Nas últimas décadas, aumentou bastante o tempo decorrido entre a publicação de um trabalho capaz de influenciar toda uma área da ciência e o seu reconhecimento com um Prêmio Nobel, especialmente em Química, Física e Fisiologia ou Medicina. A espera cresceu mais acentuadamente a partir dos anos 1960 e, entre 2011 e 2019, já era preciso aguardar, em média, mais de 25 anos para a premiação chegar, segundo reportagem publicada em 29 de setembro na revista Nature – o tempo médio era menor, de 26 anos, em Fisiologia ou Medicina, e maior em Química, de 30 anos.
Este ano não foi muito diferente, com exceção do prêmio de Fisiologia ou Medicina, que prestigiou resultados que começaram a ser publicados há menos de 20 anos. Em 2023, o valor do prêmio nas seis áreas – Física, Química, Paz, Literatura, Economia e Fisiologia ou Medicina – foi de 11 milhões de coroas suecas (cerca de R$ 5 milhões). Houve 11 ganhadores, dos quais quatro eram mulheres – o mesmo número de 2018 e 2020, inferior apenas ao de 2009, quando houve cinco premiadas.
Fisiologia ou Medicina
Em 4 de outubro, a equipe da bioquímica Santuza Teixeira, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), apresentou no congresso da Sociedade Brasileira de Imunologia os resultados de uma potencial vacina contra a leishmaniose cutânea, infecção causada por protozoários que geram lesões na pele e nas cartilagens. Testada em camundongos, a formulação usa uma molécula de RNA mensageiro (mRNA) para estimular o organismo dos roedores a produzir um fragmento de proteína que impele o sistema de defesa a combater o protozoário. Os animais que receberam a formulação apresentaram de 10 a 100 vezes menos parasitas nas lesões do que os tratados com placebo. “É um resultado importante, mas que precisa ser melhorado”, afirmou a bioquímica Gabriela Burle Caldas, que reportou os dados no encontro.
Dois dias antes, o Prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina havia sido anunciado justamente para os pesquisadores que abriram o caminho para o desenvolvimento das vacinas à base de mRNA. A bioquímica húngara Katalin Karikó, de 68 anos, e o imunologista norte-americano Drew Weissman, de 64, ambos da Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos, compartilharam igualmente o prêmio.
Karikó iniciou sua carreira científica na Hungria e migrou para os Estados Unidos no fim dos anos 1980. Na Universidade da Pensilvânia, ela trabalhou inicialmente no desenvolvimento de terapias à base de mRNA para tratar acidente vascular cerebral, mas enfrentou dificuldades para obter financiamento. Em 1997, começou uma parceria com Weissman, que então buscava novas estratégias para desenvolver uma vacina contra o vírus da Aids.
Sem a solução proposta por Karikó e Weissman não se teria chegado às vacinas de mRNA
Na época, os imunizantes disponíveis para proteger de diversas doenças eram quase sempre produzidos a partir de patógenos inteiros ou de proteínas deles para estimular a resposta do sistema de defesa, mas exigiam o cultivo de grandes quantidades de células. Por essa razão, buscavam-se alternativas. Uma delas era a molécula de mRNA. A ideia era criar em laboratório uma dessas moléculas com a informação de uma proteína capaz de despertar a resposta imune contra determinado patógeno e administrá-la ao organismo. A expectativa era que, no corpo, esse mRNA chegasse às células e iniciasse a produção da proteína ativadora do sistema de defesa.
Mas a versão sintética dessas moléculas era instável e, assim que entrava no organismo, era reconhecida como invasora e destruída. Ela também despertava uma inflamação intensa que aniquilava as próprias células. Karikó e Weissman notaram que essa resposta inflamatória ocorria porque o mRNA naturalmente produzido pelas células dos mamíferos tinha uma pequena alteração química que faltava na versão de laboratório. Ao modificar a molécula sintética, eles resolveram o problema.
“A descoberta feita por eles permitiu chegar a uma forma segura de usar o mRNA em vacinas e com maior capacidade de gerar imunidade”, explica o microbiologista Luís Carlos de Souza Ferreira, da Universidade de São Paulo (USP).
Na pandemia de Covid-19, a tecnologia foi licenciada para os laboratórios farmacêuticos Moderna e Pfizer/BioNTech – Karikó é vice-presidente sênior da BioNTech desde 2019 –, que produziram dois dos imunizantes mais eficientes contra o novo coronavírus. “Sem a solução proposta por Karikó e Weissman não se teria conseguido chegar às vacinas de mRNA”, afirma Teixeira, da UFMG. Atualmente, a equipe de Ferreira, da USP, avalia o desempenho de uma potencial vacina de mRNA, desenvolvida com o grupo de Karikó, para tratar o câncer provocado pelo vírus do papiloma humano, o HPV (ver Pesquisa FAPESP nº 326).
