Uma pesquisa de doutorado que conquistou o mais recente Prêmio Capes de Tese sugere que a ideia do ciborgue, híbrido de homem e máquina que seria capaz de extrapolar limites biológicos, foi apropriada pelo imaginário acerca das tecnologias que buscam reabilitar pessoas com membros amputados e vítimas de lesões na medula óssea, com força para, no caso de alguns atletas paralímpicos, até mesmo apagar o estigma que costuma depreciar a identidade social dessas pessoas. Defendida na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo por Joon Ho Kim, sob orientação da professora Sylvia Caiuby Novaes, a tese venceu o prêmio Capes na categoria Antropologia e Arqueologia. “Fiquei surpreso com a premiação, porque há incontáveis pesquisas de excelência em áreas mais tradicionais da antropologia, como, por exemplo, antropologia urbana e, especialmente, etnologia indígena”, diz Joon Ho Kim.
O tema da tese é um desdobramento de sua dissertação de mestrado, defendida em 2005, na qual Joon abordou o imaginário das tecnologias cibernéticas na produção cinematográfica das últimas duas décadas, em filmes como Johnny Mnemonic (1995) e a trilogia Matrix (1999 a 2003), nos quais os personagens se conectam a redes de informática por meio de plugues espetados na cabeça, ou a série O exterminador do futuro. “Os ciborgues e o ciberespaço dos filmes são produtos do que poderíamos chamar de cibercultura, uma resposta positiva da cultura na criação de uma nova ordem do real diante de contextos inéditos, decorrentes da disseminação das tecnologias chamadas cibernéticas e da vulgarização de discursos científicos, que desafiam as categorias tradicionais de interpretação da realidade”, diz. A cibercultura deriva de conceitos que surgiram com Cybernetics, de Norbert Wiener, livro publicado em 1948 que propunha reunir num modelo teórico os sistemas de controle existentes em máquinas e organismos, e ganharam a ficção em obras como Cyborg, de Martin Caidin, que inspirou o seriado O homem de seis milhões de dólares (1974-1978). Nele, o protagonista é um astronauta cujo corpo destroçado foi reconstruído com componentes desenvolvidos pela indústria aeroespacial.
Quando desenhou o projeto do doutorado, Joon propôs-se a analisar duas categorias: os amputados e as pessoas que receberam órgãos transplantados. “Numa delas, trata-se de agregar ao corpo máquinas ou artefatos produzidos para substituir funções orgânicas. Já a outra envolve uma espécie de mistura de corpos, em que se usam órgãos de um corpo como peças de reposição para outros corpos”, afirma. Logo percebeu que as categorias exigiam procedimentos de campo e tinham lógicas culturais muito distintas. “O estigma do amputado não é o mesmo que recai sobre o transplantado”, observa. Resolveu, então, restringir o foco de sua pesquisa, para comparar dois grupos de pessoas com deficiência do sistema locomotor – os amputados e cadeirantes vítimas de lesão medular – e investigar as transformações que as novas tecnologias impõem à identidade social dessas pessoas. “Originalmente, eram categorias semelhantes”, diz Joon. “Em comum, tinham a depreciação de sua identidade social oriunda da incapacidade de manter a posição ereta do corpo e de andar com os dois pés, e se encaixavam na figura popular do ‘aleijado’.”
Orgulho
Isso mudou nos últimos anos. De um lado, muitos amputados livraram-se das limitações e de boa parte do estigma ao conquistarem próteses inovadoras e de alta resistência. E vários deles exibem as próteses com orgulho, em vez de escondê-las, como era comum no passado. “O surgimento de tecnologias protéticas que habilitam amputados a competirem em nível olímpico tem produzido reações que contrariam a regra geral segundo a qual se evita expor aquilo que causa estigma”, afirma Joon. “E ganha cada vez mais projeção na mídia a imagem de amputados estereotipados com a realização do sonho do ciborgue: o corpo orgânico potencializado com sua hibridação com sistemas cibernéticos.” O melhor exemplo é o atleta sul-africano Oscar Pistorius, que nasceu com uma deficiência congênita chamada hemimelia fibular e amputou as duas pernas, mas obtinha alto desempenho correndo com próteses de fibra de carbono. Ele foi o primeiro atleta paralímpico a disputar uma olimpíada, a de Londres, em 2012, em igualdade de condições com atletas não deficientes. Tentou disputar a Olimpíada de Beijing, em 2008, mas teve a participação vetada pela Associação Internacional de Federações de Atletismo. O órgão considerou que as próteses garantiam a Pistorius vantagem sobre os atletas concorrentes. Ele recorreu e, quatro anos depois, conseguiu chegar às semifinais da prova dos 400 metros.
A situação é bem diferente no caso das pessoas com lesões medulares. Elas seguem dependentes de cadeiras de rodas e a maioria das poucas tecnologias disponíveis não se mostrou capaz, ainda, de aliviar uma série de efeitos colaterais decorrentes da paralisia, como a falta de retorno venoso e a osteoporose. A tecnologia dos exoesqueletos robóticos, ainda em desenvolvimento, encarna uma promessa de reabilitação similar à das próteses dos amputados, mas por enquanto se trata apenas de uma promessa. Já há produtos com aprovação para uso clínico, inspirados em tecnologias da indústria bélica, mas com custos altíssimos. O neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis exibiu um protótipo na festa de abertura da Copa do Mundo – um paraplégico chutou uma bola. “O exoesqueleto, na contramão do que ocorre com muitas próteses para amputados, esconde a deficiência. O indivíduo consegue ficar de pé, mas há pouco ou nenhum benefício fisiológico comprovado, ao contrário de outras terapias, como a marcha induzida com eletroestimulação funcional. A obsessão em encapsulá-los dentro de corpos robóticos, em detrimento de outras terapias, parece mais motivada pelo simbolismo da possibilidade de andar sobre as duas pernas do que por uma reabilitação efetiva”, diz.
