foto: léo ramos / ilustração: abiuroImagine um líquido que se movimenta mais rápido quando confinado em um ambiente menor do que se retido em um maior. Um composto que passa por um nanotubo com um fluxo centenas de vezes maior do que o esperado se o mecanismo fosse o mesmo que o da água atravessando uma torneira. Essa estranha substância é a água, a ubíqua H2O que recobre 70% do globo terrestre, constitui mais da metade do corpo humano e está envolvida com a produção e manutenção das formas de vida. Por que a água apresenta esses e outros comportamentos estranhos é alvo de debates entre pesquisadores e não raro aparecem explicações complicadas tentando dar conta desses fenômenos, como a ideia de que há algo de quântico nesse líquido quando exposto a determinadas condições. Nos últimos dez anos, a física teórica Márcia Barbosa, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), vem refinando um modelo computacional que tenta explicar, de maneira mais simples, o mecanismo central que estaria por trás de algumas excentricidades da água, como as já citadas.
É sabido que as ligações de hidrogênio entre moléculas de água favorecem a formação de aglomerados de quatro moléculas, os tetrâmeros. A forma como os quartetos de moléculas interagem entre si é determinante para explicar boa parte das anomalias da água, segundo as simulações computacionais feitas pelo grupo de Márcia. É como se a unidade elementar para descrever o comportamento da água não fosse a própria molécula, mas esses tetrâmeros. A ligação de um quarteto de moléculas com outros tende a se revezar entre duas configurações preferenciais: uma fechada, mais estável e de menor energia, em que as moléculas de um aglomerado se encontram mais distantes das moléculas do outro; e uma segunda conformação, aberta, em que as moléculas de dois tetrâmeros estão mais próximas (veja o gráfico). De acordo com os experimentos virtuais da física, a alternância entre uma e outra conformação – no jargão dos pesquisadores, entre uma maior escala de distância espacial entre os agrupamentos moleculares e outra menor – é suficiente para explicar a ocorrência de certos comportamentos estranhos da água. “Em nossas simulações, só vimos as anomalias quando introduzimos esse potencial de interação de duas escalas”, diz Márcia. “Para nós, a água é uma mistura de tetrâmeros que fazem e rompem ligações uns com os outros.”
Se é verdade que, em certas situações, os tetrâmeros passam constantemente de uma escala para outra, esse frequente rearranjo de sua estrutura altera a densidade da água. Ora os agrupamentos moleculares estão mais próximos e o líquido se torna mais denso. Ora estão mais longe e a estrutura fica menos densa. “Nesse nosso potencial de interação que procura mimetizar o que ocorre na água, há uma competição entre escalas, o que cria uma concorrência entre ambientes ou arranjos locais de diferentes densidades”, afirma o químico Paulo Netz, da UFRGS, coautor de vários estudos com Márcia. “Dessa forma, conseguimos explicar muitas anomalias presentes na água.”
ana paula camposO foco recente das simulações dos pesquisadores são os comportamentos anômalos da água exibidos em diminutos ambientes confinados. O modelo virtual de água desenvolvido pelos brasileiros reproduz, por exemplo, as anomalias de difusão ou de fluxo das moléculas de H2O num nanotubo. Num trabalho publicado em 21 de maio deste ano na revista Journal of Physical Chemistry B, Márcia e colaboradores modelaram a passagem de seu conceito de água virtual por nanotubos de tamanho fixo, mas com espessuras distintas de diâmetro. O objetivo da simulação era ver o que ocorria com o fluxo do líquido quando atravessava nanotubos grossos e finos. Como regra, o fluxo de uma certa quantidade de um líquido no interior de algo semelhante a um cano sempre aumenta à medida que o diâmetro da tubulação se torna menor. Basta lembrar que a água sai com mais “força” quando se estreita o furo de uma mangueíra. Num nanotubo, as simulações indicam que o aumento do fluxo é muito superior ao previsto. “Alguns experimentos mostram um fluxo 2 mil vezes maior do que o esperado”, comenta Márcia. “Em nossas simulações chegamos a um número 200 vezes maior do que o normal.”
O mecanismo que estaria por trás desse fenômeno guardaria relação com a forma como os tetrâmeros de H2O se rearranjariam no interior dos nanotubos. Em função do diâmetro do ínfimo canal por onde passam, as moléculas de água apresentariam duas conformações distintas: uma mais densa, que ficaria diretamente em contato com as paredes dos nanotubos e revestiria a água menos densa, que comporia a parte mais central do líquido. “É como se formasse um ‘gelinho’ em torno das paredes do nanotubo que fizesse a água do centro escorrer mais rápido facilmente”, compara Márcia, que neste ano foi uma das cinco ganhadoras do prêmio internacional L’Oréal/Unesco para Mulheres na Ciência.
Qualquer que seja o mecanismo relacionado com essa propriedade, o superfluxo da água não parece ser um desvio provocado pelas simulações. Experimentos reais, com água de verdade passando por nanotubos, também chegaram a resultados semelhantes. Uma possível aplicação dessa propriedade é o desenvolvimento de nanofiltros para dessalinizar a água do mar. Como a água flui mais rápido que o sal, a abordagem poderia ser viável comercialmente.
