Em abril de 1848, o naturalista britânico Alfred Russel Wallace (1823-1913), que viria a ser conhecido por seus estudos sobre seleção natural, deu início à primeira grande aventura de sua vida. Munido de algumas economias guardadas durante os anos em que trabalhou como agrimensor para a pequena empresa de um irmão, no Reino Unido, ele e o amigo Henry Walter Bates (1825-1892), com quem dividia o interesse pela botânica e entomologia, embarcaram no porto de Liverpool com destino a Belém, no Pará. Eles não sabiam ao certo o que iriam encontrar. “Existia uma ou outra descrição de europeus que haviam viajado pela Amazônia, mas grande parte do território permanecia inexplorado e suscitava curiosidade entre os estrangeiros”, diz a historiadora Carla Oliveira de Lima, que estudou a viagem de Wallace ao Brasil em tese de doutorado defendida na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio de Janeiro, em 2014.
Até os 25 anos, quando iniciou a expedição pela Amazônia, Wallace trabalhou com agrimensura e aritmética, disciplinas que ele chegou a ensinar em uma escola. Além disso, estudava, como autodidata, botânica e zoologia. A leitura de algumas publicações foi importante na preparação da viagem. Em sua autobiografia, Wallace menciona a influência do livro A voyage up the river Amazon (Uma viagem pelo rio Amazonas, 1847), do naturalista e escritor norte-americano William Edwards, com descrições vívidas de anacondas, piranhas e insetos. Ele também conhecia os trabalhos de Charles Darwin (1809-1882).
“O ardente desejo de visitar uma região tropical, para contemplar a exuberância de vida, tanto animal como vegetal, que dizem existir ali, e ver, com os meus próprios olhos, todas as maravilhas que tanto me deliciavam, quando eu lia as descrições feitas pelos viajantes que as contemplaram, foram os motivos que me induziram a romper a trama de meus negócios e partir para ‘alguma terra bem distante, onde reina um sertão constante’”, escreveu Wallace em seu livro Viagens pelo Amazonas e rio Negro, publicado em 1853, em Londres.
No relato, Wallace registrou e fez descrições minuciosas de espécies de aves, peixes, insetos e plantas que encontrou durante as expedições realizadas ao longo dos quatro anos em que permaneceu na região. O naturalista notou também que a distribuição geográfica de determinadas espécies e as barreiras naturais, como os rios, podem afetar a presença e o comportamento dos animais. Anos depois, em uma expedição ao arquipélago malaio, entre 1854 e 1862, Wallace iria aprofundar esses estudos, dando origem a trabalho em que intuiu a teoria sobre evolução dos seres vivos. Em março de 1858, o naturalista enviou uma carta de apresentação a Darwin com o artigo “Sobre a lei que regula a introdução de novas espécies”, pedindo sua opinião. O texto resumia parte das ideias presentes na teoria da evolução, sobre a qual Darwin vinha trabalhando havia 20 anos. As duas monografias foram apresentadas ainda em 1858 em uma sessão da Linnean Society de Londres, importante centro de estudos de história natural do Reino Unido. No ano seguinte, Darwin publicou A origem das espécies. Quando Wallace retornou da Malásia à Inglaterra a primazia darwinista já estava estabelecida.
“A viagem do naturalista britânico à Amazônia foi fundamental para que ele estabelecesse o início das concepções sobre a distribuição dos seres vivos, que se revelou essencial para a elaboração da teoria da evolução”, observa a historiadora Ana Maria Alfonso-Goldfarb, do Centro Simão Mathias de Estudos em História da Ciência da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). De acordo com a pesquisadora, Wallace foi um dos primeiros a estabelecer estudos modernos sobre a distribuição geográfica dos animais e plantas e sua relação com o meio ambiente e deixou importantes registros da diversidade de espécies da Amazônia.
A maior parte do trabalho do naturalista era coletar espécimes e classificar espécies animais e vegetais – sua estadia no Brasil foi financiada com recursos obtidos por meio da venda a colecionadores europeus do material retirado da Amazônia. A intermediação era feita por seu agente, o comerciante inglês Samuel Stevens (1817-1899), que teria igualmente ajudado a publicar artigos escritos por Wallace. Boa parte dos exemplares e textos foi enviada para a Europa por navios mercantes.
O naturalista passou dois anos na região da bacia do rio Negro, entre 1850 e 1852. A essa altura da viagem, Wallace e Bates já haviam seguido caminhos separados. “A impressão que se tem é de que eles desejavam cobrir o máximo possível de território e coletar espécies em locais diferentes”, diz Alfonso-Goldfarb.
Nos quatro anos em que andou pelo Norte do Brasil, Wallace descreveu e fez centenas de ilustrações de peixes, aves, árvores, cidades, fazendas e pessoas comuns. “Seus relatos sobre o modo de vida local e a interação com a população ainda não foram suficientemente estudados por pesquisadores brasileiros”, diz Carla Lima. “Ele teve uma sensibilidade ímpar para captar as minúcias das relações de poder entre fazendeiros, comerciantes, escravos e demais integrantes da sociedade brasileira da época.”
Wallace tinha reconhecido talento para o desenho e a produção de mapas.“A precisão dos desenhos em conjunto com as descrições que fez permitiram a identificação de um grande número de espécies por ele coletadas, mesmo sem a presença dos exemplares ”, diz a bióloga Mônica de Toledo-Piza Ragazzo, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP). Ela conheceu as publicações que citavam o trabalho do naturalista em relação aos peixes da bacia do rio Negro quando fazia seu doutorado na City University of New York e no Museu de História Natural da mesma cidade, em 1994. No ano seguinte, a pesquisadora visitou o Museu de História Natural de Londres, onde estão guardados os originais dos 212 desenhos de peixes da bacia do rio Negro, que nunca haviam sido corretamente publicados, como o naturalista esperava, segundo carta enviada por ele ao museu ao fazer a doação, em 1904. Mônica então reuniu as ilustrações e anotações em um livro bilíngue, Peixes do rio Negro, publicado em 2002 pela Edusp e Imprensa Oficial. “O cuidado e a precisão com que Wallace fez os desenhos é algo que até hoje impressiona o meio científico”, afirma.
Os 212 desenhos quase desapareceram completamente quando Wallace voltou ao Reino Unido vindo de Belém, em 1852. O navio em que ele viajava incendiou-se. Wallace foi até sua cabine e pegou uma pequena caixa de metal com desenhos, cadernos com anotações e algumas camisas antes de correr para o bote salva-vidas. Toda sua coleção de animais e plantas, além de muitos outros desenhos, guardados no porão do navio, foram perdidos. O trabalho que restou de sua passagem pelo Brasil foi que havia sido vendido para colecionadores europeus. Outro motivo de tristeza aconteceu anos antes, quando seu irmão mais novo, Herbert, que havia se juntado a ele em 1849, contraiu febre amarela e morreu.
Wallace publicou mais de 20 livros e manteve uma relação de amizade com Darwin até o falecimento deste, em 1882. O naturalista morreu aos 90 anos, em 1913.
Livros
WALLACE, A. R. Viagens pelo Amazonas e rio Negro. Brasília: Senado Federal, 2004.
WALLACE, A. R.; RAGAZZO, M. de T.-P.(org.). Peixes do rio Negro. São Paulo: Edusp/Imprensa Oficial, 2002.