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Biodiversidade

Os fungos brancos e negros do Atacama

Leveduras do deserto chileno exibem resistência a uma radiação ultravioleta tão alta quanto em Marte

Em agosto de 2012, na etapa final do curso de Biotecnologia na Universidade Federal de São Carlos em Araras, interior paulista, André Pulschen estava prestes a encontrar quatro espécies de fungos casca-grossa, coletadas seis meses antes do alto de um vulcão do deserto do Atacama, norte do Chile. Usando um equipamento que simula o ambiente de outros planetas em um laboratório ligado à Universidade de São Paulo (USP), ele identificou duas espécies de fungos – Exophiala sp., que forma colônias pretas por causa do acúmulo do pigmento melanina, e Rhodosporidium toruloides, que se agrega em colônias cor de laranja em razão do caroteno – com uma capacidade de resistir à radiação ultravioleta (UV) do sol tão elevada quanto à da bactéria Deinococcus radiodurans, usada como organismo-modelo para estudar as possibilidades de vida em Marte. No planeta vermelho o ambiente é tão seco e com tanta radiação UV quanto o deserto do Atacama. Normalmente essa radiação é fatal para microrganismos e seres humanos.

Outras duas espécies trazidas das paredes rochosas do vulcão Sairecabur – Cryptococcus friedmanii e Holtermanniella watticus – apresentaram uma resistência elevada à radiação UV de modo intrigante, já que são brancas, desprovidas de pigmentos aos quais se atribuem o efeito protetor contra o ultravioleta. As quatro espécies já tinham mostrado uma resistência elevada a baixas temperaturas – as duas brancas continuaram se multiplicando mesmo depois de passar alguns dias a -6,5 graus Celsius (ºC). Embora não seja ainda possível explicar como resistem à variação de temperatura e a cargas intensas de radiação UV mesmo sem pigmento, esses fungos expressam impressionantes mecanismos de adaptação ao deserto mais seco do mundo, onde não se pensava que a diversidade biológica fosse tão variada.

Fungos do vulcão: Exophiala sp., R. toruloides, C. friedmanii e H. watticus. Acima, os gêiseres de Tatio com o vapor escaldante saindo das rochas

Eduardo CesarFungos do vulcão: Exophiala sp., R. toruloides, C. friedmanii e H. watticusEduardo Cesar

Quem desce no aeroporto de Calama, cidade de 150 mil habitantes encravada no deserto do Atacama, logo sente o calor intenso e a luz arrebatadora em meio à paisagem imensamente plana e avermelhada. Na viagem até San Pedro de Atacama, vilarejo de 3 mil moradores a 2.400 metros de altitude que constitui a base para as expedições aos raros lagos, salinas e vulcões da região, é díficil ver sinal de vida silvestre na terra seca de poucos morros. Os moradores de San Pedro reforçam a ideia de que existe pouca variedade de vida silvestre além dos flamingos rosados nos lagos que recebem água do degelo dos Andes, das pombas andinas que perseguem os turistas em busca de comida, dos lagartos acanhados ou das vicunhas que se alimentam em touceiras de gramínea baixa nas regiões mais altas.

O deserto que se espraia por mil quilômetros de extensão guarda formas notáveis e ainda pouco conhecidas de organismos microscópicos adaptados à escassez de água e à temperatura que pode variar de 50ºC durante o dia a -15ºC à noite. Em 2006 uma equipe da Nasa, a agência espacial dos Estados Unidos, identificou 12 gêneros de fungos capazes de viver na terra tórrida do Atacama e de produzir esporos, estruturas semelhantes a sementes, que se espalham com o vento. Agora, pesquisadores brasileiros e chilenos encontraram em cavidades de rochas ou nas paredes rochosas de um vulcão, a quase 6 mil metros de altitude, variedades de fungos com uma ainda inexplicada resistência a situações adversas.

