Brasileiros já apostam R$ 20 bilhões por mês em plataformas digitais e cresce a procura por tratamento para dependentes
João Montanaro
Não faz muito tempo, a médica Gabrielle Foppa atendeu um caso complicado durante a residência em psiquiatria forense na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em Porto Alegre. Um homem de apenas 28 anos havia tomado uma overdose de medicamentos a fim de tirar a própria vida. Ele era usuário de álcool e cocaína e, desde cedo, apresentava traços de personalidade antissocial, marcado pelo descaso com as consequências de seus atos e o direito dos outros. Ao investigar a história, Foppa constatou que a tentativa de suicídio havia sido uma atitude impulsiva, disparada pela impossibilidade de pagar uma dívida contraída em apostas esportivas on-line. Ele havia começado a jogar incentivado pela mãe, que ouvira em um anúncio ser uma forma fácil de ganhar dinheiro. O rapaz passou a apostar repetidamente e em pouco tempo acumulou um débito superior a R$ 10 mil. “Nesse caso, o transtorno do jogo foi a expressão de um quadro clínico mais complexo, no qual havia necessidade de muito estímulo externo e prazer imediato”, conta a agora psiquiatra, que descreveu o caso em fevereiro no Brazilian Journal of Psychiatry.
O que se passou com o paciente de Foppa não é uma situação isolada. Pensar em tirar a própria vida – e, por vezes, tentar – é de duas a três vezes mais comum entre as pessoas que desenvolvem uma relação problemática com o jogo do que entre o restante da população. Um em cada três apostadores pensa ao menos uma vez em se matar e um em cada oito realiza uma tentativa, segundo um artigo de pesquisadores da Noruega e do Reino Unido, que revisaram dados de 4,6 milhões de pessoas, publicado em janeiro na revista Psychological Bulletin.
Especialistas em saúde mental temem que o problema se torne bem mais frequente em consequência do grande número de plataformas de jogos on-line que passaram a atuar no Brasil depois de 2018, oferecendo desde apostas esportivas (sports betting) a jogos de caça-níquel, como o jogo do tigrinho (Fortune Tiger). Em dezembro daquele ano, o presidente Michel Temer, nas últimas semanas de seu mandato, sancionou a Lei nº 13.756, previamente aprovada pelo Congresso Nacional. A norma definia, entre outras coisas, a destinação do dinheiro arrecadado nas loterias e permitiu a exploração comercial das chamadas apostas de quota fixa, a ser exercida por empresas autorizadas pelo Ministério da Fazenda. A nova modalidade de jogo é associada a eventos reais ou virtuais (fictícios) de diferentes modalidades esportivas (futebol, vôlei, entre outros). É chamada de quota fixa porque, no momento da aposta, o jogador sabe por quanto será multiplicado o dinheiro que arriscou caso acerte o resultado do evento, que pode ser o desfecho de uma partida ou outro ato do jogo, como quem fará a primeira falta. Um exemplo: quem aposta R$ 2 em um evento com fator multiplicador 10 pode acabar com um saldo de R$ 20, caso acerte o resultado. Ou perder o que apostou e sair sem nada, se errar.
Da sanção dessa lei para cá, mais de 2 mil casas virtuais de apostas – as chamadas bets – passaram a atuar no país, segundo reportagem publicada em 13 de setembro no jornal O Estado de S. Paulo. A maior parte delas está sediada em outros países, alguns deles paraísos fiscais, e operam no Brasil por meio de um sócio nacional ou empresário contratado. “As apostas existem na internet desde os anos 1990, mas a partir do início da década de 2010, com a disseminação dos smartphones no Brasil, ficou mais fácil para os usuários daqui acessar os sites e aplicativos. Como grande parte dessas empresas está sediada no exterior, elas não cometiam contravenção penal no país por explorar os jogos de azar, prática proibida no Brasil desde a década de 1940”, explica Guilherme Klafke, professor de direito digital da Fundação Getulio Vargas (FGV), em São Paulo. “Ao mesmo tempo, é muito difícil fiscalizar e monitorar esses sites e aplicativos que, em geral, estão sediados em locais onde a legislação é flexível e sem muitas regras.”
