No meio da floresta, nas folhas das árvores a cerca de 1 metro (m) do chão, manchas esbranquiçadas podem a distância passar por dejetos de passarinhos. Mais de perto, são montículos aveludados que ora mantêm características da aranha que uma vez existiu, ora exibem apenas minúsculas formas com algo de alienígena. São estruturas reprodutivas de fungos especialistas em parasitar aranhas. Um parasitismo semelhante, em formigas, inspirou o jogo eletrônico The last of us, que inclui criaturas devoradoras infectadas por um fungo mutante e neste ano virou série televisiva.
“O parasita manipula o comportamento dos hospedeiros de modo a proporcionar uma grande vantagem ao fungo”, explica o biólogo Aristóteles Góes Neto, coordenador do Laboratório de Biologia Molecular e Computacional de Fungos na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). A manipulação em geral envolve que as aranhas subam pelas árvores e se instalem em folhas mais altas do que aquelas onde normalmente ficariam para, ali, morrerem. “São como os zumbis da vida real”, brinca o pesquisador. Dessa posição, as estruturas reprodutivas dos fungos liberam esporos que caem como uma chuva de pó microscópico e se espalham sobre as futuras vítimas, nas folhas mais baixas.
O grupo mineiro publicou em abril, na revista científica Journal of Fungi, um levantamento sobre o gênero parasita Gibellula – foi o trabalho de doutorado da bióloga Thairine Mendes Pereira, contribuindo para desbravar essa associação. “É um dos únicos gêneros de fungo que só parasitam aranhas”, explica Góes Neto. Além de levantamento bibliográfico, o trabalho de campo consistiu em busca na vegetação no Parque Estadual do Rio Doce, em Minas Gerais, na Estação Biológica de Santa Lúcia e na Reserva Biológica Augusto Ruschi, as duas últimas no Espírito Santo.
A bióloga também procurou aranhas parasitadas no Ceará, em parceria com o ecólogo Jober Sobczak, da Universidade Federal da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unila). No município cearense de Pacoti eles encontraram um fungo que, ao invadir a aranha, a reveste de hifas (os filamentos dos fungos) douradas – por isso ganhou o nome de G. aurea, conforme descrito em artigo de 2022 na Phytotaxa. “É difícil identificar a aranha depois da formação dos esporos porque o fungo destrói o corpo do hospedeiro”, explica Sobczak. Quando é possível contar as pernas, os pesquisadores distinguem aracnídeos de insetos, mas a identificação mais detalhada de aranhas costuma depender do exame da genitália.
A relação já é bastante estudada em insetos, mas no mundo todo ainda é largamente desconhecida para aranhas. “Essa área na micologia [estudo de fungos] ainda é muito pouco explorada, mas parte considerável dos estudos está vindo do Brasil pelo trabalho dos professores Ari, da UFMG, e Jober Sobczak, do Ceará”, afirma o micólogo brasileiro João Araújo, curador de fungos no Jardim Botânico de Nova York, nos Estados Unidos. Ele tem colaborado com os grupos radicados no Brasil para descrever as espécies, definir as relações de parentesco entre elas e elucidar sua biologia e evolução. “Ainda estamos engatinhando em relação a entender a real biodiversidade relacionada a esses fungos.”
Ele completa que o Brasil é um dos países com maior diversidade mundial de fungos com hábito parasita. “A Amazônia e a Mata Atlântica são ‘minas de ouro’ para quem estuda esses fungos”, diz. “Às vezes, a maioria das coletas do dia é composta por espécies que ainda não conhecemos.”
Sobczak ressalta que os achados na região Nordeste deixam claro que havia uma conexão florestal do sul ao norte do país. “Encontramos a mesma espécie de fungo, associada à mesma hospedeira, no Ceará, no Amazonas e no Vale do Ribeira, entre São Paulo e Paraná”, explica. O local principal de sua pesquisa é a serra do Baturité, uma área de Mata Atlântica no nordeste do estado em meio ao semiárido, onde predomina a Caatinga. “Encontramos uma alta incidência de parasitismo embaixo das folhas e sobre as bromélias”, conta o ecólogo. “Vimos vespas, formigas, besouros, grilos – há indícios de ser uma das áreas mais ricas em fungos entomopatogênicos e araneopatogênicos.” Ele se refere a parasitas de insetos e de aranhas, respectivamente.
Depois dos inventários, vem a parte de entender os mecanismos de ação, ainda indefinidos. A constância no modo de morte, no entanto, deixa claro que deve haver uma vantagem adaptativa para o fungo. “Independentemente da espécie, todas as aranhas morrem em lugar semelhante, presas à face inferior das folhas.” O pesquisador afirma que um estudo coordenado por ele e conduzido pelo ecólogo Ítalo Arruda, da Universidade Federal do Ceará, é indício convincente de que o fungo induz as aranhas a subir nas plantas mais altas. Em média, as parasitadas morrem esticadas nas folhas a cerca de 1 m do chão, enquanto as saudáveis fazem abrigos de seda a 75 centímetros de altura, conforme descrito em artigo de 2021 no Canadian Journal of Zoology.
Os pesquisadores ainda não sabem exatamente como o fungo avança pelo organismo das aranhas depois da infecção, mas Góes Neto infere que seja semelhante ao que já foi observado em insetos, nos quais o fungo produz compostos que atuam sobre os neurônios do invertebrado e causam a alteração de comportamento. “Já sequenciamos o genoma completo de G. pulchra, a espécie de fungo com distribuição mais ampla, e encontramos vários genes possivelmente envolvidos com interferência no sistema nervoso”, adianta, sobre trabalho ainda em andamento.
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