A genética nacional, ao garimpar testemunhos no sangue de brasileiros de hoje, está contribuindo para rastrear as conseqüências populacionais de uma injustiça antiga, consagrada numa carta régia de d. João VI, em 13 de maio de 1808, que não deixava dúvidas sobre as intenções da Coroa quanto ao destino dos índios pejorativamente alcunhados de botocudos, que na realidade seriam bravos aimorés do nordeste mineiro:
“[…] Sendo-me presente as graves queixas que da Capitania de Minas Geraes tèm subido á minha real presença, sobre as invasões que diariamente estão praticando os indios Botocudos, antropophagos, em diversas e muito distantes partes da mesma Capitania […] sou servido por estes e outros justos motivos que ora fazem suspender os effeitos de humanidade que com elles tinha mandado praticar, ordenar-vos, em primeiro logar: Que desde o momento, em que receberdes esta minha Carta Régia, deveis considerar como principiada contra estes Indios antropophagos uma guerra offensiva que continuareis sempre em todos os annos nas estações seccas e que não terá fim”.
Não é de espantar, diante de tanta prontidão para o genocídio, que hoje os aimorés de Minas sejam dados por exterminados. Seus parentes sobreviventes mais próximos – além dos moradores da localidade de Queixadinha, no nordeste pobre de Minas Gerais, cujo parentesco com os trucidados vem agora à luz no estudo de geneticistas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) – são os krenaks, um contingente de cerca de 500 índios que nem querem ouvir falar da extinção dos botocudos. “Uma vez mencionei em uma entrevista que os botocudos estavam extintos e os krenaks ficaram muito irritados”, conta Sergio Danilo Pena, que liderou a pesquisa. “A identificação como descendentes dos botocudos, que eles efetivamente são, é politicamente muito importante para eles, principalmente quanto a terras, e aprendi a respeitar isso.”
Mesmo aimorés, ou gueréns, eram denominações dadas pelos brancos no período colonial, ensina Pena. Quando ainda habitavam os vales dos rios Jequitinhonha, Mucuri e Doce, área hoje dividida pelos estados da Bahia, Minas e Espírito Santo, esses índios se referiam a si mesmos pelos nomes de suas tribos: engereckmoung, cracmun, nak-nanuk, pejaurum e djioporoca. Além da suposta ferocidade, tinham em comum o apreço pelos apliques de discos de madeira – os botoques, palavra que originariamente designava os tampões de tonéis de vinho – no lábio inferior ou nos lóbulos das orelhas.
O resgate dos botocudos ao qual Pena se dedica é derivado de um de seus trabalhos mais conhecidos, a constatação de que a população atual do Brasil, ao menos no que se refere às linhagens maternas, é uma das mais miscigenadas do mundo: 39% de contribuição européia, 33% índia e 28% africana. O trabalho, publicado em 2000 no American Journal of Human Genetics, se baseava na análise de DNA das mitocôndrias (mtDNA), organela celular que se transmite só da mãe para os filhos e filhas (cujos padrões e mutações permitem, assim, reconstituir as chamadas matrilinhagens).
Ao estudo de 2000 se seguiu outro, publicado em 2003 no Proceedings of the National Academy of Sciences. Pena demonstrava a total desvinculação entre a atribuição de raça com base em características físicas, de um lado, e marcadores genéticos de ancestralidade africana, de outro (nesse caso foram usados trechos de DNA nuclear autossômico, que não se envolvem na determinação do sexo). Dito de outro modo, uma pessoa identificada como negra não tem necessariamente genes típicos de ancestrais africanos e tampouco a presença desses marcadores garante a classificação social como integrante da raça negra. O estudo deu o que falar, pois viera a público logo depois de o então candidato a presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirmar em debate na TV que a ciência tinha instrumentos para distinguir negros de brancos.