Entrevista: Guilherme Klafke
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Um relatório divulgado em agosto pelo banco Itaú estimou, a partir dos registros das transações financeiras do Brasil com outros países, quanto os brasileiros teriam movimentado no mercado de apostas on-line de julho de 2023 a junho de 2024. O valor é exorbitante: R$ 68,2 bilhões, ou 0,6% do PIB. Desse total, R$ 24,2 bilhões teriam sido taxas pagas às casas de aposta. Como prêmio, os apostadores teriam recebido bem menos, R$ 200 milhões. Em uma nota técnica de 23 de setembro, o Banco Central estimou que os brasileiros tenham apostado em jogos on-line cerca de R$ 20 bilhões por mês em 2024 – só em agosto 5 milhões de beneficiários do bolsa família teriam jogado R$ 3 bilhões. Do total apostado, 15% ficariam com as empresas. O resto teria retornado como prêmio.
Nos próximos meses, porém, a expectativa é que o número de bets caia. Em 16 de setembro, o Ministério da Fazenda publicou uma portaria definindo que, de outubro a dezembro deste ano, só poderão continuar atuando no Brasil as 108 empresas de apostas que, até aquela data, haviam solicitado autorização para explorar a modalidade lotérica de jogos virtuais. As demais, em princípio, serão notificadas a partir de 11 de outubro e bloqueadas. Depois da criação dessa modalidade de apostas, o país levou quase cinco anos para definir as regras para a atuação dessas empresas. “O Brasil demorou muito a adotar esse procedimento e o mercado passou a atuar em uma terra de ninguém”, observa a advogada Helena Lobo da Costa, professora de direito penal da Universidade de São Paulo (USP). Segundo Diogo Coutinho, professor de Direito Econômico da USP, essa demora contribuiu para agravar uma série de problemas, como o endividamento das famílias, sobretudo as mais pobres, e a lavagem de dinheiro. “É preciso uma resposta regulatória urgente e rigorosa, que dê conta dos impactos da explosão surpreendente desse tipo de aposta o Brasil”, comenta.
Sancionada em 29 de dezembro de 2023 pelo presidente Lula, após tramitação no Congresso, a Lei nº 14.790 estabelece que as bets têm de ter sede e administração no país e define como ocorrerá a tributação. Descontado o valor dos prêmios, as empresas ficarão com 88% do montante obtido com as apostas e o governo federal com 12%, que deverão ser aplicados em educação, segurança, vigilância de fronteiras e saúde. Da fatia do governo, 1% vai para “o Ministério da Saúde, para medidas de prevenção, controle e mitigação de danos sociais advindos da prática de jogos, nas áreas da saúde”. A lei de 2023 ainda abriu a porta para a legalização dos cassinos on-line oferecidos pelas empresas de apostas digitais, com jogos do tipo caça-níquel, entre outras modalidades.
Alexandre Affonso/Revista Pesquisa FAPESP
A regularização das empresas, no entanto, nem sempre garante a redução do número de jogadores, nem do montante apostado. Um estudo liderado pelo economista Scott Baker, da Universidade Northwestern, nos Estados Unidos, avaliou o comportamento financeiro de 230 mil famílias norte-americanas entre 2018 e 2023, período em que 25 estados e o distrito federal legalizaram as apostas esportivas on-line por lá. Disponibilizado em 9 de julho na plataforma de preprints SSRN, e ainda não publicado em um periódico científico, o trabalho indica que tanto o número de jogadores quanto os valores por eles apostados cresceram após a regularização dessa forma de jogo.
A legalização da modalidade, escreveram os autores, “levou a uma explosão nas apostas, cujo valor total subiu de cerca de US$ 1,1 bilhão por mês em 2019 para US$ 14 bilhões mensais em janeiro de 2024”. Três anos após a liberação do jogo, cada família estava apostando, em média, o correspondente a oito vezes o valor da primeira aposta. A proporção da renda gasta com apostas pelas famílias menos abastadas era 32% superior à das famílias mais ricas. As famílias com orçamento mais restrito passaram a gastar mais no cartão de crédito e a usar o limite de crédito da conta corrente.
