórios apropriados e US$ 2 milhões para financiamento de pesquisas. As universidades de Brasília (UnB) e de São Paulo (USP) negociaram, mas as conversas não avançaram.
A então recém-criada Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), por meio de Velloso e Zeferino Vaz (1908-1981), reitor da universidade no período, foi a única que concordou com as condições exigidas. A ideia era fazer da Unicamp um Bell Labs. Por lá, a partir de 1972, Porto dedicou-se à atividade de pesquisa e à formação de pesquisadores por meio de trabalhos com o laser e suas aplicações, os quais contribuíram para a criação do Departamento de Eletrônica Quântica no Instituto de Física Gleb Wataghin, em 1974. As pesquisas e o ambiente intelectual cultivado por Porto na Unicamp atraíram vários estudantes, entre eles o físico Carlos Henrique de Brito Cruz, atual diretor científico da FAPESP, que viria a se tornar reitor daquela universidade entre 2002 e 2005. Ele foi para a Unicamp para fazer seu doutorado e trabalhar ao lado de Porto no início de 1979, seis meses antes da morte do físico.
O trabalho de Porto e sua equipe também contribuiu para o avanço de várias áreas para além da física de matéria condensada, como a química, a engenharia e a medicina, que passou a usar o laser como ferramenta cirúrgica em áreas como oftalmologia, otorrinolaringologia, ginecologia e cardiologia. Um exemplo prático de suas pesquisas foi o desenvolvimento de técnicas de desobstrução de artérias por meio da destruição de ateromas com o uso do laser.
Sérgio Porto morreu em junho de 1979, em Novosibirsk, na antiga União Soviética, aos 53 anos de idade. Ele teve um ataque cardíaco fulminante durante uma partida de futebol com pesquisadores de vários países que participavam de uma conferência de física laser. Para Olival Freire, Porto morreu no auge da sua atividade intelectual e deixou uma valiosa contribuição científica para a física no Brasil.
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