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Boas Práticas

O milagre da multiplicação de artigos

Prática controversa, a publicação de milhares de papers em edições especiais de periódicos levanta suspeitas sobre rigor na avaliação de seu conteúdo

Lawrence Thornton / Getty Images

A Clarivate Analytics, empresa responsável pela base de dados acadêmicos Web of Science (WoS), anunciou em março sanções contra cerca de 50 revistas científicas que fazem parte de sua extensa seleção. Elas desrespeitaram normas de qualidade exigidas pela companhia e perderão uma credencial fundamental para atrair novos autores: foram excluídas do Journal Citation Report (JCR), plataforma que determina o fator de impacto de periódicos, medida consagrada para mensurar a sua visibilidade e repercussão ao calcular quantas citações seus artigos receberam em outros estudos.

Esse tipo de exclusão acontece todos os anos, mas, em 2023, chamou a atenção por incluir 21 títulos de duas editoras de acesso aberto que se notabilizaram por um rápido crescimento. A punição também põe sob escrutínio uma prática disseminada nessas empresas que já era considerada controversa: a publicação de números especiais temáticos organizados por editores convidados, sem vínculo formal com os seus quadros, que costumam gerar uma enorme quantidade de artigos e, em alguns casos, não seguem o mesmo rigor na avaliação das edições regulares.

Dezenove revistas excluídas são da Hindawi, que edita cerca de 250 periódicos de acesso aberto – 64 deles estavam indexados na WoS. A empresa, fundada no Cairo, Egito, em 1997, hoje pertence à norte-americana John Wiley & Sons. Outras duas publicações punidas são da MDPI, sediada na Basileia, Suíça, responsável por 390 periódicos. Um dos que receberam sanção foi o International Journal of Environmental Research and Public Health, que publicou cerca de 17 mil artigos em 2022. Seu último fator de impacto foi de 4.614, desempenho notável para um título com produção tão extensa.

A Clarivate não forneceu detalhes sobre os problemas encontrados em cada caso, mas a editora chefe e vice-presidente da WoS, Nandita Quaderi, informou que o uso de uma ferramenta de inteligência artificial capaz de detectar mudanças atípicas no desempenho de periódicos apontou 500 que mereciam ser investigados. Segundo ela, foi possível reunir evidências de que ao menos 50 deles não estavam cumprindo os padrões exigidos de avaliação. “Nos últimos meses, tomamos medidas proativas adicionais para combater as crescentes ameaças à integridade do registro acadêmico”, afirmou Quaderi, em um comunicado. “Quando determinamos que um periódico não atende mais aos nossos critérios de qualidade, temos a responsabilidade de agir.”

No final do ano passado, a Hindawi anunciou a suspensão temporária de edições especiais. Isso, depois de identificar em várias delas a publicação de centenas de trabalhos fraudulentos, produzidos por “fábricas de papers“, serviços ilegais que produzem manuscritos sob encomenda, em geral com dados ou imagens falsas. Em outubro, mais de 500 artigos de 16 títulos da editora foram retratados por manipulação na revisão por pares. As investigações tiveram início em abril, após o editor-chefe de uma das revistas da Hindawi ter manifestado preocupação sobre o conteúdo de uma edição especial. Muitos pareceres apresentavam textos duplicados. Também houve casos de pareceristas que participaram da avaliação de muitos manuscritos e de outros que entregaram suas revisões muito rapidamente. A Hindawi relatou um prejuízo de US$ 9 milhões com a pausa nas edições especiais entre novembro e janeiro.

O modelo das edições especiais também foi responsável pelo crescimento exponencial da MDPI, fundada há apenas 13 anos e hoje a quarta maior editora científica do mundo. A empresa publicou cerca de 20 mil artigos em seus primeiros 15 anos, mas começou a multiplicar a produção a partir de 2015. Em 2021, foram 240,5 mil trabalhos, cobrando uma taxa média de processamento de 1.258 francos suíços (o equivalente a R$ 6,9 mil) por paper. Em 2023, seus dois principais títulos, Sustainability e International Journal of Molecular Sciences, deverão publicar cada um cerca de 3,5 mil edições especiais – nove por dia.

Uma análise feita por Paolo Crosetto, do Instituto Nacional de Pesquisa em Agricultura, Alimentação e Meio Ambiente da França, e Pablo Gómez Barreiro, do Jardim Botânico Real de Kew, em Londres, mostrou que apenas em 2022 uma centena de periódicos do MDPI lançou 17 mil edições especiais com um total de 187 mil artigos. A dupla avaliou o tempo que demorou para que o mérito dos papers fosse avaliado, entre a submissão da primeira versão do texto e a sua publicação. O prazo médio foi de 37 dias, ante mais de 200 dias das revistas de acesso aberto da coleção PLOS. “Não tenho provas de que eles fizeram algo errado”, disse Crosetto à Science. “Mas é lógico que a confiança fica comprometida quando você delega a responsabilidade a um editor convidado qualquer”, afirma, referindo-se a casos documentados de conflitos de interesse e revisão por pares fraca e até fraudulenta nesse tipo de título. Carlos Peixeira Marques, da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, em Vila Real, Portugal, disse à Science que a MDPI o convidou várias vezes para atuar como editor de números especiais em áreas como agricultura e engenharia, mas nunca em negócios e turismo, que são suas áreas de pesquisa. “O volume insano de edições especiais torna impossível manter um padrão mínimo de avaliação por pares”, afirmou.

Em um comunicado, a MDPI atribuiu a remoção a um critério relacionado à “relevância de conteúdo”. Em manifestações anteriores, a empresa defendeu seu modelo com o argumento de que a revisão expressa permite aos autores difundirem rapidamente seus resultados de pesquisa, e o trabalho de editores convidados é útil para dar treinamento a jovens pesquisadores em processos de comunicação científica. Giulia Stefenelli, presidente do Conselho Científico do MDPI, disse à revista Times Higher Education que as edições especiais “são iniciadas por pesquisadores experientes em disciplinas específicas como uma oferta à comunidade acadêmica”. Segundo ela, os periódicos avaliam propostas de edições especiais formuladas por cientistas e os artigos selecionados são submetidos a uma revisão por pares rigorosa, com uma taxa de rejeição de manuscritos “próxima da marca de 50%”.

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