Talvez seja óbvio, mas nem todo mundo que aposta tem problemas com jogo. Em um trabalho de revisão recente, a equipe da psicóloga e epidemiologista Louisa Degenhardt, da Universidade de Nova Gales do Sul, na Austrália, extraiu dados de 366 artigos publicados nos últimos 15 anos, com informações sobre 3,4 milhões de pessoas de 68 países. Os pesquisadores concluíram que 46% dos adultos – o correspondente a 2,3 bilhões de pessoas – haviam jogado no último ano (on-line ou presencialmente). A proporção de adolescentes que tinham praticado jogos de azar era mais baixa, mas não menos preocupante: 18%, ou quase 160 milhões de jovens, haviam feito jogos com aposta, algo proibido em países como o Brasil.
Dos adultos, 8,7% estavam envolvidos com formas arriscadas de jogar e ocasionalmente experimentavam alguma consequência pessoal, social ou de saúde relacionada ao hábito, e 1,4% era jogador considerado problemático, que apostava de maneira que lhe criava transtornos em vários setores da vida (financeiros, psicológicos, sociais, de saúde). Quando esse padrão é persistente e repetitivo, mesmo trazendo prejuízos e sofrimentos, recebe o nome de transtorno do jogo, uma enfermidade registrada tanto no Manual de diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM) quanto na Classificação estatística internacional de doenças e problemas relacionados com a saúde (CID).
As modalidades de jogo mais frequentemente associadas a comportamento problemático entre os adultos eram os cassinos on-line e os jogos de caça-níquel, de acordo com o estudo, publicado em agosto na revista The Lancet Public Health. Ao separar os dados por períodos, os pesquisadores observaram um aumento na proporção de jogadores a partir de 2016, quando vários países começaram a legalizar os jogos on-line. De acordo com as estimativas, 7,8% dos adultos e 10,3% dos adolescentes do mundo já participaram de jogos de azar em plataformas on-line, cuja receita global no ano de 2030 deve chegar a US$ 205 bilhões. Quando se olha para a fração que jogou on-line no último ano, porém, esses números sobem, respectivamente, para 13,3% entre os adultos e assustadores 48,7% entre os adolescentes. Em ambos os grupos, por volta de um em cada 10 jogadores passa a ter comportamento problemático.
“A busca por atendimento na área de saúde mental e a prevalência de transtornos associados ao jogo aumentam à medida que essas formas são legalizadas e as possibilidades de aposta crescem”, afirma o psiquiatra Daniel Spritzer, do Hospital Psiquiátrico São Pedro, em Porto Alegre. Ele integra um grupo de trabalho da Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre o uso problemático de jogos digitais e coordena no país o Grupo de Estudos sobre Adições Tecnológicas (Geat).
João Montanaro
No Brasil, as empresas de apostas on-line são hoje onipresentes. Seus nomes estão no uniforme de quase todas as equipes dos campeonatos mais importantes de futebol – se não é na camisa do seu time, é na do seu amigo. As bets fazem anúncios publicitários na TV aberta e a cabo, em programas de rádio, canais de mídias sociais e sites de notícias. Usam como garotos-propaganda apresentadores esportivos, campeões olímpicos e influenciadores digitais para vender a ideia de diversão e possibilidade de ganho financeiro. Algumas vezes, alertam para a necessidade de se apostar com responsabilidade – algo que talvez não esteja ao alcance de quem tem uma relação problemática com o jogo.
A realidade é que não se sabe com muita segurança quem faz apostas e como as faz no país, algo fundamental para se conhecer o tamanho do problema e planejar como lidar com ele. Espera-se que essa falta de informação seja sanada em breve com a publicação do 3º Levantamento nacional de álcool e drogas, financiado pela Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas e Gestão de Ativos (Senad), do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP). Nele, 16,6 mil brasileiros com mais de 14 anos, de todas as regiões do país, foram entrevistados pessoalmente e responderam a diferentes questionários da área da saúde mental. Previsto para ser divulgado nos próximos meses, ele deve trazer informações sobre o consumo de álcool e outras drogas e a prática de jogos de azar, inclusive os on-line.
Enquanto isso, dizem os especialistas em dependência de jogos, levantamentos feitos por instituições privadas trazem algumas pistas. Em um relatório recente, a equipe do Instituto Locomotiva de Pesquisa, especializado em análises de comportamento, consumo e tendências, ouviu por telefone 2.060 adultos em 142 cidades brasileiras na primeira semana de agosto. Com base nas informações coletadas, projetaram-se os resultados para a população adulta. Conclusão: 52 milhões de brasileiros já teriam feito apostas esportivas on-line. Quase metade deles (25 milhões de pessoas) seriam novos jogadores, que teriam começado a fazer apostas em 2024. Quase metade (45%) dos jogadores entrevistados afirmaram já ter tido prejuízos financeiros com as apostas e 37% contaram ter usado para jogar on-line o dinheiro que seria destinado a outras coisas importantes.
