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Cartografia planetária

Olhar eletrônico

Ferramentas matemáticas ajudam a identificar de forma automática crateras e redemoinhos em Mercúrio e Marte

Mapa da superfície de Marte, com a região analisada...

nasaMapa da superfície de Marte, com a região analisada…nasa

Marte pode até ser desabitado, mas está longe de ser um lugar tranquilo. Sua superfície é frequentemente varrida por poderosos redemoinhos, os dust devils, que alcançam dimensões até 100 vezes maiores do que os redemoinhos registrados na Terra. Em Marte, eles chegam a ter 2 quilômetros de raio e 20 quilômetros de altura. Visíveis da órbita do planeta, deixam atrás de si rastros com quilômetros de extensão e modelam a paisagem marciana.

Até agora os pesquisadores interessados em estudar o fenômeno têm sido obrigados, na maioria das vezes, a procurar seus rastros examinando manualmente uma a uma as imagens da superfície marciana. Mas um novo método, desenvolvido por brasileiros e portugueses, promete facilitar a pesquisa ao permitir a detecção automática tanto do traçado quanto de outras características dos dust devils. O método já apresentou uma acurácia de 92% e continua sendo aperfeiçoado.

Marte, depois da Terra, é o planeta mais bem estudado da história. Já recebeu a visita de 15 sondas espaciais, que fizeram sobrevoos ou entraram em sua órbita. “Uma única câmera, de uma única sonda, chega a produzir 2 mil imagens de cada região de Marte”, diz o engenheiro cartógrafo Thiago Statella, professor no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Mato Grosso, em Cuiabá. Statella trabalhou sob a orientação do engenheiro cartógrafo Erivaldo Antônio da Silva, da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Presidente Prudente, e de Pedro Pina, do Instituto Superior Técnico (IST), da Universidade de Lisboa, no desenvolvimento de um programa capaz de fazer a detecção automática dos rastros dos dust devils.

... e dust devil flagrado em 2012 pela câmera da sonda Mars Reconnaissance Orbiter

nasa… e dust devil flagrado em 2012 pela câmera da sonda Mars Reconnaissance Orbiternasa

O programa usa ferramentas da morfologia matemática, uma técnica de processamento digital que extrai informações de imagens, neste caso, feitas por câmeras a bordo das sondas orbitais Mars Global Surveyor (MGS) e Mars Reconaissance Orbiter (MRO). Criada nos anos 1960 na França pelos matemáticos Georges Matheron e Jean Serra, a morfologia matemática foi empregada inicialmente para extrair informações de imagens de microscopia de rochas e metais por meio da análise de suas estruturas geométricas. Aos poucos, seu uso foi extrapolando para outras áreas até chegar à cartografia. Hoje ela auxilia na identificação de estruturas em outros planetas, a chamada cartografia planetária. “Nosso grupo já usava a morfologia matemática em trabalhos de mapeamento da superfície terrestre, o que no início não era algo muito comum. Foi isso que despertou o interesse dos pesquisadores de Portugal em colaborar”, conta Silva.

O processamento de imagens baseado na morfologia matemática permite manipular a tonalidade dos pixels e, assim, realçar ou eliminar determinadas características da imagem. Com essa estratégia, limpa-se da imagem o que não interessa – por exemplo, vales, rochas, dunas e sombras – e restam apenas os rastros dos dust devils. O resultado é uma imagem com tons muito claros, plasmados sobre um fundo escuro, que oculta as demais características da imagem original.

Os pesquisadores usaram a técnica para tratar 200 imagens de cinco regiões de Marte captadas pelas sondas MGS e MRO e compararam os resultados com a análise visual feita por um expert. O índice de acertos do programa variou de 69% a 99%, dependendo da imagem.
A média foi de 92%.

O lado do vento
A detecção dos rastros também pode fornecer informações sobre o funcionamento da atmosfera do planeta. Os dust devils se formam pela movimentação dos gases na atmosfera marciana. A luz solar que incide sobre o solo aquece os gases próximos à superfície, que ascendem e empurram as camadas mais superiores da atmosfera para o alto. À medida que sobem, essas camadas resfriam e descem, gerando um movimento contínuo conhecido como célula de convecção. Rajadas de vento podem deslocar o ar quente na horizontal e alterar a direção da célula de convecção, originando os dust devils. Por essa razão, seus rastros podem guardar informação sobre a direção em que o vento soprava no momento em que foram formados.

Essas informações são importantes para aperfeiçoar o Modelo de Circulação Geral de Marte (GCM, na sigla em inglês), que vem sendo desenvolvido pela agência espacial norte-americana, a Nasa, desde os anos 1960 com o objetivo de descrever o funcionamento da atmosfera do planeta e sua influência sobre o clima. Atualmente o GCM é capaz de predizer o comportamento esperado dos ventos nas diversas regiões marcianas.

Statella, Silva e Pina também desenvolveram um programa que, a partir dos rastros detectados na imagem, calcula a direção preferencial dos ventos. Os resultados obtidos por essa estratégia foram semelhantes aos de uma análise feita manualmente e aos do GCM, segundo estudo publicado em 2014 na revista Advances in Space Research.

