Setembro de 2008 pode entrar para a história como o mês em que a física de partículas, tema tão fascinante quanto complexo, esteve no topo de todos os noticiários como raramente se viu. O primeiro assunto do período foi, claro, a crise na economia americana, que ameaça provocar uma recessão de proporções mundiais e imprevisíveis. O segundo, a esperada entrada em funcionamento do Large Hadron Collider (LHC), o maior acelerador de partículas do planeta, montado pelo Centro Europeu de Pesquisas Nucleares (Cern) 100 metros abaixo da superfície, nos arredores de Genebra, bem na fronteira da Suíça com a França.
Em 10 de setembro, quando o primeiro feixe de prótons percorreu o túnel circular de 27 quilômetros de extensão do LHC, uma audiência televisiva estimada em 1 bilhão de pessoas, um sexto da população do planeta, assistiu a reportagens sobre o início dos trabalhos da maior e mais complexa estrutura científica edificada pelo homem. Mais uma prova de que o LHC era o destaque do momento apareceu na internet: nesse dia a página inicial do buscador Google, uma parada quase obrigatória para quem usa cotidianamente o computador, estampava um desenho do megaacelerador. Tamanha publicidade em torno do LHC rendeu também algumas notícias que desagradaram à comunidade científica. Disseminada por alguns meios de comunicação, a hipótese, absurda, de que a operação do equipamento poderia criar um buraco negro capaz de sugar a Terra primeiro irritou os físicos e depois foi motivo de piadas.
Mas em 19 de setembro houve um revés bastante concreto que colocou novamente o LHC no centro das notícias: um vazamento de gás hélio no setor 3-4 de seu túnel, desencadeado provavelmente por uma falha elétrica que levou ao derretimento de dois eletroímãs, interrompeu os trabalhos e provocou a interdição da megaestrutura erigida nos arredores de Genebra. O conserto deverá demorar meses e o equipamento está previsto para voltar a funcionar no primeiro semestre de 2009, após o fim do inverno no hemisfério Norte. “Por ter acontecido imediatamente depois do grande sucesso que foi a entrada em operação do LHC, o incidente é sem dúvida um golpe psicológico”, disse, num comunicado à imprensa, Robert Aymar, diretor-geral do Cern. “Não tenho dúvida, no entanto, de que vamos superar esse obstáculo com o mesmo grau de rigor e aplicação que empregamos na construção e operação do complexo que abriga o acelerador.”
Respostas para o Big Bang
O LHC é uma obra que consumiu quase duas décadas, contando planejamento, construção e atrasos, e custou perto de US$ 10 bilhões. O equipamento, onde pesquisadores esperam provocar e observar as tão aguardadas colisões de prótons, se propõe a investigar o Universo frações de segundo após a explosão primordial (Big Bang) que o teria criado e os misteriosos bósons de Higgs, hipotéticas partículas elementares da matéria que seriam as responsáveis por dar massa às demais partículas, mas cuja existência nunca foi comprovada. Ou seja, respostas para a física do muito pequeno e do muito grande. Quase 10 mil pesquisadores, dos quais cerca de 70 brasileiros, devem produzir algum tipo de trabalho científico no LHC nos próximos anos.
Os eletroímãs são peças fundamentais na estrutura do LHC. Quando resfriados a temperaturas absurdamente baixas, assumem propriedades supercondutoras e servem de guia para os prótons em suas viagens pelo enorme túnel subterrâneo. Com auxílio do gás hélio, trabalham resfriados a -271,3° C no megaacelerador do Cern. Para consertar os dois eletroímãs que apresentaram falha e derreteram no mês passado, será necessário esquentar o local onde eles estão instalados, fazer as trocas e reparos e, em seguida, resfriar novamente todo o ambiente. Todo esse processo deverá se estender por dois meses e terminar perto de dezembro, à beira do inverno europeu. Como o Cern fecha na estação fria para a realização de manutenções periódicas, o LHC só deverá voltar a funcionar em 2009, na primavera do hemisfério Norte.
O contratempo não deve abalar a confiança da comunidade científica no LHC ou a popularidade do acelerador entre o público leigo. “A causa específica do vazamento de hélio é atípica, mas podem ocorrer problemas no início do funcionamento de uma máquina tão complexa”, pondera o físico brasileiro Roberto Salmeron, radicado há mais de 30 anos em Paris e que fez parte da primeira turma de pesquisadores contratados pelo Cern, ainda na década de 1950. Para o veterano pesquisador, o retardo no início do funcionamento do LHC devido ao incidente não chega a representar realmente um atraso no cronograma de trabalho do acelerador de partículas. “Nem tem sentido se falar de atraso, tudo ocorreu como previsto”, diz Salmeron. A grandeza e o ineditismo da missão científica do LHC, a excelência da pesquisa européia em estrutura da matéria, o prestígio da ciência produzida no Cern, tudo isso fez com que o megaacelerador tenha sido alvo de uma publicidade excepcional nos meios de comunicação, mas mais do que justificada na opinião do físico brasileiro. “No passado, quando não era conhecido do grande público, o Cern obteve resultados que produziram verdadeiras revoluções na física, mas o público nem percebeu”, comenta Salmeron. “Essa foi uma grave falha dos cientistas, que não mantiveram com o público o contato que deveriam ter tido.”
Dessa vez os físicos europeus contaram com um reforço inusitado para difundir o seu trabalho. O vídeo de um rap de quase cinco minutos sobre o megaacelerador, produzido e estrelado por uma jornalista norte-americana de 23 anos, Katherine McAlpine, tornou-se um hit na internet. O Large hadron rap foi acessado quase 3,5 milhões de vezes no You Tube, o site mais popular de hospedagem de vídeos na rede mundial de computadores, e virou tema de reportagens na imprensa internacional. O sucesso do vídeo musical, amador, mas bem-feito, transformou Alpinekat, nome artístico da rapper encarnada pela jovem comunicadora, numa pequena celebridade do mundo digital. “Achava que, com toda a badalação em torno do LHC, o vídeo seria visto por umas 10 mil pessoas”, disse à Pesquisa FAPESP Katherine, que se formou no ano passado em física e jornalismo pela Universidade Estadual de Michigan. “Mas, depois de alguns dias, os acessos dispararam.” Sua previsão inicial se baseava na audiência obtida por seu rap de estréia na área de divulgação científica. Seu vídeo sobre um neurochip desenvolvido por pesquisadores israelenses foi inicialmente visto por 600 pessoas.
No geral, as reações provocadas pelo rap sobre o LHC foram positivas entre os pesquisadores, segundo Katherine. “A maioria dos cientistas do Cern encarou o rap como uma forma nova, ainda que boba, de chamar a atenção para o acelerador”, afirmou a jornalista. “Uns poucos cientistas que levam a física de partículas a sério demais me censuraram. Acham que eu fiz papel de boba e embaracei a área de trabalho deles.” Vale lembrar que a world wide web – o famoso www, a face da internet usada pela maioria das pessoas, onde está inclusive o Large hadron rap – foi inventada em 1989 por Tim Berners-Lee, um físico então a serviço do Cern. Quando o LHC finalmente estiver a pleno serviço no próximo ano, é provável que os físicos do Cern produzam muito mais do que boa ciência sobre a origem do Universo. De quebra, pode surgir algum invento tão revolucionário quanto a web.
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