Um dos ramos mais antigos das ciências naturais, a fenologia consiste no estudo dos eventos cíclicos de plantas e animais e sua relação com o clima. “É um trabalho artesanal que começa com a marcação de árvores no campo e depois todos os meses a observação do aparecimento de folhas, botões, flores e frutos”, diz a professora Patrícia Morellato, coordenadora do Laboratório de Fenologia do Instituto de Biociências da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Rio Claro. Na fenologia tradicional, os dados coletados são relacionados com a dispersão de sementes por animais frugívoros ou insetos polinizadores que usam recursos florais. Para ir mais além e analisar a influência do clima nas plantas, é preciso um estudo sistemático de campo que leva, em média, de três a cinco anos.
“É um trabalho cansativo, que envolve várias pessoas durante um bom período de tempo”, diz Patrícia, que desde 2010 coordena um projeto inovador de fenologia remota em áreas tropicais, chamado de e-fenologia, financiado pela FAPESP e Microsoft Research Institute. Além de uma câmera digital instalada no topo de uma torre a 18 metros do solo em área de cerrado em Itirapina, no interior de São Paulo, softwares e outras ferramentas foram desenvolvidos para a observação remota e a análise das informações coletadas. São parceiros no projeto o laboratório de Fenologia da Unesp de Rio Claro e o laboratório Reasoning for Complex Data (Recod) do Instituto de Computação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), onde atua o professor Ricardo Torres, que também participa da pesquisa.
A partir de agosto cinco câmeras serão instaladas em diferentes vegetações, como campo, cerrado, caatinga, floresta semidecidual e mata atlântica. “Vamos fazer um estudo para avaliar quanto fica o valor do monitoramento remoto de fenologia em diferentes tipos de vegetação em comparação com a observação tradicional”, diz Torres. A proposta dos pesquisadores para uma nova fase do projeto, uma extensão do atual, é usar imagens obtidas a partir de aviões não tripulados, os Vants, para cobrir uma área bem maior de vegetação. “Queremos levantar novas questões para analisar o impacto de mudanças climáticas nas florestas de regiões tropicais”, diz Torres. O projeto abriu o campo de pesquisas em fenologia remota de áreas tropicais na América do Sul. “Não há muitas câmeras nos trópicos e nenhuma publicação sobre o assunto até o momento”, diz Patrícia. Um dos principais grupos de pesquisa que utilizam câmeras digitais e outras tecnologias para monitoramento remoto em áreas temperadas é o do professor Andrew Richardson, da Universidade Harvard, nos Estados Unidos.
A Rede Nacional de Fenologia dos Estados Unidos, financiada pela Fundação Nacional de Ciências (NSF), começou a monitorar a influência do clima na fenologia de plantas, animais e paisagens em 2007. Recentemente, os pesquisadores da rede publicaram um estudo com a afirmação de que a primavera de 2012 começou quase um mês antes do que a média histórica desde 1900. O fenômeno, batizado de falsa primavera, já que uma boa parcela da vegetação não conseguiu se desenvolver como o esperado para a estação, foi resultado do clima mais quente que chegou prematuramente. Segundo o estudo, as florações aconteceram muito cedo, o que deixou diversas espécies vulneráveis para as ondas de frio que ainda estavam ocorrendo. Entre as regiões mais afetadas estavam o chamado cinturão do milho – que abrange estados como Iowa, Illinois, Indiana e Michigan. Os pesquisadores concluíram que, diante do aquecimento global, a ocorrência de primaveras precoces deve se transformar na nova realidade do país.
Diversos grupos de pesquisa de fenologia remota estão espalhados por países como Japão, Holanda, Austrália, Canadá e Reino Unido. No Japão, por exemplo, webcams – câmeras de vídeo ligadas a computadores – espalhadas pelo país para monitoramento em geral são utilizadas também para observar o ciclo das plantas. A fenologia moderna deve muito ao botânico sueco Carl Linnaeus, que durante o século XVIII registrou sistematicamente épocas de floração e as condições climáticas exatas de quando isso ocorreu em 18 locais na Suécia ao longo de muitos anos.
Checagem de dados
O ponto de partida do projeto e-fenologia são os dados de mais de 2 mil plantas obtidos em observações mensais realizadas em uma área de cerrado de 260 hectares em Itirapina desde o final de 2004. A amostragem da vegetação é feita em 36 transectos – faixa de terra previamente demarcada pelos pesquisadores com 25 por 2,5 metros –, distribuídos em quatro ambientes diferentes, dois na borda e dois no interior do cerrado. Mensalmente quatro pesquisadores vão a campo para amostrar individualmente cada uma das mais de 2 mil plantas. “Avaliamos brotamento, queda foliar, flor e fruto”, explica Bruna Alberton, que participou das pesquisas de campo durante o seu mestrado em fenologia remota e agora no doutorado.