Física e Química
Trabalhos que estão ajudando a conhecer melhor o comportamento da matéria no nível subatômico foram homenageados neste ano com o Nobel de Física e Química.
Os físicos franceses Anne L’Huillier, da Universidade de Lund, na Suécia, e Pierre Agostini, da Universidade Estadual de Ohio, nos Estados Unidos, e o húngaro-austríaco Ferenc Krausz, do Instituto Max Planck de Óptica Quântica, na Alemanha, compartilharam o Nobel de Física por terem desenvolvido métodos que permitem gerar pulsos de luz com duração de attossegundos.
Um attossegundo equivale a 1 bilionésimo de 1 bilionésimo de segundo. É nessa escala de tempo que se registram mudanças de movimento e energia dos elétrons no interior de átomos e moléculas, processos percebidos pelos sentidos humanos como instantâneos. Antes dos trabalhos do trio de físicos, o limite temporal das medições que envolviam pulsos de luz era da ordem dos femtossegundos (1 femtossegundo equivale a mil attossegundos).
“A ciência dos attossegundos lida com a matéria em condições extremas, com lasers muito intensos e tempos extremamente curtos”, comenta a física brasileira Carla Figueira De Morisson Faria, do University College London, do Reino Unido, que faz pesquisa na área. “Esse campo tem muitas ramificações e controlar os elétrons em tempo real está se tornando uma realidade pouco a pouco.”
A partir de 1987, os trabalhos de L’Huillier, hoje com 65 anos, começaram a lançar as bases da física dos attossegundos. Em experimentos nas décadas seguintes, ela e os colegas que ganharam o Nobel caracterizaram e aprenderam a manipular os fenômenos que permitem gerar pulsos de luz da ordem dos attossegundos. Na Áustria, o grupo de Krausz, de 61 anos, desenvolveu uma técnica que possibilitou medir pulsos de luz de 650 attossegundos. Nos Estados Unidos, a equipe de Agostini, de 82 anos, trabalhou em abordagens semelhantes e registrou pulsos de 250 attossegundos.
Na eletroeletrônica, esse tipo de conhecimento pode ser útil para entender e controlar o comportamento de elétrons em um material. Na área médica, pode ser empregado para gerar diagnósticos por imagem de doenças.
O Nobel de Química deste ano foi compartilhado pelo físico russo Alexei Ekimov, de 78 anos, da empresa Nanocrystals Technology, com o químico norte-americano Louis Brus, de 89 anos, da Universidade Columbia, e o químico franco-tunisiano Moungi Bawendi, de 62, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT). Eles descobriram os pontos quânticos e identificaram maneiras de sintetizá-los com precisão.
Pontos quânticos são partículas extremamente diminutas, com diâmetro da ordem de poucos nanômetros (1 nanômetro é a milionésima parte do milímetro). Tamanho tão reduzido confere a essas nanopartículas uma característica peculiar: sua dimensão ajuda a determinar suas propriedades físicas e químicas. É diferente do que ocorre com partículas maiores, cujas propriedades são definidas apenas pela composição química. Por essa razão, pontos quânticos de mesma composição, mas tamanhos diferentes, podem emitir luz em cores distintas.
Nos anos 1980, Ekimov identificou que variações na coloração de vidros se deviam a pontos quânticos semicondutores de diferentes tamanhos. Brus percebeu algo semelhante em partículas suspensas em líquidos, cujas propriedades catalíticas ele estudava. Nos anos 1990, Bawendi, que havia feito um estágio de pós-doutorado com Brus, descobriu como sintetizar pontos quânticos com alta precisão.
Tamanho dos pontos quânticos influencia suas propriedades físicas e químicas
“A luz azul é mais difícil de obter”, lembra o físico Éder Guidelli, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP), da USP. Em 2017, ele passou um ano no MIT no laboratório de um colaborador de Bawendi e produziu nanopartículas de seleneto de zinco que emitem luz azul. Atualmente Guidelli usa outro tipo de nanopartícula para desenvolver terapias contra o câncer.
A química peruana Maria del Pilar Sotomayor, do campus de Araraquara da Universidade Estadual Paulista (Unesp), tem interesse em empregar pontos quânticos para diagnóstico oncológico.
Economia e Paz
Dois dos prêmios concedidos neste ano valorizam a atuação de mulheres em defesa dos direitos femininos.
