O aumento da demanda por alimentos orgânicos, livres de pesticidas, herbicidas e aditivos químicos, tem crescido significativamente nos últimos anos, estimulado, principalmente, pelos países que importam produtos agrícolas do Brasil. Mas a grande dúvida que aflige o consumidor final, que paga até quatro vezes mais por esses alimentos, é saber se o produto realmente se enquadra no conceito de orgânico em todas as etapas do processo. Para dar garantia de qualidade a esses alimentos, de forma materializada num selo verde – também reivindicado pelo Ministério da Agricultura -, pesquisadores do Centro de Energia Nuclear na Agricultura (Cena) da Universidade de São Paulo (USP) estão desenvolvendo métodos avançados para análise de rotina, capazes de comprovar se um produto foi mesmo produzido sem nenhum tipo de tratamento químico, desde a plantação até o ponto-de-venda.
Mais eficiente e menos dispendiosa do que os testes atualmente disponíveis, a análise vai permitir o aprimoramento do atual sistema de certificação, que se baseia apenas na avaliação do processo de produção. Com isso, espera-se que o setor ganhe mais credibilidade, tanto no mercado interno como no externo, contribuindo para eliminar as atuais barreiras sanitárias para a exportação. Todo o trabalho de certificação teve início com uma pesquisa coordenada pela professora Siu Mui Tsai, do Laboratório de Biologia Celular e Molecular do Cena, que teve início com um projeto financiado pela FAPESP dentro do programa Parceria para Inovação Tecnológica (PITE).
A Shimura’s Alimentos, fazenda dedicada à atividade agropecuária no município de Batatais, na região de Ribeirão Preto, deu apoio logístico ao projeto, que já resultou na criação de parâmetros para a certificação de vários produtos, como café, açúcar, soja, milho, batata e feijão. É um bom começo, porque foi necessário criar padrões de referência para a análise, exigindo o cultivo controlado para garantir a completa ausência de insumos químicos. Para implementar as novas análises e promover futuramente a certificação de produtos agropecuários, o Cena criou o Laboratório de Segurança Alimentar, que deve estar pronto em maio. A nova unidade vai se dedicar à certificação de produtos agrícolas, incluindo os alimentos orgânicos.
Com isso, espera atender à atual demanda por análises, gerada tanto pelo aprimoramento das políticas de segurança alimentar como por eventos ocasionais, como o surgimento da doença da vaca louca e de surtos de febre aftosa. “À medida que o mercado se torna cada vez mais exigente, os produtores são obrigados a se adequar a novas normas, obedecendo padrões que antes não eram exigidos”, explica Elisabete De Nadai Fernandes, do Laboratório de Radioisótopos do Cena. As exportações de grãos, por exemplo, preocupam, pois podem ser rejeitadas em países europeus, como a Suíça, caso contenham porcentagem superior a 0,1% de sementes transgênicas. A fiscalização não é menos rigorosa à presença de hormônios e antibióticos na carne para exportação.
Fim das incertezas
Atualmente, quem compra produtos com o selo “alimento orgânico” não está totalmente livre de ser enganado. Embora exista no país um sistema de certificação bem estruturado, com quatro organismos responsáveis por fiscalizar a produção no campo e garantir que os produtores estão seguindo todas as normas técnicas de cultivo e obedecendo à proibição do uso de qualquer insumo químico, o consumidor ainda tem motivos para duvidar. “Quem garante que a fruta não foi pulverizada com defensivos para preservação pós-colheita ou que o produto não tenha sido misturado ou mesmo trocado por outro não orgânico?”, questiona Tsai.
Para a pesquisadora, a falha do atual sistema está no método de certificação, que se baseia apenas na avaliação do processo de produção, e não na análise do produto final. Isso acontece porque, até hoje, a pesquisa laboratorial era muito cara e pouco sensível. O método mais usual para detecção de toxinas microbianas, a análise imunoquímica, não é indicado para a rotina, pois elevaria ainda mais o custo de produção, inviabilizando os negócios do setor. A alternativa se baseia em técnicas isotópicas e nucleares utilizadas para detectar radioatividade em alimentos, realizadas no Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen). Os alimentos são irradiados e ficam mais susceptíveis à análise dos elementos químicos que os compõem. “Assim, testar produtos orgânicos vai se tornar bem mais acessível, além de mais eficiente”, garante Elisabete.
