Como em um jogo de espiões em que o objetivo é interceptar a comunicação do inimigo e evitar que suas mensagens cheguem ao destino, pesquisadores paulistas bloquearam o mecanismo celular responsável pela produção de uma proteína essencial à vida do parasita Schistosoma mansoni, causador da esquistossomose. Com uma sessão de tratamento, eles eliminaram um quarto dos vermes que infestavam camundongos e, assim, podem ter apontado um novo caminho para combater uma das mais graves verminoses conhecidas, que atinge 200 milhões de pessoas no mundo e vem se tornando resistente à ação dos remédios disponíveis.
A principal diferença entre os medicamentos usados para tratar a esquistossomose e a terapia experimental desenvolvida pelos pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Universidade Estadual Paulista (Unesp) está na forma de aniquilar o parasita. O praziquantel e a oxamniquina abrem buracos em suas células, enquanto o tratamento proposto pela equipe paulista é semelhante a um serviço de inteligência: como quem seqüestra o carteiro e rasga suas cartas, captura e destrói a receita que orienta tanto a geração de energia necessária para a sobrevivência do Schistosoma quanto a multiplicação de suas células. Assim, o parasita se torna incapaz de repor as células que se deterioram com o tempo e morre.
A geneticista Iscia Lopes Cendes teve a idéia de adotar essa estratégia de ataque ao Schistosoma em 2002, quando começou a trabalhar com uma técnica de biologia molecular criada por Andrew Fire e Craig Mello, dos Estados Unidos. Estudando o verme Caenorhabditis elegans, eles observaram que era possível interferir na cadeia de comando das células e impedir a produção de uma determinada proteína usando moléculas de ácido ribonucléico (RNA) produzidas em laboratório.
Nas células da maior parte dos seres vivos, vermes inclusive, a informação de como fazer uma proteína está armazenada no gene, um pequeno segmento da molécula de ácido desoxirribonucléico (DNA), composta por duas cadeias paralelas de bases nitrogenadas que assumem a forma de uma escada em caracol. Sempre que a célula necessita de uma proteína, sua receita é copiada por uma molécula mais simples – o RNA mensageiro, composto de uma só fileira de bases nitrogenadas – e transportada para a região em que se fabricam as proteínas.
Genes em silêncio
Em 1998 Fire e Mello identificaram uma forma de impedir o RNA mensageiro de completar o seu serviço. Eles nutriram os vermes com moléculas artificiais de RNA, formadas por duas fitas em vez de uma. Ao penetrar nas células, o RNA de dupla fita se une a um complexo de proteínas e intercepta o RNA mensageiro. Como resultado, a receita da proteína é destruída, silenciando o gene. A descoberta desse fenômeno, que Craig e Mello chamaram de interferência por RNA ou RNAi, rendeu-lhes o prêmio Nobel de medicina e fisiologia de 2006.
“Se funcionou com um verme de vida livre, que absorve as moléculas de RNA através de uma cutícula bastante resistente, pensei, deve dar certo com vermes de cutícula mais delgada que vivem no organismo de hospedeiros, como o Schistosoma”, diz Iscia. Com os biólogos Tiago Campos Pereira, Vinícius Bittencourt e Rafael Marchesini, ela procurou uma proteína vital para o Schistosoma, mas cujo RNA mensageiro fosse diferente do existente no camundongo. Identificou a hipoxantina-guanina fosforribosil-transferase (HGPRTase), essencial para a divisão celular e a produção de energia. Com um programa de computador desenvolvido por Pereira e Ivan de Godoy Maia, da Unesp de Botucatu, a equipe de Campinas desenhou e produziu moléculas de RNA de dupla fita específicas para impedir a produção dessa proteína. O passo seguinte foi testá-las contra o Schistosoma.
Iscia queria verificar o efeito da interferência por RNA sobre o parasita da esquistossomose em seu ambiente natural, os vasos sangüíneos dos animais que os abrigam, e não nas condições artificiais criadas em laboratório. Como ela própria não trabalha com animais de laboratório, procurou o casal de parasitologistas Eliana e Luiz Augusto Magalhães, que anos antes haviam desenvolvido um modelo de esquistossomose em camundongos.
Nesse experimento, os pesquisadores separaram os camundongos infestados pelo Schistosoma em quatro grupos. O primeiro recebeu uma injeção na veia de 5 microgramas de moléculas de RNA desenhadas para bloquear a produção da HGPRTase. Outro grupo tomou uma injeção contendo moléculas de RNA semelhantes à anterior, mas com pequenas modificações. O terceiro foi tratado com RNA incapaz de identificar a receita de qualquer um de seus genes, enquanto o último grupo recebeu uma solução de água com sal.
Como já era esperado, apenas o primeiro tratamento surtiu efeito contra o Schistosoma: matou 27% dos vermes adultos. Mas era preciso saber se a morte dos vermes havia de fato sido provocada pelo RNA desenhado pela equipe de Iscia. Ela, então, aplicou as moléculas que havia fabricado sobre parasitas mantidos em placas de vidro e observou uma redução de 60% na fabricação da HGPRTase, segundo artigo publicado este mês na Experimental Parasitology. “Pode parecer pouco, mas não é”, diz a geneticista da Unicamp. “Nesse teste inicial usamos a dosagem mais baixa capaz de produzir algum efeito sobre o parasita.” Segundo Iscia, é possível melhorar esse desempenho com aplicações repetidas ou aumento da dose, que pode ser até dez vezes maior.
Embora os resultados sejam promissores, ainda são necessários muitos outros testes – e anos de trabalho – até que se comprove que essa estratégia é viável e segura para tratar a esquistossomose. “Não identificamos efeitos indesejados nos camundongos”, afirma Iscia, “mas ninguém sabe as conseqüências da terapia de RNAi no longo prazo”. Até o momento não se conhecem os resultados de testes clínicos com seres humanos.
Diante dessas dúvidas, vale a pena investir nesse caminho? Para Iscia, vale, pois o potencial terapêutico dessa estratégia vai além do tratamento da esquistossomose. Em princípio, pode-se usar o RNAi para combater qualquer doença provocada pelo hiperfuncionamento de um gene ou pela ação de um gene defeituoso. Além disso, é mais fácil e rápido desenhar moléculas de RNA para silenciar um gene e impedir a produção de uma proteína do que buscar na natureza ou desenhar moléculas que bloqueiem a ação dessa proteína depois de pronta. E não pode surgir resistência às terapias com moléculas de RNA? “Pode”, afirma Iscia, “mas em menos de 2 dias conseguimos desenhar e produzir moléculas de RNA que impeçam a produção de outra proteína”.
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