“Na falta de dados coletados seguindo metodologia científica, esses levantamentos nos dão algumas informações úteis sobre a dimensão do problema”, conta o psiquiatra Hermano Tavares, da Universidade de São Paulo (USP). Ele foi o criador em 1997 de um dos primeiros serviços especializados em tratamento de problemas associados ao jogo – o Ambulatório do Jogo Patológico (Amjo), instalado no Instituto de Psiquiatria (IPq) da universidade – e o autor principal do primeiro estudo a identificar, em uma amostra representativa da população brasileira, a proporção de pessoas que jogavam e que tinham problemas com apostas.
Entrevista: Hermano Tavares
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Nele, 3.007 pessoas com mais de 14 anos, moradoras de 143 cidades, foram entrevistadas presencialmente e forneceram informações sobre os hábitos de jogar. Publicado em 2010 na revista Psychiatry Research, mais de uma década antes da febre das bets, ele mostra um quadro que pode ser bem diferente do atual.
À época, 88,3% dos brasileiros não jogavam. Já 9,4% eram jogadores ocasionais, 1,3% tinha problemas com jogos e 1% se enquadrava na categoria dos jogadores patológicos – aqueles que apostavam repetidamente apesar de já terem sofrido prejuízos financeiros, emocionais ou nas relações familiares e sociais. Inicialmente, os manuais de diagnóstico médico enquadravam o jogo patológico na categoria dos transtornos de controle do impulso, ao lado da piromania (impulso de atear fogo), da cleptomania (de furtar sem razão aparente), de transtorno explosivo intermitente, que causa surtos de agressividade. Com o tempo, estudos realizados em centros de diversos países, entre eles os da USP, mostraram que, tanto no que diz respeito à ativação cerebral quanto ao curso da doença, a relação problemática com o jogo se assemelhava mais às dependências químicas do que aos transtornos ligados ao impulso. Em 2013, essa relação passou a ser qualificada como uma dependência induzida pelo comportamento – e não por uma substância química, como no caso do álcool e de outras drogas – e recebeu o nome de transtorno do jogo, ou ludopatia.
Os levantamentos disponíveis e a procura por tratamento no Amjo nos últimos meses sugerem que os jogos on-line já estão afetando a saúde mental de uma proporção maior de brasileiros. “Se um jogador procurasse o Amjo em novembro passado, em janeiro já estaria iniciando o tratamento. Se ligar hoje, só conseguirá ser atendido daqui a dois anos”, exemplifica Tavares. Hoje parte de um serviço maior, o Programa Ambulatorial Integrado dos Transtornos do Impulso (Pro-Amiti) do IPq, o Amjo é possivelmente o maior ambulatório especializado em lidar com transtorno do jogo no país, com capacidade de receber 80 novos casos por ano, além dos que estão em tratamento.
Alexandre Affonso/Revista Pesquisa FAPESP
Quem consegue ser atendido ali recebe acompanhamento psiquiátrico, faz sessões de psicoterapia individual e em grupo e participa de turmas de meditação, de atividade física, de pessoas que sofreram recaídas, além de receber auxílio para a organização das finanças pessoais. “Em geral, leva uns dois anos para conseguir estabilizar o quadro, e a pessoa passa, em média, uns quatro anos conosco”, conta Tavares.
O psiquiatra começou a se interessar por dependência do jogo em meados dos anos 1990, ao ouvir de uma paciente nas sessões de psicoterapia sobre a sua necessidade de jogar bingo. “Quando ela discutia com o marido, ia ao bingo. Se o filho era grosseiro com ela, ia ao bingo”, lembra. Ao perguntar mais sobre o jogo, Tavares constatou que não era mais aquele bingo tradicional realizado por igrejas para levantar fundos. Uma lei de 1993 havia liberado a exploração comercial dos bingos por entidades esportivas e surgiram algumas grandes casas de jogo pelo país. Até havia cartelas a serem preenchidas à mão, mas logo foram substituídas pelos videobingos, controlados por computadores: o jogador apertava um botão e apareciam várias cartelas virtuais, que eram preenchidas automaticamente – e em instantes – por números que desciam na tela. Em seguida, era só apertar o botão de novo.