A economista norte-americana Claudia Goldin, de 77 anos, da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, foi agraciada com o Nobel de Economia em reconhecimento a seus estudos sobre a evolução da participação feminina no mercado de trabalho dos Estados Unidos e por ajudar a compreender as causas das desigualdades salariais entre homens e mulheres.
“As mulheres estão sub-representadas no mercado de trabalho global e, quando trabalham, ganham menos que os homens. Claudia Goldin coletou mais de 200 anos de dados dos Estados Unidos. Isso lhe permitiu mostrar como e por que as diferenças de gênero nos ganhos e taxas de emprego mudaram ao longo do tempo”, informou a Real Academia de Ciências da Suécia.
“Goldin contribuiu em duas áreas: a da desigualdade de salários e de direitos entre homens e mulheres nos Estados Unidos e a do papel da educação para explicar as desigualdades salariais no país”, explica o economista Naercio Menezes Filho, coordenador do Centro de Pesquisa Aplicada à Primeira Infância, sediado no Insper e financiado pela FAPESP.
O Nobel da Paz foi para a iraniana Narges Mohammadi, de 51 anos. Física e ativista, ela está presa no Irã pelos posicionamentos que adota desde os tempos de faculdade em favor dos princípios democráticos e dos direitos humanos básicos, em especial para as mulheres.
“Mesmo na prisão Mohammadi é a figura de referência, o símbolo do que significa ser uma lutadora pela liberdade”, afirmou a advogada norueguesa Berit Reiss-Andersen ao anunciar a premiação.
Literatura
Aos 64 anos, o norueguês Jon Fosse, escritor, dramaturgo, poeta e tradutor, foi reconhecido com a láurea. A Academia Sueca lhe atribuiu o prêmio por sua literatura “dar voz ao que não pode ser dito” e pela “ação dramática que expõe a ansiedade e as ambivalências do ser humano”. Nascido em 1959 em Haugesund, o autor escreve em nynorsk, ou neonorueguês, um dos dois idiomas oficiais da Noruega, usado por 10% a 15% da população.
Fosse escreveu mais de 50 obras e tem três livros publicados no Brasil: Melancolia (Tordesilhas, 2015), É a Ales (Companhia das Letras, 2023) e Brancura (Fósforo, 2023). O escritor é famoso na Noruega por sua obra teatral. “Ele é o autor que conta com mais montagens teatrais depois de Ibsen”, afirma Lucas Lazzaretti, que faz pós-doutorado em literatura e dramaturgia sueca na Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Estudos sobre o ato dos geólogos de lamber pedras e a vida sexual das anchovas são homenageados com o IgNobel
Em 14 de setembro, ocorreu a cerimônia de entrega do IgNobel, o prêmio que homenageia pesquisas científicas sérias que “primeiro fazem rir e depois pensar”. Neste ano, houve ganhadores em 10 categorias. A seguir, alguns dos mais curiosos.
O geólogo britânico de origem polonesa Jan Zalasiewicz recebeu o prêmio na categoria Química e Geologia por mostrar que, há 200 anos, geólogos desprovidos de recursos tecnológicos lambiam rochas para identificá-las. Em artigo publicado em 2017 no Boletim da Associação Paleontológica do Reino Unido, ele resgata os relatos do mineralogista italiano Giovanni Arduino (1714-1795), que era capaz de reconhecer o sabor de diferentes contextos fossilíferos e associá-los a aspectos geológicos e estratigráficos. “Eles faziam geologia por gosto, e funcionava para eles”, explicou Zalasiewicz, que afirma já ter lambido muitas pedras em expedições de campo para enxergar seus atributos à lupa.
O prêmio de Literatura foi para pesquisadores da França, do Reino Unido, da Malásia e da Finlândia “por estudar o que as pessoas sentem quando repetem uma única palavra muitas, muitas, muitas, muitas, muitas, muitas, muitas, muitas vezes”. O artigo, que trata do fenômeno “jamais vu”, foi publicado em 2021 na revista Memory.
Em Medicina, o prêmio foi concedido a pesquisadoras dos Estados Unidos, Canadá, Irã, Vietnã e Macedônia que examinaram a assimetria no número de pelos nas narinas de cadáveres, como descrito em artigo de 2022 na revista International Journal of Dermatology. Elas se preocuparam com o assunto porque os pacientes de alopecia – perda extrema de cabelo – não têm pelos nasais, uma das linhas de defesa do organismo contra doenças.
Pesquisadores da Espanha, Galícia, Suíça, França e Reino Unido receberam o prêmio de Física “por medir até que ponto a água do mar é misturada pela atividade sexual de anchovas”, como relatado em artigo publicado na Nature Geoscience em 2022.