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Genética

O silêncio dos genes

Nova técnica desativa trechos do DNA, bloqueia produção de proteína em abelhas e acena com aplicações mais abrangentes

Com o auxílio de uma técnica que ganha mais credibilidade a cada dia na biologia molecular, batizada de RNA (ácido ribonucléico) de interferência ou simplesmente RNAi, pesquisadores da Universidade de São Paulo em Ribeirão Preto conseguiram inativar um gene de abelhas operárias adultas da espécie Apis mellifera. Por 15 dias, o gene responsável pela fabricação de vitelogenina – principal proteína de reprodução dos insetos, com provável influência sobre o sistema imunológico – foi silenciado em 96% das 300 operárias que receberam injeções de RNAi. Silenciado é o termo cunhado pelos cientistas para descrever o efeito neutralizador exercido sobre um gene pelo RNAi, molécula criada em laboratório que difere do RNA convencional por apresentar duas fitas de pares de base (unidades químicas) em vez de apenas uma.

Essa fita a mais, presente na molécula artificial, foi capaz de destruir a receita química que comandava a produção da vitelogenina antes que esse comando chegasse ao ribossomo, a organela celular encarregada de sintetizar as proteínas. Sem ordem de serviço, o ribossomo parou de fabricar a vitelogenina. Ou seja, o gene dessa proteína continuou a existir e não sofreu nenhuma alteração em sua seqüência de pares de bases. Ele apenas foi desligado ou inativado, visto que sua mensagem é interceptada e sabotada antes de atingir seu destinatário. “Ainda não podemos afirmar com certeza se o silenciamento é temporário ou definitivo” afirma Zilá Paulino Luz Simões, da USP de Ribeirão Preto, principal autora brasileira do trabalho. O estudo, que contou com a participação de cientistas da Universidade Agrícola da Noruega, foi publicado em 20 de janeiro na revista científica eletrônica BMC Biotechnology.

Em outro experimento, ainda em curso, a equipe de Zilá conseguiu anular o mesmo gene em abelhas rainhas de Apis mellifera. Nesse caso, no entanto, a eficiência da técnica foi menor. Apenas metade das 40 líderes de colméia não sintetizou a vitelogenina. “Talvez seja necessário aumentar a quantidade de RNAi que demos para as rainhas”, explica Zilá. Em ovos que dariam origem à operárias, foi injetada uma solução de 1 microlitro (a milionésima parte do litro) na qual havia 5 microgramas de RNAi. Nas rainhas, em que o gene da vitelogenina é expresso (acionado) com o dobro de intensidade das operárias, ministrou-se o mesmo meio líquido, só que com 10 microgramas de RNAi. Para tentar melhorar a eficiência da técnica de silenciamento entre as abelhas que comandam a colônia, novas dosagens de RNAi serão inoculadas em mais rainhas.

Apesar de ainda estar em estágio inicial, o trabalho com as rainhas fornece uma notícia alvissareira: espera-se que as abelhas cujo gene foi silenciado sejam capazes de passar essa característica para a sua primeira geração de descendentes. Suas filhas também não produziriam a proteína. Ao que tudo indica, a ordem para não sintetizar a vitelogenina fica armazenada na memória das células maternas e, posteriormente, é transmitida à prole.

A história das abelhas é impressionante, mas não é a primeira vez que um animal exibe a capacidade de herdar genes silenciados. Um artigo de pesquisadores do Cold Spring Harbor Laboratory, dos Estados Unidos, publicado em fevereiro na Nature Structural Biology, mostrou que camundongos com um gene inativado pela técnica de RNAi passaram essa modificação genética para seus descenentes, criando aparentemente uma linhagem estável de animais com essa característica.

O gene da vitelogenina foi escolhido para ser alvo do experimento com RNAi porque as abelhas de mel possuem uma característica que intrigava os pesquisadores da USP. Por ser um gene profundamente envolvido no processo reprodutivo da Apis mellifera, era de se esperar que sua expressão fosse exclusiva das rainhas, ou pelo menos muitas vezes maior nas abelhas líderes da colméia do que nas operárias. Afinal, as funções reprodutivas são praticamente privativas das rainhas, que põem a maioria absoluta dos ovos que garantem a continuidade da colônia.

Acontece que tanto nas rainhas quanto nas operárias a expressão do gene é bastante alta, embora as primeiras fabriquem o dobro de vitelogenina do que as segundas. “A quantidade de vitelogenina produzida pelas rainhas pode superar 50% de todas as proteínas sintetizadas por esse tipo de abelha”, comenta Zilá. Nas operárias, essa taxa atinge expressivos 30%, um indício de que essas abelhas subalternas, além de trabalhar, devem também participar da reprodução e de outras funções importantes.

