O vermelho das folhas ao redor das pequenas flores do bico-de-papagaio chama a atenção de aves e insetos polinizadores. Mas muitos pesquisadores estão cada vez mais convencidos de que, além de transmitirem mensagens aos animais, os corantes responsáveis pela maioria dos azuis e vermelhos do reino vegetal, substâncias conhecidas como antocianinas, cumprem funções vitais para o organismo das plantas.
Uma colaboração entre os laboratórios liderados pelos químicos Frank Herbert Quina, da Universidade de São Paulo (USP), e António Maçanita, do Instituto Superior Técnico de Lisboa, em Portugal, vem acumulando evidências que corroboram uma velha teoria sobre as antocianinas: a de que esses corantes protegem as folhas, especialmente as mais novas e as mais velhas, contra o efeito danoso do excesso da luz solar e sua radiação ultravioleta.
“As antocianinas têm todas as propriedades de um filtro solar”, afirma Quina. Em uma série de artigos, o último publicado em março deste ano no Chemistry European Journal, Quina e seus colaboradores mostram como as moléculas de antocianinas fazem para absorver a luz e os raios ultravioleta, transformando rapidamente a sua energia em calor inofensivo à planta.
A ideia de que as antocianinas protegeriam as folhas do sol vem sendo discutida desde o século XIX. Havia certa dúvida sobre esse efeito protetor, por elas se encontrarem nas células vegetais dentro de bolsas chamadas vacúolos, que na época eram consideradas como mero depósito de lixo celular. A situação mudou no início dos anos 1990, quando experimentos com plantas demonstraram que a fotossíntese de folhas avermelhadas resistia melhor ao excesso de radiação solar.
A luz é essencial para a fotossíntese, que é justamente o processo em que a energia da radiação solar é absorvida por um corante verde chamado clorofila e convertida por uma complicada maquinaria bioquímica em açúcares armazenados para alimentar a planta posteriormente. O excesso de luz, no entanto, assim como a energética radiação ultravioleta, pode sobrecarregar e danificar a clorofila, um efeito chamado de fotoinibição.
As folhas recém-brotadas, cujo aparelho fotossintético ainda não se formou por completo, são especialmente vulneráveis à fotoinibição. “Nas folhas do cacau, vermelhas quando novas, a antocianina começa a desaparecer quando a síntese de clorofila se inicia”, explica Quina, que é norte-americano, mas vive no Brasil desde 1975.
O risco de fotoinibição também é maior para as folhas no fim de sua vida. No outono dos países temperados, em algumas espécies de árvores como o bordo-vermelho, as células da camada superior das folhas aumentam a síntese de antocianinas quando a clorofila das células da camada inferior começa a ser desmontada para reaproveitar o nitrogênio dessas moléculas, armazenado para enfrentar o inverno.
Em picossegundos
Isoladas em laboratório, as antocianinas são vermelhas quando colocadas em uma solução ácida e azuis em uma solução básica. Para estudar suas reações com a luz, os pesquisadores disparam pulsos de laser de vários comprimentos de onda em soluções de antocianinas com diferentes níveis de acidez, observando em seguida como elas absorvem a radiação.
A antocianina vermelha normalmente se comporta como um ácido fraco, como o ácido acético do vinagre. Mas, atingida pelo pulso de laser, a molécula energizada pela luz se transforma em um ácido tão forte quanto o clorídrico, perdendo um íon de hidrogênio para a água.
Tudo acontece em muito menos que um piscar de olhos. Em menos do que 200 trilionésimos de segundo (picossegundos), esse movimento do próton converte a energia da luz visível e da radiação ultravioleta em calor e a molécula retorna à sua forma de ácido fraco. “É um caminho muito eficiente para transformar a energia da luz em calor”, diz Quina.
A movimentação do próton, no entanto, não explica sozinha a ação de filtro solar. É que o processo não absorve radiação ultravioleta o suficiente para proteger a planta. O que ajuda é o fato de os vacúolos se encontrarem cheios de compostos incolores conhecidos como copigmentos, que absorvem fortemente a radiação ultravioleta. Diferentemente das antocianinas, os copigmentos não possuem mecanismos para dissipar a energia da luz sem causar reações químicas danosas à célula.
A concentração das antocianinas e dos copigmentos nos vacúolos é tal que as duas classes de moléculas se combinam e formam um complexo – uma espécie de supermolécula – com as melhores propriedades protetoras de ambas.