Esse padrão de funcionamento, idêntico ao das máquinas caça-níquel, tem alto poder viciante – os especialistas preferem dizer aditivo. Mais importante, essa forma de jogar desvirtua a finalidade de um jogo. Jogar costuma ser um ato prazeroso que acompanha o ser humano ao longo da vida. É, segundo especialistas, um brincar respeitando regras, fundamental para o desenvolvimento e capaz de funcionar como um treino para certas situações. O jogo estimula o desenvolvimento de habilidades e estratégias e, em princípio, jogando, aprende-se a lidar com vitórias e derrotas. O problema é quando se ultrapassa a linha que aparta o lúdico do patológico.
No caso de quem desenvolve o transtorno do jogo, o fator que leva ao descontrole é a aposta. Empenhar um valor na expectativa de receber um retorno maior ativa a rede cerebral associada à sensação de gratificação e recompensa. É um circuito que envolve quase uma dúzia de estruturas superficiais e profundas, cujo funcionamento é fundamental para a sobrevivência. Essa é a rede acionada, por exemplo, por atos prazerosos, como se alimentar ou fazer sexo. Nas pessoas com transtorno do jogo, porém, ela parece não funcionar de maneira adequada. Segundo um artigo de revisão publicado em 2019 na Nature Reviews – Disease Primers, alguns de seus componentes se tornariam sensíveis demais, levando as pessoas a agirem sem pensar, sob estresse, ou a ficarem desinibidas e a gastarem mais.
“Um jogo é tão mais aliciante e gerador de dependência quanto maior for sua capacidade de promover excitação sustentada dessa rede”, explica o psiquiatra da USP. Isso, em geral, ocorre de duas maneiras: durante ações que mantêm uma tensão prolongada antes do desfecho, como na narração rápida e intensa de um páreo de cavalos; ou quando o tempo entre a ação e a resposta é extremamente curto, a exemplo do que ocorre ao puxar a alavanca de uma máquina caça-níquel.
“Com o tempo e a repetição do estímulo, o organismo se adapta e passa a necessitar de estimulação cada vez mais intensa ou frequente para produzir o mesmo efeito”, explica a psicóloga Maria Paula Tavares de Oliveira, integrante do Amjo. Por anos, ela coordenou o primeiro ambulatório brasileiro especializado em tratar jogadores, criado em 1993 pelo psiquiatra Dartiu Xavier da Silveira no Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes (Proad) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Uma consequência da habituação do organismo é que o apostador passa a ter de jogar mais vezes ou empenhar valores mais elevados.
Assim como um dependente químico que fica sem beber ou se drogar, uma pessoa com transtorno do jogo sentirá fissura com frequência se parar de apostar. Definida como uma necessidade incontrolável de repetir os atos prazerosos, potencializada pelo impedimento de repeti-los, a fissura – ou craving – cresce até se tornar irrefreável e é a principal causa das recaídas.
Alexandre Affonso/Revista Pesquisa FAPESP
Uma contribuição importante do grupo da USP foi compreender como é a fissura experimentada pelos jogadores. No estágio de pós-doutorado que realizou na Universidade de Calgary, no Canadá, no início dos anos 2000, Tavares comparou o padrão e o grau de craving de 49 apostadores crônicos que estavam havia poucas semanas sem jogar com o de 101 dependentes de álcool em situação semelhante. As conclusões a que chegou ajudaram a reorientar o tratamento.
Nas primeiras semanas de abstinência, a fissura experimentada pelos jogadores é bem mais intensa do que a vivenciada pelos dependentes de álcool. Se a pessoa, no entanto, consegue suportá-la e se manter longe das apostas por cerca de 90 dias, sua intensidade diminui e aumenta a probabilidade de o tratamento ser bem-sucedido.
O trabalho, publicado em 2005 na Alcohol: Clinical and Experimental Research, e outro, realizado na volta ao Brasil e publicado em 2007 na Addictive Behaviors, permitiram ainda confirmar que apostadores e bebedores sofrem o craving por razões diferentes. A fissura de quem joga começa a crescer durante a abstinência porque a pessoa deixa de sentir emoções positivas proporcionadas pelo jogo (sentir-se ativo, entusiasmado, alegre, participante). Já a fissura do dependente de álcool aumenta ao parar de beber porque ele passa a experimentar sensações negativas, que gostaria de evitar, como ansiedade, medo, tristeza, raiva ou angústia.