“Uma das maneiras de aferir as previsões do GCM são as observações feitas pelas sondas que pousaram no planeta. Mas essas observações muitas vezes são pontuais”, diz Statella. “A detecção automática da direção dos dust devils pode fornecer informações globais sobre a direção do vento numa determinada região.”

Essa estratégia, porém, fornece apenas a direção predominante dos ventos – a do maior número de rastros. O problema é que uma única imagem pode exibir rastros com mais de uma orientação, gerados por dust devils que percorreram a região em diferentes momentos, sob regimes de vento distintos.

Statella testou três abordagens para estimar a direção predominante dos ventos em 190 imagens feitas pela MGS e pela MRO. A mais eficaz apresentou uma acurácia de 86,3%, quando comparada com um gabarito produzido por um especialista. Em 100% dos casos a abordagem de Statella coincidiu com as previsões feitas pelo GCM em diferentes períodos para a região conhecida como Argyre, no hemisfério Sul marciano. Ele pretende agora formar um banco de dados com o maior número possível de registros de dust devils para inferir quais os tipos mais comuns nas diferentes regiões do planeta e em quais períodos costumam ocorrer.

Mercúrio: crateras detectadas corretamente (verde); erroneamente (vermelho) e não detectadas (azul)

miriam pedrosaMercúrio: crateras detectadas corretamente (verde); erroneamente (vermelho) e não detectadas (azul)miriam pedrosa

Mensageiro de Mercúrio
A equipe de Silva e Pina também usa ferramentas da morfologia matemática e outras técnicas de processamento de imagens para identificar crateras em Mercúrio, o planeta mais próximo ao Sol. Miriam Pedrosa, aluna de doutorado na Unesp, vem desenvolvendo um programa para analisar as imagens feitas pela sonda Messenger. A sonda obteve as primeiras imagens da superfície de Mercúrio em sobrevoos feitos em 2008 e 2009 – desde que entrou na órbita do planeta em 2011, ela continua a enviar imagens com maior resolução.

Em seu mestrado, sob a orientação de Silva, Miriam havia desenvolvido um programa para a detecção automática de crateras em imagens de Marte. Para Mercúrio, o programa foi aprimorado por causa da menor resolução espacial das imagens obtidas pela Messenger. “Marte já recebeu a visita de diversas sondas. Por isso estão disponíveis imagens com ótima resolução, em algumas delas cada pixel representa uma área de 25 centímetros quadrados”, conta Miriam. “Já no caso de Mercúrio, a melhor resolução disponível tem em torno de 16 metros e, em alguns casos, não passa de 250 metros.” Isso significa que uma cratera com 100 metros de diâmetro pode desaparecer na foto. Além da resolução, características da superfície do planeta, sua proximidade do Sol e a qualidade dos detectores das câmeras também dificultam o uso do programa.

Miriam já analisou 47 imagens de três regiões – as bacias de Mozart, Rachmaninoff e Raditladi – do planeta. O grau médio de acerto na identificação das crateras foi de 87%, quando comparado com a identificação feita por um especialista. “O programa usa imagens com qualidade e resolução muito diferentes”, diz Miriam. “Os melhores resultados foram obtidos com as de maior resolução.”

No caso de Mercúrio, no entanto, houve um número expressivo de falsos positivos – feições que o programa, equivocadamente, considerou como crateras. A fim de solucionar o problema, ela incluiu no método uma etapa em que informa características de feições que, embora pareçam crateras, não são. “Essa é uma nova tendência na detecção automática: fornecer ao classificador exemplos de feições que estão presentes na imagem analisada e não são crateras”, conta. “Dessa forma, o programa vai ‘aprendendo’ a discriminar, até se tornar capaz de fazer a análise em fotos com características muito distintas”, explica.

Poucos grupos trabalham com cartografia planetária no Brasil, que deve sediar o próximo congresso da International Cartographic Association em agosto, com uma sessão dedicada ao tema. O da Unesp é um dos poucos que aplicam a morfologia matemática aos estudos na área. “Temos alguns resultados interessantes”, diz Silva. “A maior parte dos pesquisadores busca crateras com raio superior a 1 quilômetro, nós conseguimos detectar crateras com essas dimensões e estamos trabalhando para detectar crateras ainda menores.”

Projeto
Desenvolvimento de metodologia para a extração de feições cartográficas a partir de imagens digitais das superfícies dos planetas Terra, Marte e Mercúrio (n. 2014/08822-2); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Erivaldo Antonio da Silva (Unesp); Investimento R$ 60.850,00 (FAPESP).

Artigos científicos
STATELLA, T.; PINA, P.; SILVA, E. A. Automated determination of the orientation of dust devil tracks in Mars Orbiter Images. Advances in Space Research. v. 53, p. 1822-33. 2014.
STATELLA, T.; PINA, P.; SILVA, E. A. Image processing algorithm for the identification of Martian dust devil tracks in MOC and HiRISE images. Planetary and Space Science. v. 70, p. 46-58. 2012.

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