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reparo de dna

Os sutis danos do Sol

Sensor detecta as lesões nos genes causadas pela radiação solar

Pele frágil: nos dias mais quentes, filtros solares podem não proteger tanto quanto gostaríamos

MARTYN F. CHILLMAID/SCIENCE PHOTO LIBRARYPele frágil: nos dias mais quentes, filtros solares podem não proteger tanto quanto gostaríamosMARTYN F. CHILLMAID/SCIENCE PHOTO LIBRARY

Enquanto construía um sensor de lesões da molécula de DNA em um dos laboratórios do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da Universidade de São Paulo (USP), o biólogo gaúcho André Schuch sentiu-se como quando era menino e desmontava seus carrinhos para tirar os motores e criar outros brinquedos em Santa Maria, interior do Rio Grande do Sul. Nos primeiros três anos, projetou, construiu e testou  três protótipos que lhe mostraram apenas o que não devia fazer. Depois ele acertou a mão com o quarto protótipo, que está indicando que temos boas razões para nos preocuparmos com o excesso de radiação solar que chega à pele normalmente pouco protegida e para não confiarmos tanto – principalmente quem tem pele clara – no efeito dos cremes de proteção solar ao sair para curtir um dia de praia no verão.

Nos testes iniciais, o sensor – ou dosímetro – indicou que a radiação ultravioleta do tipo A (UV-A), que os protetores solares protegem bem menos que a do tipo B (UV-B), mais energética que a A, também pode causar lesões no DNA, a molécula que guarda o material genético de cada ser vivo. Milhares de vezes por dia a molécula de DNA é rompida e refeita, por meio de proteí-na de reparo, em cada célula do corpo humano. As lesões, quando não são consertadas, podem levar a mutações genéticas indesejadas. E essas mutações, por sua vez, na medida em que geram células defeituosas que se multiplicam incessantemente, podem levar a várias formas de câncer, principalmente o de pele, responsável por um em cada quatro tumores malignos detectados no país. O Instituto Nacional do Câncer (Inca) estima que 134 mil brasileiros apresentem câncer de pele em 2012.

Outra verificação é que as regiões com maior incidência de UV-B são as de latitude mais baixa – e não as mais próximas dos polos, como seria esperado, já que o buraco da camada de ozônio na alta atmosfera deixaria passar mais radiação ultravioleta do tipo B da luz solar que nas proximidades do equador. Em 2006, 2007 e 2008, Schuch expôs os sensores à luz natural, das 10h às 14h, quando a radiação solar é mais intensa, em Punta Arenas, cidade do extremo sul do Chile a 55 graus de latitude, em Santa Maria, em São Paulo e em Natal, capital do Rio Grande do Norte.

De modo inesperado, foi em Natal que ele registrou uma intensidade de radiação UV-B 13 vezes maior – e uma quantidade proporcional de danos ao DNA – do que em Punta Arenas, mesmo tendo observado um afinamento de 50% da camada de ozônio durante três dos sete dias em que fez as medições no Chile. “Temos de proteger a pele das pessoas no Brasil, como já fazem na Austrália e no Chile”, diz o geneticista Carlos Menck, coordenador do laboratório de reparo de DNA do ICB da USP.

Menck conta que recebeu Schuch com muito gosto, em 2003, inicialmente para um estágio de férias. Desde seu próprio doutorado, concluído em 1982, Menck estuda as lesões e os mecanismos de reparo de DNA. Há muitos anos ele queria encontrar uma forma de medir as lesões nessa molécula, mas não estava conseguindo. Mandou amostras para a Antártida, mas não deu certo. O erro básico, que ele viu ao começar a trabalhar com Schuch, é que usava DNA seco, cuja estrutura se altera e não reproduz com precisão o que acontece com a molécula normalmente imersa em água.

Schuch não sabia ainda como, mas, já como parte de seu doutorado, queria fazer algo que funcionasse à luz natural – havia apenas experimentos de lesões em células, plantas e animais usando luz artifical – e com mais precisão que os similares dos Estados Unidos e do Japão. Já tinha, é verdade, experiência em medir radiação solar por meio de aparelhos chamados radiômetros, com que trabalhara no Centro Regional de Pesquisas Espaciais de Santa Maria. Como resultado de uma cooperação com pesquisadores do Japão, os mesmos que instalaram os equipamentos no sul, dois radiômetros estão instalados no teto de um dos prédios do ICB. “Já temos três anos de monitoramento”, diz ele. “Nossa base de dados está ficando consistente.”