Nas entrevistas que realizou no trabalho de campo, o antropólogo constatou que lesados medulares são bastante cautelosos em relação à promessa dos exoesqueletos. “A maioria acha que falta muito para que substituam a cadeira de rodas”, afirma. A exceção, em geral, são os pacientes que perderam os movimentos há pouco tempo. “Esses estão dispostos a qualquer coisa para voltar a andar.”
Para Joon, o apelo dos exoesqueletos, ao contrário do que acontece com as próteses de amputados, resgata ideais encontrados na eugenia, a aplicação de métodos que sistematicamente reforçam determinadas características socialmente valorizadas e eliminam outras, socialmente rejeitadas. A eugenia foi apropriada pela política racial do nazismo, que pregava a morte ou a esterilização de indivíduos considerados “anormais”. “A lógica dos exoesqueletos robóticos segue a mesma lógica dos testes genéticos e da seleção de embriões para escolha de certas características, em que a eugenia voltou como um produto de mercado”, diz. “O que é mais importante: garantir a acessibilidade do cadeirante ou fazê-lo ficar de pé – mesmo sabendo que isso não resulta em reabilitação de fato?”, indaga.
Joon compara a preeminência da mão direita, objeto de um estudo clássico da antropologia, com a obsessão por uma tecnologia capaz de fazer os lesados medulares andarem novamente. A predisposição biológica dos seres humanos a usar a mão direita, ele diz, está na base das culturas cujo sistema simbólico valorizam o lado direito em detrimento do esquerdo. “O significado de direito e esquerdo transpôs-se para conceitos como puro e impuro. Os canhotos são reprimidos em várias culturas e forçados a usar a mão direita”, afirma. Ele também cita vítimas de moléstias como a hipertricose lanuginosa congênita, que cobre o corpo de seu portador com pelos finos e felpudos e rendeu a um doente o apelido de “menino lobo”, ou a epidermodisplasia verruciforme, tema de um documentário denominado Metade homem, metade árvore. “Há alguns atributos que são culturalmente associados a características humanas, como a pele lisa e com poucos pelos, cuja ausência é vista simbolicamente como algo subumano. A incapacidade de ficar de pé e andar ereto causa o mesmo tipo de desconforto, daí a obsessão social por colocar os cadeirantes de pé”, afirma.
A bioética, campo transdisciplinar que estuda a dimensão ética dos modos de tratar a vida no contexto da pesquisa científica e de suas aplicações, vem discutindo a interação do corpo humano com a máquina num contexto mais abrangente, o do chamado pós-humanismo, que propõe o uso da biotecnologia, da informática, da robótica e da nanotecnologia para superar limitações do corpo humano. De acordo com William Saad Hossne, fundador da Sociedade Brasileira de Bioética, entre os conceitos mais discutidos atualmente destacam-se os propostos por Raymond Kurzweil, do Massachusetts Institute of Technology, para quem seria possível alcançar a imortalidade por meio de processos que revertem o envelhecimento ou por meio da transferência de conteúdo cerebral para um meio físico além do corpo, como um novo hardware. “Nesse contexto, o indivíduo deixaria de ser humano para se tornar pós-humano”, diz Hossne. No debate acerca desse cenário, coabitam temores envolvendo a ameaça de desumanização e as promessas de transformar o homem num ser aperfeiçoado. Para Hossne, a discussão levada a cabo pela bioética é complexa e não consegue articular uma receita a ser seguida, mas pode ser útil para a questão das próteses e dos exoesqueletos robóticos. “É preciso contemplar riscos e benefícios e analisar qual é o objetivo que se busca. Não dá para afirmar que um exoesqueleto que coloca alguém de pé traz pouco benefício. Quem tem de avaliar o benefício é quem vai usá-lo. O que é pouco para mim pode ser muito para ele.”
Joon conheceu e entrevistou pacientes com lesões medulares no Ambulatório de Reabilitação Raquimedular do Hospital de Clínicas da Unicamp, coordenado pelo bioengenheiro Alberto Cliquet Junior, que tem a carreira dedicada ao desenvolvimento de equipamentos para reabilitação de lesados medulares, paraplégicos e tetraplégicos, assim como à aplicação de terapias com uso desses equipamentos. Também acompanhou quatro campeonatos brasileiros de rúgbi em cadeiras de rodas. “Escolhi esse esporte pelo fato de ser quase exclusivo de tetraplégicos”, diz Joon. O trabalho de campo envolveu a produção de material fotográfico com entrevistados. A maior parte das fotos, entre as quais as que ilustram esta reportagem, foi financiada pela FAPESP na linha “Fotografia, filme etnográfico e reflexão antropológica – prática e teoria” do projeto temático “A experiência do filme na antropologia” (processo 09/52880-9), coordenado pela professora Sylvia Caiuby Novaes, no Laboratório de Imagem e Som em Antropologia da USP. “O trabalho com a fotografia foi essencial para que eu tivesse acesso a eles. A princípio, reagiram com desconfiança. Fui mostrando os resultados para eles e consegui me aproximar de uma forma mais intensa do que se tivesse pedido uma entrevista e feito perguntas”, explica.
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