Por muito tempo consideradas meras coadjuvantes no funcionamento cerebral, as células gliais só entraram em evidência nos últimos anos à medida que trabalhos começaram a comprovar sua importância para o desenvolvimento, a regeneração e a estruturação do sistema nervoso. Elas representam quase metade das células cerebrais – a outra metade são os neurônios – e seu mau funcionamento, sugerem estudos recentes, está ligado ao desenvolvimento de doenças neurodegenerativas. Agora pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) identificaram mais uma função essencial das células gliais. A equipe da bióloga Flávia Alcantara Gomes verificou que são os astrócitos, o tipo mais comum de células da glia, que controlam a formação de conexões (sinapses) entre os neurônios, as células que transportam e armazenam informação no cérebro.
“Sem as células gliais, grande parte das sinapses não ocorreria de forma eficiente”, afirma Flávia. Em artigo publicado em novembro no Journal of Biological Chemistry, ela e seus colaboradores demonstraram que uma proteína produzida em abundância pelos astrócitos – o fator de crescimento transformante ß1 (TGF-ß1) – regula a formação de sinapses em camundongos e em seres humanos. Para Flávia, a descoberta abre perspectivas para se entender melhor o papel das células gliais no desenvolvimento de distúrbios neurológicos e no envelhecimento. Há sinais de que nos estágios iniciais de algumas doenças e do envelhecimento, antes de começar a morrer, os neurônios perdem as conexões com outros neurônios.
Já havia pistas de que os astrócitos ajudassem na formação de sinapses. Há cerca de 10 anos Ben Barres, Frank Pfrieger e colegas da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, relatavam que neurônios de camundongos criados em laboratório faziam mais sinapses na presença de astrócitos. Eles haviam, inclusive, identificado moléculas secretadas pelos astrócitos que induziam a formação de sinapses. Mas essas moléculas apenas estimulavam a formação da fenda química ou da estrutura onde ocorre a transmissão do impulso nervoso de um neurônio a outro, que nem sempre eram funcionais.
O grupo da UFRJ comprovou que o TGF-ß1 é capaz de fazer as duas coisas: induz a formação dessas estruturas e de sinapses funcionalmente ativas. “Usamos dois caminhos para chegar à mesma conclusão”, explica Flávia. “Uma avaliação bioquímica com modelo in vitro e a análise por eletrofisiologia, que identifica correntes elétricas características de sinapses.”
Durante o desenvolvimento do sistema nervoso embrionário, as células gliais funcionam como células-tronco do córtex cerebral e no sistema nervoso adulto podem dar origem tanto a células neuronais como a astrócitos. Antes, os pesquisadores da UFRJ já haviam descoberto que o TGF-ß1 induzia a diferenciação das células-tronco progenitoras em astrócitos, mas não em neurônios. Na pesquisa atual, o TGF-ß1 oriundo dos astrócitos ganhou um novo papel. Neurônios que cresceram no meio de cultura com essa proteína fazem até três vezes mais sinapses do que no meio de cultura comum. O mesmo acontece quando o TGF-ß1 é injetado diretamente no córtex do animal vivo.
Na verdade, o grupo comprovou que o papel do TGF-ß1 na formação das sinapses do córtex cerebral se dá de forma indireta. O TGF-ß1 aciona a produção do aminoácido (unidade formadora das proteínas) D-serina, que é secretado pelo neurônio e, no meio extracelular, se associa ao neurotransmissor glutamato (ver infográfico). Atuando juntos, a D-serina e o glutamato ativam a produção de sinapses no neurônio. E quanto mais D-serina, maior a quantidade de sinapses.
Agora, em humanos
“O grande mérito desse trabalho é, primeiro, mostrar como os astrócitos contribuem em termos bioquímicos para a formação da sinapse e, segundo, mostrar isso com células derivadas de tecido humano”, comenta o neurocientista Luiz Roberto Giorgetti de Britto, da Universidade de São Paulo. Isso porque, até agora, os estudos sobre a relação complexa entre neurônios e astrócitos haviam sido realizados apenas em camundongos e não em seres humanos.
Para o ensaio com tecido humano, a equipe extraiu astrócitos do tecido cerebral que seria descartado de pacientes submetidos a cirurgias para tratamento de epilepsia no Hospital Universitário da UFRJ. “Como o encéfalo humano é mais complexo e difícil de trabalhar, não existia padronização adequada”, afirma Flávia. Os resultados foram parecidos, demonstrando que em termos bioquímicos as células têm o mesmo comportamento dos astrócitos de camundongos.
infográfico: ana paula campos ilustração: pedro hamdan“Esse trabalho é fruto de uma ciência multidisciplinar com a colaboração entre diversos grupos de pesquisa básica e clínica”, diz Flávia. Pensando nisso, atualmente, o grupo analisa se astrócitos derivados de modelos animais da doença de Alzheimer ou de pacientes com epilepsia mantêm seu potencial de induzir a formação de sinapses. Em paralelo, o grupo pretende fazer teste semelhante com astrócitos de pessoas com esquizofrenia.
“A habilidade cognitiva humana está associada ao complexo das conexões sinápticas”, diz Flávia. “Da mesma forma, disfunções no processamento de informações no cérebro podem levar a sérias desordens neurológicas. A compreensão do mecanismo pelo qual as sinapses são formadas e reguladas é um passo-chave para o conhecimento do cérebro e para o desenvolvimento de terapias de reparos do sistema nervoso.”
Artigo científico
DINIZ, L.P. et al. Astrocyte-induced synaptogenesis is mediated by transforming growth factor beta signaling through modulation of D-serine levels in cerebral cortex neurons. Journal of Biological Chemistry. v. 287(49), p. 41.432-45. 30 nov. 2012.