Aos 29 anos, voltando para Santa Maria com a esperança de prosseguir a linha de pesquisa materializada em seu doutorado, ele acredita que as leituras dos sensores poderão complementar as de radiômetros específicos, como os que indicam as mínimas doses de radiação capazes de causar queimaduras de pele conhecidas como eritemas. As perspectivas lhe parecem animadoras. “Criamos mais do que o protótipo de um dosímetro”, diz ele. “Agora podemos avaliar os eventuais danos ao DNA submetido à radiação do espaço extraterrestre.” Seu próximo passo é medir as lesões da luz solar diretamente em culturas de células, não apenas em DNA.

A versão atual dos sensores – feita com um silicone especial, transparente e arredondado, com dois ou três furos centrais, lembrando botões de casacos antigos – indica a quantidade de cinco tipos de lesão de DNA causadas pela radiação UV-A ou UV-B na molécula de DNA. Uma solução com DNA circular, chamado plasmídeo, preenche os orifícios do sensor. Exposto à luz natural, o DNA absorve a radiação que provoca as lesões, avaliadas depois em laboratório por meio de reações com enzimas de reparo de DNA.

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Menck e Schuch estão usando o sensor de lesões de DNA para avaliar a eficácia dos protetores solares. “A maior parte dos protetores protege bem contra UV-B, mas não tão bem contra UV-A”, diz Menck. Sem esperar, eles viram que um tipo de lesão do DNA, a 6-4 pirimidina-pirimidona, uma das causas de mutações, também pode ser causada pelo UV-A, de menos energia, e não apenas pelo UV-B, como já se sabia. Por essa razão, provavelmente vão sugerir um reforço no índice de bloqueio dos raios UV-A para a equipe de pesquisa e desenvolvimento de uma empresa fabricante de cosméticos, ainda mantida em sigilo, com a qual estão colaborando.

Eles querem também encontrar o fator de proteção solar mais adequado para as pessoas com hipersensibilidade à luz solar, como as que possuem uma doença chamada Xeroderma pigmentosum (XP), causada por falhas em genes de reparo de DNA. As pessoas com XP apresentam um risco cem vezes maior de desenvolver tumores de pele que as pessoas sem esse problema. Para se protegerem, têm de usar roupas com mangas longas, até mesmo dentro de casa, e passar protetor solar sobre o corpo todos os dias. Para evitar inflamações e tumores nos olhos, comuns em pessoas com essa deficiência genética, têm de usar óculos escuros, até mesmo para assistir televisão.

Em julho de 2010, Menck visitou pela primeira vez o povoado de Araras, a 242 quilômetros de Goiânia (GO), que reúne um número elevado de pessoas com XP: 22 já diagnosticadas, em uma população de cerca de mil pessoas da cidade de Faina, a que o povoado pertence. Nos últimos 50 anos, cerca de 20 haviam morrido por causa dessa doença, que ali apresenta uma alta prevalência provavelmente por causa de casamentos entre parentes. No Brasil, o total de pessoas com XP não deve passar de mil, dispersas pelo país. Schuch também esteve lá, com os sensores de DNA, e registrou níveis impressionantes altos de radiação e de lesões, mesmo para pessoas comuns – uma constatação esperada, diante do vasto céu azul do cerrado do Brasil central. Parte da equipe de pesquisadores de seu laboratório também foi a Araras e se impressionou com a fragilidade da pele dos moradores com XP, que, mesmo assim, continuam trabalhando no campo sob o sol.

Uma série de reportagens publicadas no Correio Braziliense em outubro de 2009 deu visibilidade às pessoas que não podiam tomar sol, embora trabalhassem no campo durante o dia, chamou atenção para o desamparo em que viviam, reconheceu lideranças locais como Gleice Machado, presidente da Associação dos Portadores de Xeroderma Pigmentoso do Estado de Goiás, e o trabalho de médicos como a dermatologista Sulamita Chaibub, coordenadora do projeto de atendimento multidisciplinar aos portadores de XP de Araras no Hospital Geral de Goiânia, e Rafael Souto, professor da Pontifícia Universidade Católica de Goiás.

Sensibilizado pela situação, o farmacêutico Evandro Tokarski, proprietário de uma farmácia artesanal em Goiânia, há nove meses começou a enviar, sem custos, um creme com alto poder de proteção solar, que ele próprio desenvolveu, para os moradores de Araras com XP. “Envio mensalmente, para que não falte”, ele diz. “Se temos condições de apoiar, por que não apoiar?” Ele conta que está preparando, e pretende apresentar em breve aos médicos à frente do atendimento àquela população, um creme hidratante que ajude a tratar a pele ressecada das pessoas com essa deficiência genética.