Em experimentos recentes as equipes brasileiras e portuguesas demonstraram que o complexo formado por uma das antocianinas mais comuns, a cianidina, e um copigmento, o ácido coumárico, não decorre apenas da propriedade do copigmento de repelir a água em volta da antocianina e, assim, se aproximar dela. Há também uma atração elétrica entre a antocianina, de carga positiva, e o copigmento, de carga negativa, que faz as duas moléculas aderirem fortemente.
Assim, quando os raios ultravioleta são absorvidos pelo copigmento, podem acontecer dois processos distintos. Se a antocianina estiver ao seu lado, o copigmento transfere a energia da luz para ela, que a converte em calor pela movimentação dos átomos de hidrogênio. Mas se as moléculas estiverem uma sobre as outras, a energia da luz é transferida ao movimento dos elétrons entre elas. Este processo ocorre mais rapidamente que o primeiro – em menos de um picossegundo – e converte a luz ultravioleta em calor de modo ainda mais eficiente.
Antioxidantes
A ação de filtro solar não é a única proteção que as antocianinas oferecem às plantas. Assim como acontece com os animais, o metabolismo vegetal produz radicais livres – compostos ricos em oxigênio altamente reativos que danificam as células. Os experimentos de Quina e de outros pesquisadores vêm confirmando que essas moléculas são potentes antioxidantes que rapidamente neutralizam os radicais. Esse é um dos motivos, aliás, pelos quais os nutricionistas recomendam uma dieta rica em verduras como o repolho-roxo e frutas como a uva e o açaí, todos ricos em antocianinas.
As plantas possuem ainda outros corantes antioxidantes. Os mais comuns são os carotenoides, que colaboram com a clorofila na fotossíntese, sendo os responsáveis pelo amarelo das folhas no outono e pela cor da cenoura, do tomate e do urucum. Uma única ordem de plantas, as das Caryophyllales, que inclui as beterrabas, os cactos e as buganvílias, produz no lugar das antocianinas outros corantes antioxidantes, as betalaínas.
Nenhum outro corante vegetal, porém, dá origem a uma variedade de tons de azul e vermelho tão grande quanto as antocianinas. Suas cores dependem da acidez e da presença nos vacúolos de certos copigmentos e metais. Por essa razão, uma mesma antocianina, a cianina, em condições diferentes, colore tanto as centáureas-azuis quanto as rosas-vermelhas.
Misturadas com uma concentração baixa de copigmentos, as antocianinas mudam de cor facilmente com pequenas alterações de acidez, o que impede na maioria das vezes seu uso pela indústria de alimentos. Uma exceção é a cor do vinho tinto, que se mantém devido a uma reação entre as antocianinas. “Gostaríamos de achar um modo de estabilizar a cor de uma antocianina pura”, diz Quina. “Por ora só sabemos fazer isso com coisas não comestíveis, como alguns detergentes.”
Outra dificuldade de trabalhar com as antocianinas é obtê-las em grande quantidade. “Para extrair 20 miligramas de antocianinas da flor de um parente da batata-doce, são necessários 20 quilos de flores”, conta Amauri Marcato, químico com doutorado em botânica, colaborador de Quina na USP. Além disso, obter a partir da mistura natural de antocianinas um extrato purificado, contendo um único tipo de molécula, é caro e trabalhoso.
Por causa dessa limitação, o estudo das antocianinas geralmente é feito usando outras moléculas como modelo, os chamados sais de flavílio, mais fáceis de obter. Menos complexos que as antocianinas, os sais de flavílio possuem a mesma estrutura atômica que absorve a luz nas antocianinas.
Quina e Marcato esperam contornar esses problemas em breve, tentando produzir antocianinas in vitro. A ideia é cultivar em laboratório um líquido com células vegetais indiferenciadas, originárias de uma planta jovem. Controlando as condições de cultura, tal como a luminosidade, eles esperam induzir suas células a produzir algumas antocianinas em grande quantidade. “Ficaria muito mais fácil separá-las”, explica Marcato.
Também está nos planos de Quina colaborar com biólogos moleculares para manipular a síntese das antocianinas. Ele acredita que não esteja longe o dia em que será produzida uma variedade de cacau cujas folhas crescem vermelhas a vida toda. Assim a árvore poderia crescer ao sol, que a ajudaria e se livrar do fungo vassoura-de-bruxa, principal praga da cultura de cacau.
Artigo científico
FERREIRA DA SILVA, P. et al. Photoprotection and the photophysics of acylated anthocyanins. Chemistry European Journal. v. 18. 2012.