Mais recentemente, em um trabalho publicado em 2020 no Journal of Gambling Studies, a equipe de Tavares obteve uma pista de que talvez não seja apenas o sistema de recompensa que esteja alterado em quem tem transtorno do jogo. O problema pode estar também em um sistema complementar e opositor: o de não recompensa, que é sensível a resultados negativos e leva o indivíduo a parar de executar determinada tarefa, quando ela está dando errado.
No Amjo, a psicóloga Raquel Berg submeteu dois grupos de pessoas – jogadores contumazes e não jogadores – a dois tipos de teste: um com solução e outro sem. No primeiro, sentados diante de um computador, os participantes tinham de descobrir qual era o número de dois dígitos – formado por uma combinação dos numerais 1, 2 ou 3 – que interrompia um ruído desagradável. Cada vez que erravam, uma tela vermelha piscava sinalizando a incorreção. Quem não era jogador, facilmente adotava a estratégia de testar as combinações possíveis (1 e 1, 1 e 2, 1 e 3, 2 e 1, e assim por diante). Já os jogadores pressionavam sequências aleatórias. No segundo teste, não havia sequência correta e era impossível cessar o ruído. Quem não estava habituado a jogar, logo desistia. Já os apostadores crônicos insistiam até o final do teste.
“Esse resultado nos fez pensar que, além de serem mais sensíveis aos ganhos, os jogadores podem ser insensíveis à sinalização de erro”, conta Tavares. A sinalização de um resultado desagradável, como uma falha, é registrada por uma estrutura cerebral profunda chamada habênula, usada para evitar a repetição de experiências frustrantes. “É o equilíbrio entre o funcionamento do sistema de recompensa e o de não recompensa que nos permite tomar decisões mais ajustadas. No caso dos jogadores, é como se eles tivessem uma tendência exagerada de computar os ganhos e de menosprezar as perdas”, explica.
João Montanaro
A cada ciclo de liberação dos jogos, afirmam os especialistas na área da saúde, há um aumento súbito da proporção de pessoas que desenvolvem transtorno do jogo e buscam ajuda. Esse número volta a cair depois de um tempo, mas sempre para um patamar superior ao inicial. “É assim aqui e no restante do mundo”, afirma Tavares, da USP.
Agora, no entanto, há diferenças importantes. Uma delas é a facilidade de acesso. Até alguns anos atrás era preciso se deslocar até um lugar específico – uma banca de jogo do bicho, uma casa de bingo – para fazer uma aposta. Os jogos de quota fixa liberados em 2018 funcionam por meio de sites ou aplicativos instalados no celular, ao alcance de qualquer um.
Outra diferença é a de realizar apostas múltiplas e jogar continuamente. “Atendo pacientes que participam de três jogos simultaneamente”, conta a psicóloga Elizabeth Carneiro, uma das criadoras do Ambulatório de Transtornos do Impulso e Dependências Comportamentais na Santa Casa do Rio de Janeiro, que hoje dirige um centro particular de tratamento de dependências. “Mesmo nas apostas esportivas, a gratificação pode ser praticamente imediata se ela for feita durante a partida. A estimulação rápida em alta intensidade está disponível 24 horas por dia.”
“O problema agora está na palma da mão”, alerta um frequentador do grupo de Jogadores Anônimos (J.A.) do bairro do Jabaquara, na zona sul de São Paulo, que pediu para não ter o nome divulgado. João, vamos chamá-lo assim, começou a apostar em cavalos, durante uma visita ao Jockey Club de São Paulo em 2013, antes de se aventurar por outras modalidades e se perceber aprisionado pela dependência. Em uma década, ele perdeu dois carros, uma loja e o apartamento da família para o jogo. Abstinente há 3,5 anos, ele retornou às reuniões do J.A. em 2020, depois de passar pelo Amjo, e relata ter notado um aumento na procura pelo grupo de apoio de lá para cá.
