Os carros movidos a bateria já são uma realidade nas ruas de cidades europeias, americanas, chinesas e japonesas, mas no Brasil pouco se vê esses veículos. Entre 2011 e 2016, cerca de 4 mil automóveis elétricos ou híbridos foram licenciados – no ano passado, apenas 1.091 unidades, um número insignificante diante do 1,68 milhão de carros vendidos ao todo no Brasil. Como as montadoras instaladas no país não fabricam veículos de passeio com essa tecnologia, todas as vendas são de importados, bem mais caros do que os automóveis a combustão. O Toyota Prius, um dos mais baratos comercializados no país, custa a partir de R$ 120 mil. Além dele, cerca de uma dezena de modelos estão à disposição do consumidor brasileiro.
“Redução de impostos, incentivos para a compra, liberação do rodízio e do uso da faixa exclusiva de ônibus e acesso a áreas restritas da cidade são medidas que podem estimular tanto a utilização massiva desses veículos pela população como influenciar sua produção no Brasil”, recomenda Ricardo Guggisberg, presidente-executivo da ABVE. “Os elétricos e os híbridos são mais caros do que um veículo comum por causa da tecnologia empregada, mas a alta carga tributária contribui para que os valores finais sejam maiores.”
Algumas das reivindicações da ABVE já foram atendidas. Em 2015, o governo reduziu o imposto de importação para carros elétricos e híbridos de 35% para uma alíquota máxima de 7%. Vários estados, entre eles Ceará, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e São Paulo, isentaram ou reduziram a alíquota de IPVA, o Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores, desses veículos, e a prefeitura de São Paulo dispensa do rodízio os automóveis movidos a eletricidade.
Especialistas, no entanto, questionam a efetividade de conferir incentivos para uma indústria que sempre teve ajuda do governo. Um estudo do Instituto Econômico de Montreal (MEI), do Canadá, mostrou que o estímulo aos veículos elétricos nem sempre é eficiente. Lá, o governo da província de Ontário oferece ao consumidor até 14 mil dólares canadenses (R$ 34,9 mil) para a compra de um híbrido ou elétrico, enquanto em Quebec a quantia chega a 8 mil dólares canadenses (R$ 20 mil).
O pesquisador Germain Belzile, do MEI, e o consultor independente Mark Milke fizeram as contas e concluíram que o incentivo em Ontário custa 523 dólares canadenses (R$ 1.320) por tonelada de CO2 não emitido – equivalente ao total de gás de efeito estufa (GEE) –, enquanto em Quebec esse valor cai para 288 dólares canadenses (R$ 730). Para chegar a esses valores, eles consideraram que os modelos elétricos emitem 30 toneladas de CO2 a menos do que os veículos a combustível fóssil, em uma década.
Como o preço no mercado de crédito de carbono de cada tonelada de GEE eliminada é de 18 dólares canadenses, ao subsidiar a compra do carro elétrico, os governos de Ontário e de Quebec gastam, respectivamente, até 29 vezes e 16 vezes mais. No mercado de carbono, empresas e países negociam certificados que equivalem a cada tonelada de GEE não emitida ou retirada da atmosfera.
Malha de recarga
Outro desafio a ser vencido pela mobilidade elétrica é a criação de uma infraestrutura para recarga das baterias, com a implantação de eletropostos em centros urbanos e estradas. “Em um país com dimensões continentais como o Brasil, esse é um grande desafio. Já pensou se uma pessoa quiser fazer uma viagem de São Paulo a Belém com um carro elétrico? Ele vai precisar encontrar muitos eletropostos ao longo do caminho”, pontua o engenheiro mecânico Marcelo Alves, do CEA/USP.
Não existem dados oficiais, mas estima-se que a rede nacional de recarga não chegue hoje a 100 unidades. Para solucionar esse problema, uma proposta em tramitação no Senado obriga a instalação de eletropostos em estacionamentos públicos e garagens de prédios. A medida, entretanto, é questionada até pelos defensores dos veículos elétricos. “Será que é certo exigirmos a instalação de eletropostos sem termos ainda uma frota consolidada? O importante é fazer com que o aumento do número de elétricos seja natural, e que essa evolução seja acompanhada de eletropostos onde for necessário”, defende o engenheiro eletricista Ricardo Takahira, da ABVE.