Menos espaço, mais movimento
A estranha difusão da água em ambientes confinados é outra anomalia que a equipe de Márcia simula com sucesso por meio de seu modelo computacional. Na verdade, em um trabalho teórico conjunto com Netz em 2001, Márcia descobriu a anomalia de difusão. Em termos simples, difusão é a capacidade das moléculas de se movimentarem num certo espaço, de se espalharem por uma determinada região. “A difusão das moléculas num líquido pode ser vista como (algo) semelhante ao movimento das pessoas numa multidão”, compara Netz. “Vamos supor que a multidão esteja reunida numa praça e que, de repente, tenha que se deslocar para uma praça menor, onde sua mobilidade será menor. É isso o que ocorre com a maior parte dos líquidos.” Quando se eleva a pressão sobre um líquido – ou seja, diminui seu volume e aumenta sua densidade –, o coeficiente de difusão se reduz. As moléculas “andam” de forma mais lenta. Com a água, porém, ocorre justamente o contrário. A subida da pressão leva ao aumento de seu coeficiente de difusão. Nessa condição, as moléculas da água aceleram seu passo em vez de reduzi-lo, como seria o comportamento padrão.
Esse comportamento pode ser visto numa simulação relatada por Márcia e colaboradores em um artigo publicado em 23 de agosto do ano passado na revista Journal of Chemical Physics. No experimento, os tetrâmeros de água se encontram em dois reservatórios conectados por um nanotubo. Quando as comportas que tampam as duas extremidades do nanotubo são abertas, as moléculas de água começam a entrar no interior do nanotubo. Até um determinado diâmetro de nanotubo, por volta de 1 nanômetro, a água se comporta de maneira tradicional. Menos espaço significa menor difusão de suas moléculas. No entanto, abaixo desse limite, em vez de as moléculas diminuírem sua movimentação, passam a “andar” mais depressa. Surge então a tal anomalia de difusão. A maior locomoção das moléculas no nanotubo mais fino ocorre, segundo Márcia, porque um ambiente confinado com essas dimensões produz a tal competição de escalas entre os tetrâmeros. Cada aglomerado de moléculas de água oscila entre as duas escalas de seu potencial de interação, entre ficar mais próximo e mais distante de outros tetrâmeros. Essa dança interna de cada grupo de quatro moléculas rearranja constantemente a estrutura interna da água. Em nanotubos maiores esse efeito não se manifesta e os tetrâmeros de H2O tendem a permanecer apenas na escala menos energética, a mais estável.
Existem dezenas de modelos teóricos que tentam explicar e reproduzir por meio de simulações computacionais algumas das 69 anomalias térmicas, estruturais ou dinâmicas conhecidas da água. Nem todos os comportamentos estranhos de H2O se manifestam em situações tão específicas, como ocorrem com as anomalias de difusão e de fluxo dentro de nanotubos. De tão corriqueiras, algumas excentricidades da água passam quase despercebidas. A maioria dos líquidos encolhe de tamanho e se torna mais denso quando resfriado. Com a água ocorre o contrário. A 0ºC, o gelo é 9% menos denso do que a água. Por isso flutua sobre o líquido. Outra bizarrice da água pode ser conferida num banho de mar. Quem já foi à praia num dia de calor intenso deve ter percebido que a água está sempre bem mais fria do que a areia. Ambas estão expostas aos mesmos raios solares, mas a sílica da areia esquenta mais do que o oceano. Isso ocorre porque a água tem um calor específico muito maior do que o da areia. Ela precisa ser exposta a uma quantidade enorme de calor para sua temperatura variar minimamente. “Como temos muita água, seu alto calor específico é benéfico para a vida”, afirma Márcia.
Modelo minimalista
Para o físico-químico Munir Salomão Skaf, do Instituto de Química da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), é “incrível” que um modelo tão econômico como o adotado pela colega da UFRGS consiga explicar até mesmo o comportamento da água confinada. “Ao contrário das abordagens atomísticas amplamente utilizadas na química e na física para descrever a água como meio solvente, o modelo desenvolvido por Márcia pode ser classificado como ‘minimalista’”, afirma Skaf. “Ele procura capturar o que há de mais essencial na física do problema de maneira simplificada. No caso da água, a questão toda parece se resumir à existência de duas escalas espaciais distintas nas interações presentes no líquido.” O físico teórico Giancarlo Franzese, da Universidade de Barcelona, tem opinião semelhante. “As aproximações que estão na base do modelo da Márcia limitam parcialmente sua capacidade de descrever a água, mas ele pode ser visto como uma interessante alternativa para descrever sistemas com as mesmas propriedades anômalas da água.”
Produtivo pesquisador desse campo de estudos, Franzese publicou em 2011 uma simulação mostrando que água líquida confinada em nanocanais e resfriada a cerca de -100°C – sim, a água pode estar líquida a temperaturas tão baixas – apresenta propriedades únicas. Embora aposte na contribuição de modelos teóricos mais simples, o italiano acredita que algumas anomalias da água só poderão ser explicadas por efeitos quânticos.
Artigos científicos
BORDIN, J. R. et al. Relation between flow enhancement factor and structure for core-softened fluids inside nanotubes. Journal of Physical Chemistry B. v.117, n.23, p. 7.047-56. 21 mai. 2013.
BORDIN, J. R. et al. Diffusion enhancement in core-softened fluid confined in nanotubes. Journal of Chemical Physics. v. 137, n. 8. 23 ago. 2012.