A técnica foi empregada para analisar grãos de café, numa das pesquisas ligadas ao Cena. Ainda em fase de conclusão, a tese de doutorado de Fábio Sileno Tagliaferro permitiu identificar diferenças na concentração de algumas substâncias presentes no café que são indicadoras do cultivo orgânico. Comparado ao café convencional, o orgânico apresenta concentrações mais baixas de bromo, cobalto, césio e rubídio, enquanto o nível de cálcio é maior. O resultado comprova que o uso de agroquímicos deixa rastros, que podem ser detectados como alterações na composição química dos alimentos. “São diferenças muito pequenas, mas facilmente detectadas, desde que se tenha estrutura laboratorial adequada e pessoal capacitado”, afirma a pesquisadora. A implementação dessas análises em larga escala para atender o produtor ainda pode levar de um a dois anos. Antes, é preciso conhecer a composição de cada produto, ou seja, criar padrões que permitam comparar o que é e o que não é alimento orgânico.
Produção limpa
A parceria com a Shimura’s levou a caminhos não previstos no início do projeto, mas que ajudaram a comprovar a eficácia de alguns procedimentos da produção limpa. Logo no início, surgiu a necessidade de encontrar uma solução para fechar o ciclo produtivo da fazenda. A maior dificuldade era eliminar a contaminação de um lago com os dejetos da criação de porcos. A solução encontrada pela pesquisadora foi levar para a fazenda um exército de minhocas, animais que são, por sua própria natureza, agentes transformadores. Foram então construídos canteiros para o minhocário, onde passaram a ser depositados os resíduos da produção de milho (cultivado para a alimentação dos porcos) e o esterco do gado (bovino e suíno). No experimento, foram usadas minhocas conhecidas pelo nome de gigantes africanas (Eudrilus eugeniae), originárias da África Ocidental e que medem de 20 a 22 centímetros.
O composto orgânico (fezes decompostas) produzido pela minhoca, identificado como vermicomposto e popularmente chamado de húmus, possui uma forma granulada que favorece o arejamento do solo e melhora o enraizamento. Além disso, as substâncias que ele contém proporcionam maior quantidade de nutrientes assimiláveis pelas plantas – é rico em nitrogênio, fósforo (que é a maior deficiência encontrada nos solos), potássio, ferro, zinco, manganês e sais minerais – e aumentam a retenção de água. Testes com feijoeiros mostraram que as plantas se tornam mais robustas, com raízes mais fortes. Com o húmus, os nutrientes são liberados gradativamente, numa ação mais prolongada que a adubação tradicional, podendo durar até dois anos.
Com o projeto do PITE foi possível formatar o processo de fabricação de um produto nada convencional: a farinha de minhoca. Nesse processo, as minhocas ficam de quarentena e passam por sucessivas lavagens antes de serem esterilizadas. Num liofilizador (um desidratador a vácuo), elas são congeladas a 40 graus negativos e depois aquecidas gradativamente até 40 graus positivos, para eliminar toda a água. Por fim, são moídas e encapsuladas. As propriedades nutricionais da farinha de minhoca têm sido descritas em várias pesquisas no exterior, sobretudo nos Estados Unidos, China e Austrália, onde o produto é recomendado para alimentação de animais em crescimento, como pintinhos, alevinos de peixes ornamentais, camarões e pássaros.
Teste de segurança
Há indícios de que a farinha de minhoca é também um poderoso suplemento alimentar para humanos. “Já sabemos que ela reduz o colesterol no sangue e tem ação anticoagulante”, afirma Tsai. Mas, segundo Hélio Vanucci, membro da Câmara Técnica de Alimentos Funcionais da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), a liberação do produto para consumo humano ainda depende de testes que comprovem sua eficácia e segurança. Para incentivar a atividade de criação de minhocas, a equipe envolvida no projeto começou um trabalho de conscientização dos agricultores, com a distribuição de uma cartilha, no formato de história em quadrinhos, onde os personagens contam, de forma bem-humorada, as mil e uma utilidades da minhoca. Em As Aventuras do Superminhoca, os personagens fazem um passeio pela natureza, mostrando o papel das minhocas na manutenção do equilíbrio ecológico, explicam como se constrói um minhocário e apresentam uma fábrica de farinha de minhocas.
O projeto
Qualidade Alimentar e Agricultura em uma Economia de Mercado: Produção Orgânica e Certificação de Produtos Agropecuários para Obtenção da Chancela do Selo Verde (nº 97/13244-0); Modalidade Parceria para a Inovação Tecnológica (PITE); Coordenadora Siu Mui Tsai – Laboratório de Biologia Celular e Molecular do Cena; Investimentos R$ 124.500,00 e US$ 56.111,11 (FAPESP) e R$ 74.200,00 (Shimura’s)