A regulamentação da venda da energia para recarregar as baterias é outro assunto em discussão. A legislação proíbe a cobrança de reabastecimento em eletropostos públicos, pois só concessionárias registradas na Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) podem comercializar energia. “A Aneel abriu este ano uma audiência pública para discutir o tema, já que o marco regulatório impõe restrições à execução de recarga pública de veículos elétricos por órgãos e empresas que não sejam os distribuidores de energia”, destaca o engenheiro eletricista Danilo do Nascimento Leite, coordenador do Programa de Mobilidade Elétrica – Emotive, da CPFL Energia. Um dos modelos em debate é aquele em que os quilowatts consumidos na recarga são cobrados na conta de luz do dono do carro. “O motorista passaria um cartão para liberar o abastecimento e o valor iria para sua conta de energia”, sugere Takahira.
Velocidade de abastecimento
A indústria também trabalha para acelerar o tempo de recarga. Enquanto os veículos a gasolina e álcool são abastecidos em minutos, os elétricos precisam de pelo menos uma hora. Existem três sistemas de alimentação. Os de recarga rápida recarregam 80% da bateria em 30 minutos e precisam de mais 30 para completar os 20% restantes; os semirrápidos levam até três horas; e os normais demoram de 6 a 22 horas para deixar a bateria carregada.
“A lógica do sistema é que eletropostos de recarga rápida e semirrápida sejam instalados em locais públicos, como shopping centers, para que o usuário reabasteça o carro enquanto faz compras. Já os pontos de recarga normal devem ficar em residências, para recarregar as baterias de madrugada”, explica o engenheiro eletricista Vitor Torquato Arioli, pesquisador da Área de Sistemas de Energia da Fundação Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações (CPqD).
Em parceria com a CPFL Energia, o CPqD mantém uma unidade de pesquisa, o Laboratório de Mobilidade Elétrica, que estuda eletropostos comerciais usados ao redor do planeta. A exemplo do que ocorre com os plugues de tomadas elétricas, cujo padrão varia conforme o país, os pontos de recarga têm uma diversidade de conectores (peça na extremidade do cabo que se encaixa no carro para fazer a recarga). “Existem vários fabricantes de eletropostos no mundo, como a chinesa BYD e a alemã Siemens, mas é importante que o Brasil desenvolva eletropostos para não haver dependência internacional desse equipamento”, opina Arioli. Há uma discussão no mundo sobre padronizar os conectores para simplificar o processo de recarga das baterias dos diversos modelos de carros existentes, de modo a evitar a necessidade de duplicar a infraestrutura necessária.
O Laboratório de Mobilidade Elétrica também pesquisa o impacto dos veículos a bateria sobre a rede elétrica. Há dois anos, a CPFL Energia fez um estudo para verificar os reflexos do uso em massa de veículos elétricos no consumo de energia no país. “Estimamos que a expansão dos modelos elétricos teria impacto limitado na demanda de energia”, afirma Danilo Leite. “Nossas projeções iniciais apontam que o uso dessa tecnologia ampliaria o consumo de energia entre 0,6% e 1,7% no Sistema Interligado Nacional (SIN) em 2030, quando as previsões indicam que a frota de elétricos no país poderá alcançar entre 5 milhões e 13 milhões de unidades.”
Segundo especialistas, além de causar baixo impacto na rede elétrica, os carros a bateria poderiam ser usados para equalizar o sistema elétrico nacional. “É o conceito de smart grid. Embora o veículo elétrico não seja um produtor de energia, ele tem o potencial de funcionar como um pulmão em horários de pico, como no fim da tarde. Conectado a um eletroposto, poderia devolver à rede a energia não utilizada, suprindo o sistema”, sugere o engenheiro eletricista Celso Novais, coordenador do Programa Veículo Elétrico da Itaipu Binacional, um dos principais centros de estudo sobre mobilidade elétrica no país.