Um dos grupos de amostras usados nesse trabalho provinha de Queixadinha, distrito de Caraí, cidade com 20 mil habitantes, localizado na mesma região dos botocudos. Trata-se de uma vila esquecida, com poucas centenas de moradores e acesso difícil por estradas de terra. Pena viu nesse isolamento a oportunidade de pôr em prática o que chama de garimpagem homopátrica, ou seja, a busca de pistas genéticas dos botocudos entre os habitantes atuais da mesma área que eles ocupavam.
Se existissem vestígios de DNA botocudo na população atual, é certo que estariam no mtDNA – e não nos cromossomos Y, que passam de geração a geração apenas entre homens (e são por isso úteis para reconstituir patrilinhagens). Afinal, o padrão consagrado de genocídio e limpeza étnica implica exterminar os homens e absorver as mulheres. Nas linhagens masculinas brasileiras, a contribuição é quase exclusivamente do colonizador europeu (98% do total): a pesquisa no cromossomo Y de brasileiros de hoje vai revelar sobretudo marcadores herdados dos senhores portugueses, enquanto no mtDNA é possível encontrar a herança genéticas, das mulheres índias e negras que os colonizadores tomavam para seu desfrute.
Foram analisadas amostras de 274 pessoas sem parentesco materno por três gerações, divididas em três grupos: 74 de Queixadinha, 100 de outras cidades dos vales do Jequitinhonha, do Mucuri e do Doce, e 100 de cidades da Zona da Mata mineira, região mais ao sul onde não há registro de aimorés, só das etnias puri e coroado, também elas desaparecidas. Participaram desse trabalho Flávia Parra, também da UFMG, hoje fazendo pós-doutorado na Southwest Foundation for Biomedical Research, nos Estados Unidos, e Hans-Jürgen Bandelt, matemático alemão da Universidade de Hamburgo que começou a lidar por hobby com questões estatísticas de análise de DNA e se tornou um colaborador assíduo de Pena e de outros geneticistas.
Resultados inesperados
A análise tomou por base a seqüência de trechos específicos dos cerca de 16 mil nucleotídeos que compõem o mtDNA, assim como mutações características adquiridas por populações ameríndias após a principal entrada de seres humanos no Novo Mundo, vindos da Ásia, em algum momento (ou mais de um) entre 12 mil e 18 mil anos atrás. A análise do número e do tipo de diferenças encontradas permite aglomerar as amostras em grupos chamados de haplótipos. Entre índios das Américas, os haplótipos mais comuns são designados como A, B, C e D.
Pena, Flávia e Bandelt encontraram coisas intrigantes em Queixadinha. Em primeiro lugar, a predominância do haplótipo C, quando o mais comum no mtDNA de origem ameríndia de Minas Gerais são os haplótipos A e B. Além disso, duas linhagens encontradas na vila, uma em três indivíduos e outra em cinco, nunca haviam sido descritas em populações atuais de índios das Américas. A alta freqüência sugere que essas matrilinhagens sejam características dos botocudos que habitavam a região.O interesse na história dos botocudos tem um componente adicional.
Relatos históricos e restos preservados no Museu Nacional (RJ) indicam que essa etnia possuía a morfologia craniana mais similar à dos esqueletos conhecidos como homens de Lagoa Santa, grupo do sítio em Minas Gerais que inclui os restos de Luzia, os mais antigos de um ser humano nas Américas. Essa morfologia, de tipo negróide, destoa da predominante entre ameríndios de origem inequivocamente asiática, um dos enigmas por solucionar sobre o povoamento das Américas. “Com sorte, essa estratégia poderia nos levar a algumas inferências genéticas sobre o Homem de Lagoa Santa, mas isso ainda é altamente especulativo”, ressalva Pena.
“Nosso objetivo primordial era testar uma estratégia do uso de populações modernas como repositório de seqüências mitocondriais de grupos conquistados e extintos”, afirma o geneticista da UFMG. “A primeira etapa é o uso de populações modernas com localização geográfica apropriada para identificar seqüências mitocondriais candidatas. A segunda etapa, que estamos fazendo, é de tentativa de validação dos resultados da primeira.”