Os gêiseres de Tatio com o vapor escaldante saindo das rochas

Eduardo CesarOs gêiseres de Tatio com o vapor escaldante saindo das rochasEduardo Cesar

“O micro-hábitat no interior das rochas pode favorecer a colonização, a sobrevivência e a dispersão da vida microbiana”, disse Luiz Henrique Rosa, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). A partir de coletas feitas no Atacama em altitudes que variavam de 746 a 5.047 metros, equipes da UFMG, da USP, do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS) e da Universidade de Antofagasta, no Chile, identificaram 81 variedades de fungos capazes de viver em fissuras ou cavidades de rochas semelhantes ao granito, nas quais a temperatura pode variar de -45 a 60ºC. “Os fungos devem produzir enzimas que lhes permitem aproveitar os minerais, a umidade proveniente do orvalho e a matéria orgânica do interior das rochas”, ele comentou. Em 2013 uma equipe dos Estados Unidos e da Espanha apresentara as bactérias das cavidades de rochas vulcânicas conhecidas como riolitos, coletadas de rochas sedimentares do Valle de la Luna, uma depressão da cordilheira do Sal, próxima a San Pedro de Atacama.

Além de identificar os fungos – organismos formados por células dotadas de núcleo e, portanto, mais complexos que as bactérias –, a equipe da UFMG os colocou para trabalhar. Em laboratório, Vívian Gonçalves cultivou os fungos das rochas do deserto e examinou os extratos que produziram em meio de cultura. Orientada por Rosa, ela encontrou 23 extratos que apresentaram ação contra fungos, vírus e protozoários causadores de doenças em seres humanos. Em 2014 ela fez o fracionamento químico dos extratos em um laboratório do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos e isolou duas substâncias, o ácido alfa-linolênico e o ergosterol 5,8-endoperóxido, com ação contra microrganismos.

O Vale da Lua: depósitos de sal à vista

Eduardo CesarO Vale da Lua: depósitos de sal à vistaEduardo Cesar

Fungos em Marte?
Fungos representantes do gênero Cladosporium foram encontrados em rochas de cinco altitudes diferentes, destacando-se pela capacidade de se adaptar a ambientes diferentes – outras equipes já haviam verificado que ao menos uma espécie, C. halotolerans, consegue viver em lugares com alta concentração de sal. O Cladosporium apresenta-se como manchas marrons ou pretas, em razão do acúmulo de melanina, que protege contra os efeitos danosos da radiação UV do sol. As duas espécies de fungos brancos trazidas do alto do vulcão Sairecabur indicam, porém, que os pigmentos talvez não sejam indispensáveis. Outros mecanismos moleculares ainda não identificados poderiam ser tão importantes quanto a pigmentação para evitar os efeitos nocivos da radiação UV do alto do vulcão. “A 5 mil metros de altitude, a pele, se exposta, pode se queimar facilmente por causa da radiação ultravioleta do sol”, disse Pulschen, agora no doutorado no Instituto de Química da USP.

Entrevista: André Pulschen
00:00 / 10:53

A extrema aridez e a elevada incidência de radiação UV fazem do deserto do Atacama um ambiente similar ao de Marte. Por essa razão, organismos resistentes a essas condições atraem os cientistas por representar formas de vida que poderiam sobreviver fora da Terra. Especializado nesse campo, Douglas Galante, atualmente no LNLS, faz uma aposta: os fungos casca-grossa do vulcão do Atacama poderiam sobreviver em Marte, já que as condições ambientais são muito parecidas. Para ele, a busca de resquícios atuais ou antigos de organismos mais complexos como os fungos e não apenas de seres anucleados como a bactéria Deinococcus radiodurans, como se planeja, poderia ser considerada nas próximas expedições ao planeta vermelho, “ampliando as possibilidades de encontrarmos vida fora da Terra”.

Neste ano a equipe brasileira pretende estudar as bactérias que vivem em meio a rochas lavadas continuamente pelo vapor dos gêiseres de Tatio, a 90 quilômetros de San Pedro de Atacama, a 4.320 metros de altitude. O vapor se forma quando a água dos rios subterrâneos entra em contato com rochas quentes e sai por fissuras, a uma temperatura próxima a 100ºC, formando colunas de até 10 metros de altura. As bactérias resistentes a temperaturas elevadas parecem se alimentar de materiais inorgânicos liberados pelas próprias rochas, ricas de enxofre.

Veja mais na galeria de imagens.

Artigos científicos
GONÇALVES, V.N. et al. Fungi associated with rocks of the Atacama Desert: taxonomy, distribution, diversity, ecology and bioprospection for bioactive compounds. Environmental Microbiology (on-line). 2015.
PULSCHEN, A.A. et al. UV-resistant yeasts isolated from a high altitude volcanic area on the Atacama Desert as eukaryotics models for astrobiology. MicrobiologyOpen. v. 4, n. 4, p. 574-88. 2015.

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