Criado em 2006, o programa pesquisa soluções na área de mobilidade elétrica. Mais de 80 protótipos elétricos já foram montados no Centro de Pesquisa, Desenvolvimento e Montagem de Veículos Elétricos (CPDM-VE) da usina. “No início, obtivemos know-how por meio da parceria com a suíça Kraftwerke Oberhasli AG, controladora de hidrelétricas na região dos Alpes, para realizar a transformação de veículos a combustão em elétricos. Na época, boa parte dos componentes era de importados. Hoje, cerca de 60% são produzidos no Brasil”, conta Novais.
Em 2014, a Itaipu iniciou a montagem do compacto elétrico Renault Twizy, fruto de um acordo com a montadora francesa. O carro chega parcialmente desmontado e os técnicos fazem a integração do sistema de tração, baterias e motor elétrico, somando cerca de 90 itens. O objetivo da iniciativa é aprofundar os estudos de nacionalização dos componentes e preparar fornecedores de autopeças para o mercado. “Não temos a intenção de nos tornarmos uma fábrica de veículos elétricos – este é o papel das montadoras de automóveis –, mas queremos dominar essa tecnologia”, relata Novais. “Quando houver demanda, a indústria local poderá produzir os principais sistemas, como motores elétricos e inversores.” O programa de Itaipu tem como parceiros fabricantes de componentes automotivos, como a Weg, que produz motores elétricos, e a Moura, indústria de baterias, além de institutos de pesquisa e concessionárias de energia.
Modelo nacional
Nos últimos anos, houve no país várias iniciativas visando à construção de um veículo elétrico nacional em larga escala, mas nenhuma vingou. Uma pequena empresa de São José dos Campos (SP), a Electric Dreams, persegue essa meta. Ela investe há seis anos no projeto de um superesportivo capaz de acelerar de 0 a 100 km/h em apenas 2,7 segundos. Com quatro motores, um para cada roda, o modelo foi desenvolvido com base em simulações computacionais e ensaios em túneis de vento usados pela indústria aeronáutica.
“Desenvolvemos o carro do zero. Criamos todos os sistemas, algoritmos de controle e softwares embarcados, e já temos um modelo em escala reduzida. Nossa intenção é que nosso superesportivo sirva de laboratório para gerar carros elétricos mais simples, ônibus e caminhões”, declara o engenheiro aeronáutico Fábio Zilse Guillaumon, ex-funcionário da Embraer que deixou a fabricante de aviões para montar a Electric Dreams.
O projeto tem recursos do programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe) da FAPESP e do Fundo Tecnológico (Funtec) do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). O CPqD colaborou no desenvolvimento da bateria. “O sistema de armazenamento de energia é o coração e um dos grandes desafios técnicos do carro”, avalia Guillaumon. “A solução proposta foi uma bateria com dois tipos de células de lítio, que fornece energia para os motores e proporciona autonomia de 400 km, similar à dos carros a combustão”, conta. A previsão é de que um protótipo seja finalizado no próximo ano.
Apesar dos esforços de pesquisa, ainda deve levar algum tempo para o Brasil se inserir na cadeia produtiva mundial dos veículos elétricos, seja fabricando carros localmente, seja fornecendo componentes para as montadoras globais. “O Brasil tem uma matriz energética limpa e um combustível renovável líquido vantajoso, o etanol”, afirma Francisco Nigro, da Poli-USP. “Não temos necessidade de incentivar a cadeia do elétrico com o mesmo ímpeto de Europa, China e Estados Unidos.”
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Projeto
Desenvolvimento do assoalho de um veículo elétrico puro em função de suas características aerodinâmicas, térmicas e mecânicas (nº 12/51376-8); Modalidade Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisador Responsável Fábio Zilse Guillaumon (Electric Dreams); Investimento R$ 152.690,00.