Os dados anotados em papel são passados para uma planilha e só então são transferidos para o computador na forma de uma tabela. “O uso de tecnologia remota permitirá obter uma estimativa da variação do padrão fenológico de mudança foliar ao longo do tempo sem a necessidade de ir a campo”, diz Torres, que coordena a pesquisa no Recod. E o banco de dados que está sendo criado vai permitir que a checagem de dados seja feita de forma bem rápida. Na torre, além da câmera digital que tira cinco fotografias por hora no período que vai das 6 às 18 horas, também foi instalada uma estação de monitoramento climático.
A análise foliar foi uma das fases de mudança da planta escolhidas para validação do uso da tecnologia de monitoramento remoto. “Conseguimos demonstrar que nos trópicos, assim como em climas temperados, o monitoramento remoto de plantas apresenta resultados compatíveis com as observações de campo”, relata. Como o número de espécies em regiões tropicais é muito maior, tanto o reconhecimento de padrões como o entendimento do processo de influência do clima na mudança de fases são mais complexos. “Nós trabalhamos na validação dos dados das câmeras com os dados de observações fenológicas no solo”, diz Patrícia.
Além disso, como nos trópicos não há estações bem definidas, as mudanças de fase se dão de maneira suave. Já nos climas temperados é mais fácil perceber as mudanças, a exemplo da coloração das folhas de árvores ou da queda de folhas. “Nas regiões temperadas, estudos já demonstraram que os ciclos fenológicos de plantas são afetados pelas mudanças climáticas, mas até o início do projeto e-fenologia não havia iniciativas voltadas para o entendimento desses ciclos nas regiões tropicais”, diz Torres.
A informação da cor das plantas é extraída a partir dos canais de cor RGB (vermelho, verde e azul) da imagem coletada pela câmera digital. “A análise e o processamento de imagens para a extração da porcentagem das cores são feitos na Unicamp, com apoio dos pesquisadores da Unesp”, diz Torres. Como no cerrado existem duas estações bem marcantes, a seca e a úmida, ao longo de um determinado período de tempo é possível ver a variação de cor desses canais. Na estação seca, por exemplo, como as folhas adquirem uma tonalidade que vai do marrom ao avermelhado, há um aumento no canal do vermelho.
O grupo de pesquisa da Unicamp desenvolveu algoritmos e novas técnicas baseadas em processamento de imagens e visão computacional que permitem a identificação automática de indivíduos na imagem. “A partir de uma determinada espécie de interesse, os nossos programas são capazes de determinar quais outras regiões da imagem contêm indivíduos da mesma espécie, considerando padrões fenológicos e técnicas de aprendizado de máquina”, diz Torres. “A fenologia remota tem várias aplicações, porque é possível monitorar espécies como modelo em uma área com diferentes graus de fragmentação em escala muito maior do que a feita hoje”, diz Patrícia. Como os dados meteorológicos também são diários, é possível fazer análises coordenadas, o que não ocorria antes. “Estamos trabalhando agora para mostrar a relação das mudanças foliares com as do clima.”
Aplicativo no campo
Uma nova representação dos aspectos fenológicos de plantas em imagens foi mostrada em artigos científicos que serão apresentados em conferências internacionais. “Decodificamos as informações de várias imagens feitas por um longo período de tempo em uma única imagem, chamada de ritmo visual fenológico”, diz Torres. “A ideia é que, em vez de processar toda a coleção de imagens para extrairmos padrões cíclicos, com uma representação mais simples e compacta conseguimos oferecer informação equivalente.”
Em colaboração com pesquisadores da área de interface do Instituto de Computação foi desenvolvido um aplicativo para smartphone que vai permitir aos biólogos anotar suas observações em campo diretamente no celular, no lugar do papel. “Os dados vão nascer de maneira digital, o que vai facilitar o processo de inserção no nosso banco de dados”, diz Torres. São diferentes estratégias para o aplicativo que serão testadas em campo neste semestre, para avaliar qual é mais efetiva. Outra vertente do trabalho, chamada de prospecção de séries temporais, identifica, por exemplo, o ponto de corte de uma mudança. “Procuramos saber se a variação do verde de uma espécie está relacionada, por exemplo, a aspectos climatológicos como a ocorrência de chuvas”, diz. Também são parceiros no projeto a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, a Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e a Universidade de Lorraine, na França.
Projeto
E-fenologia: aplicação de novas tecnologias para monitorar a fenologia e mudanças climáticas nos trópicos (nº 2010/52113-5); Modalidade Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa – Programa de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais – Convênio FAPESP/Microsoft; Coord. Leonor Patrícia Cerdeira Morellato/Unesp; Investimento R$ 331.023,44 (FAPESP).
Artigo científico
ALMEIDA, J. et al. Applying machine learning based on multiscale classifiers to detect remote phenology patterns in cerrado savanna trees. Ecological Informatics. versão on-line, 4 jul. 2013.