Contra Aids e câncer
Desde que foi descoberta em 1997, a técnica de usar o RNA dupla fita para interferir no funcionamento de genes passou a ser usada, com diferentes graus de sucesso e para distintas finalidades, em plantas, animais, fungos e até mesmo em células humanas. Às vezes, o RNAi não consegue silenciar totalmente um gene, mas leva a uma redução considerável na produção da proteína derivada do gene em questão. Os mais otimistas acreditam que, quando – e se – for plenamente controlado, o emprego de RNAi pode se tornar uma ferramenta terapêutica de grande utilidade, sendo capaz de desativar genes ligados a uma série de doenças, inclusive o câncer, e dar origens a potentes medicamentos.

Num artigo na edição de julho passado da revista Nature Medicine, o norte-americano Philip Sharp, ganhador do Prêmio Nobel de Medicina em 1993 e pesquisador do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), mostrou que o mecanismo de RNA de interferência poderia ser usado para combater a infecção causada pelo vírus HIV da Aids. Sharp conseguiu silenciar genes do próprio HIV – um vírus cuja molécula central é o RNA – e de células humanas em meio de cultura. A revista Science considerou os estudos com RNAi a linha de pesquisa mais importante do ano passado.

Dominar a etapa de confecção em laboratório de uma molécula de ácido ribonucléico com dupla fita e que seja capaz de silenciar especificamente um gene – e apenas ele, sem interferir nos demais componentes do genoma – é possivelmente o fator determinante do sucesso ou fracasso do uso da técnica de RNAi em um organismo. Isso porque para cada gene que se quer desativar é necessário conhecer a sua seqüência completa de pares de bases que codificam sua respectiva proteína e, a partir dessa informação molecular, derivar e construir um RNA dupla fita muito particular. Só foi possível, por exemplo, parar a síntese de vitelogenina em abelhas depois que os pesquisadores de Ribeirão Preto conseguiram produzir com precisão um RNA dupla fita complementar à seqüência de pouco mais de 500 pares de base que compõem a parte codificante do gene dessa proteína. “Qualquer descuido nessa fase faz com que a técnica de RNAi não funcione”, diz Zilá.

Depois de obtido o RNA dupla fita, o passo seguinte é injetar esse material no organismo que tem o gene a ser desativado. Feito isso, essa molécula modificada de ácido ribonucléico é, dentro da célula, cortada em pedaços de cerca de 25 pares de base por uma enzima chamada Dicer. Esses pequenos trechos de RNA dupla fita picotado unem-se então a um complexo de proteínas e, em conjunto, atacam o RNA mensageiro, retalhando-o em porções não-funcionais.

Como seu nome indica, o RNA mensageiro – uma molécula convencional de ácido ribonucléico, derivada de um gene e com apenas uma fita de pares de base – é o carteiro que carrega a ordem química oriunda de seu respectivo gene até o ribossomo, a organela celular responsável pela produção de proteínas. Fragmentado, o RNA mensageiro não consegue mais levar adiante a receita fornecida pelo gene que o originou. Desse modo, interrompe-se a produção da proteína que seria feita a partir daquele gene. Em linhas gerais, é assim que funciona a técnica de RNAi.

Papel revisto
De quebra, o aparente sucesso do método de silenciamento de genes – aparente porque ninguém ainda sabe ao certo por quanto tempo dura essa inativação, tampouco há certeza absoluta de que a técnica não provoque efeitos colaterais indesejados – acabou elevando o status da molécula de ácido ribonucléico. O RNA sempre foi visto como uma espécie de primo pobre do ácido desoxirribonucléico, o popular DNA, detentor do código genético, necessário para a produção de todas as proteínas de um organismo.

Achava-se que o RNA exercia basicamente o papel de fazer a intermediação entre trechos de DNA (os genes) e as proteínas. O ácido ribonucléico era encarado como um fiel e passivo entregador, um leal mensageiro, da fórmula ditada pelos trechos de DNA para o ribossomo. Seu papel era, sem dúvida, imprescindível, mas de caráter mais burocrático do que criativo. Da mesma forma que um tradutor não deve se afastar do conteúdo original da obra que verte para um outro idioma, o RNA não devia interferir no significado da mensagem que lhe foi confiada pelo DNA. Podia até fazer as adaptações necessárias para que o ribossomo melhor compreendesse o texto químico ditado pelos genes, mas não mais que isso. Ao acrescentar uma fita a mais ao RNA convencional, essa noção de que o ácido ribonucléico jamais influía na mensagem do gene caiu por terra. Não só influi, como pode até mesmo destruí-la por completo, como atesta a técnica de RNAi.

O Projeto
Abelhas Africanizadas: Análise Integrada do Processo de Apis mellifera com Foco sobre Determinantes da Fertilidade de Zangões, Rainhas e Operárias (nº 99/00719-6); Modalidade Projeto temático; Coordenadora Zilá Luz Paulino Simões – Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP de Ribeirão Preto; Investimento R$ 967.157,42

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