Além da preocupação com o potencial aumento de adultos com transtorno do jogo, os especialistas em saúde mental estão apreensivos com o que pode ocorrer com as crianças e os adolescentes. Bem antes da febre das bets, Spritzer havia observado naquele levantamento nacional dos anos 2000 que a frequência de adolescentes que participavam de jogos de azar no Brasil era de 6,9%, inferior à de países nos quais o jogo era liberado. No entanto, a proporção de jovens que desenvolviam relação problemática com o jogo era a mesma, 1,6%, segundo artigo publicado no Journal of Gambling Studies em 2011. Trabalhando com dados do mesmo levantamento, Carneiro, do Rio, verificou que entre pessoas mais jovens a progressão do problema era muito mais rápida: menos de dois anos após começarem a apostar, já apresentavam uma relação patológica com o jogo. Esse tempo era, em média, de 12 anos entre as pessoas com mais de 35 anos, como relatou em 2014 na Psychiatry Research.
“Com o cérebro ainda em maturação, os adolescentes são mais vulneráveis à propaganda. Eles têm mais dificuldade de inibir os impulsos e tomar decisões pensando nas consequências de longo prazo”, conta Spritzer. “O que estamos vendo agora é como se fosse uma fase de experimentação da sociedade com essas novas formas de jogos de azar”, diz Carneiro. “Vai levar alguns anos para descobrirmos o tamanho do problema e, certamente, não será pequeno.”
O vai e vem da legalização dos jogos
Não é a primeira vez que os jogos de azar são legalizados no Brasil. O país tem uma longa história de liberações e proibições, realizadas segundo os interesses do Estado e as pressões da sociedade, que remonta ao período colonial (ver linha do tempo). Nos últimos 100 anos, as únicas formas de jogo de azar que não sofreram restrições talvez sejam as loterias e o turfe (corridas de cavalo). O pôquer é considerado um jogo de habilidade, e não de azar, embora não esteja livre de certo grau de aleatoriedade.
“Na Colônia, as apostas em dinheiro costumavam acontecer nas chamadas casas de tavolagem, estabelecimentos que ofereciam diversas modalidades de jogos, como baralho, víspora [um tipo de bingo] e bilhar”, lembra o sociólogo Marcelo Pereira de Mello, da Universidade Federal Fluminense (UFF), autor do livro Criminalização dos jogos de azar: A história social dos jogos de azar no Rio de Janeiro (1808-1946), lançado em 2017 pela editora Juruá. Na década de 1830, o Código Criminal do Império tentou dar fim à prática da jogatina e a sua exploração por particulares ao estabelecer penas para quem mantivesse ou frequentasse as casas de tavolagem. “Mesmo assim, o jogo continuou a pleno vapor”, conta Mello.
Algo semelhante aconteceu com o centenário jogo do bicho. Em 1892, em busca de financiamento para o Zoológico de Vila Isabel, no Rio de Janeiro, o primeiro do país, seu proprietário, o empresário João Baptista de Vianna Drummond (1825-1897), o barão de Drummond, lançou uma nova loteria. Nela, o visitante adquiria um bilhete de entrada com a imagem de um animal. A primeira extração ocorreu no dia 3 de julho, um domingo. “Por volta das 5 da tarde foi tirada de uma caixa de madeira a gravura com a imagem de um dos bichos de uma lista de 25 possibilidades, como vaca, borboleta e crocodilo. Naquele dia, deu avestruz e 23 pessoas levaram o prêmio em dinheiro”, narra o historiador Felipe Magalhães, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), autor do livro Ganhou, leva! – O jogo do bicho no Rio de Janeiro (1890-1960) (Editora FGV/Faperj, 2011).
A ideia foi um sucesso e as extrações passaram a ocorrer de terça a domingo. Pouco depois, o barão montou uma banca na rua do Ouvidor, no centro da cidade, e muita gente comprava o ingresso apenas para apostar. Em 1895, a Prefeitura proibiu o sorteio no zoológico, mas a moda já havia se espalhado pela cidade. Mais tarde o jogo sofreria transformações e assumiria o formato em vigor até hoje. Sua exploração por particulares passou a ser considerada contravenção penal em todo o território nacional a partir da regulamentação do Decreto-lei nº 3.688, de 3 de outubro de 1941.
A reportagem acima foi publicada com o título “Os efeitos nocivos dos jogos on-line” na edição impressa nº 344, de outubro de 2024.
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