Em outras palavras, os geneticistas ainda pretendem obter uma confirmação direta de que as matrilinhagens identificadas em Queixadinha são de fato fósseis de genes botocudos soterrados nas células de descendentes vivos. Para consegui-la, estão preparando a análise de DNA de duas dezenas de dentes de botocudos cedidos pelo Museu Nacional.
No pampa gaúcho
“Trata-se de um enfoque histórico muito interessante. É o mesmo que estamos fazendo aqui no Sul com os charruas”, afirma Francisco Mauro Salzano, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), pioneiro no estudo genético de populações indígenas. Salzano se refere ao trabalho de sua colaboradora Maria Cátira Bortolini, que coordena um mapeamento similar do mtDNA no pampa gaúcho com a colaboração de Andrea Marrero.A região foi escolhida por Salzano e Maria Cátira por ser a origem do elemento étnico-cultural gaúcho (ponchos e boleadeiras, por exemplo), que muito deve a povos indígenas extintos como os minuanos e os charruas. Falantes de dialetos compreensíveis para uns e outros, esses povos são enfeixados no que Maria Cátira chama de grande etnia charrua. Ela acredita que essa assimilação foi mais do que cultural, por ter encontrado sua marca genética distintiva entre os sul-rio-grandenses que hoje habitam o pampa. Mais uma vez, na forma de haplótipos C do mtDNA – muito raros entre os outros povos indígenas do Sul do Brasil, como os guaranis, mas abundantes entre índios da Patagônia e da Terra do Fogo, no extremo sul do continente.
Maria Cátira, como Pena, também está em busca de uma comprovação direta de que seus haplótipos C são testemunhos genéticos de antigos charruas. Para isso, ela conta com a ajuda de um padre e arqueólogo, Pedro Ignacio Schmitz, do Instituto Anchietano de Pesquisas da Universidade do Valde do Rio dos Sinos (Unisinos), em São Leopoldo, Rio Grande do Sul, de uma geneticista uruguaia, Monica Sans, da Universidade Nacional de Montevidéu, e de um chefe charrua morto há mais de um século e meio de inanição e depressão, Vaimacá Perú.
De Schmitz, Maria Cátira obteve partes da mandíbula e do crânio de um enterramento arqueologicamente caracterizado como charrua. Sua maior expectativa está na colaboração com Monica, porém. A colega uruguaia obteve amostras de ossos de Perú depois que eles foram repatriados da França para o Uruguai em 1998, mas antes que fosse aprovada no vizinho austral legislação proibindo o estudo dos restos de Vaimacá Perú. “É uma história extraordinária”, diz ela sobre a vida de Perú, reconstituída num livro do antropólogo francês Paul Rivet, Les derniers charruas (Os últimos charruas).
O chefe Vaimacá Perú se encontrava preso em Montevidéu, no ano de 1832, depois de seu povo participar de várias escaramuças regionais, ora no lado brasileiro, ora na banda uruguaia. Um cidadão francês conhecido somente como Monsieur de Curel pediu autorização para levar espécimes charruas para exposição pública na França e foi presenteado com Perú, o guerreiro Tacuabé e sua mulher Guyunusa e o xamã Senaqué. Levados em 1833 para Paris, não duraram muito. O casal teve uma filha, Michaela, mas não se sabe o que foi feito dela nem do pai. Os outros três morreram em menos de um ano de cativeiro e seus restos foram mantidos no Museu de História Natural de Paris até 1998, quando gestões do governo uruguaio conduziram o seu repatriamento.
Segundo Maria Cátira, Monica já teria feito a análise do DNA e confirmado preliminarmente os mesmos haplótipos C similares aos do pampa brasileiro. O ideal, diz a brasileira, seria que os resultados pudessem ser replicados em um laboratório independente fora do Uruguai. Entretanto, devido a leis proibindo estudos com os restos de Perú, essa parte do trabalho pode ser prejudicada. A geneticista gaúcha lamenta esse tipo de restrição à pesquisa. “A maior homenagem que se poderia fazer a Vaimacá Perú”, diz Maria Cátira, “é resgatar a memória e a história de seu povo”.
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