Da esquerda para a direita, Geni, Claudia e Vanda Jardim: em Araras, Goiás, muitos têm hipersensibilidade à luz

WILSON PEDROSA Da esquerda para a direita, Geni, Claudia e Vanda Jardim: em Araras, Goiás, muitos têm hipersensibilidade à luzWILSON PEDROSA

A senadora Lúcia Vânia (PSDB-GO), por sua vez, apresentou um projeto de lei prevendo a concessão de auxílio-doença e aposentadoria por invalidez para os moradores de Araras com XP. Aprovado por uma das comissões do Senado em novembro de 2011, o projeto de lei deve agora seguir para a Câmara dos Deputados. Também motivados pelas reportagens dos jornais, pesquisadores de universidades em Goiás, do Distrito Federal e de São Paulo intensificaram o estudo das formas de prevenir o crescimento dos tumores nas pessoas com XP de Araras. A prevenção implica adaptar os vidros e outros materiais das casas e de outras edificações para receberem o mínimo possível de luz solar. Ou mesmo construir quadras cobertas para as crianças das escolas.

Os cuidados são muitos, e muitas vezes imperceptíveis. Quando estava lá, Menck pediu aos fotógrafos dos jornais que não usassem flash diante das pessoas com XP, explicando que poderia ser prejudicial para elas. Ele se comprometeu a voltar em julho para apresentar um conjunto de trechos específicos de DNA – ou primers – capazes de detectar as mutações nos genes de reparo do DNA dos moradores de Araras. “Está quase pronto”, contou, animado, no início de março. “Ajudar aquelas pessoas e entender por que elas têm câncer e não têm envelhecimento precoce é agora nossa prioridade total.”

Ele e sua equipe acreditam que poderão encontrar mutações novas nos genes causadores de XP. “Descrever uma nova mutação é uma contribuição científica pequena, mas cada nova mutação permite compreender melhor por que as coisas acontecem nos seres humanos”, diz Menck. Por vezes, ele acrescenta, os genes de reparo de DNA ajudam a provocar a resistência dos tumores aos medicamentos que deveriam destruí-los. Nesses casos, o que se deseja é reduzir a ação desses genes, intencionalmente, para que os medicamentos sejam mais eficazes; é o que ele também está tentando, em uma linha de trabalho de resultados mais distantes.

Menck reconhece que avançou bastante e montou uma equipe produtiva e criativa, que não hesita diante de propósitos ousados como ajudar os moradores de Araras a sofrer menos. Às vezes ele volta às origens, tira da estante e folheia um volume encadernado com capas cor de vinho – sua tese de doutorado, “Sobrevivência e Sistemas de reparo em células de mamíferos”, com 95 páginas, que o colocou na trilha de trabalho em que está até hoje – e diz: “Tem coisas aqui que ainda não foram bem resolvidas”.

Os Projetos
1. Reparo de DNA lesado e consequências biológicas (nº 1998/11119-7) (1999-2004); Modalidade Projeto Temático; Coordenador Carlos Frederico Martins Menck – ICB/USP; Investimento R$ 979.444,88
2. Genes de reparo de DNA: análise funcional e evolução (nº 2003/13255-5) (2004-2009); Modalidade Projeto Temático; Coordenador Carlos Frederico Martins Menck – ICB/USP; Investimento R$ 1.442.484,59
3. Respostas celulares a lesões no genoma (nº 2003/13255-5) (2011-2014); Modalidade Projeto Temático; Coordenador Carlos Frederico Martins Menck – ICB/USP; Investimento R$ 1.532.835,80

Artigos Científicos
SCHUCH, A. P., Menck, C. F. The genotoxic effects of DNA lesions induced by artificial UV-radiation and sunlight. Journal of Photochemistry and Photobiology B. v. 99, n. 3, p. 111-16, 2010.
MENCK, C. F. et al. Development of a DNA-dosimeter system for monitoring the effects of solar-ultraviolet radiation. Photochemical & Photobiological Science.
v. 8, n. 1, p. 111-20, 2009.

De nosso arquivo
À prova de luz Edição nº 106 – dezembro de 2004
Soldando o DNAEdição nº 82 – dezembro de 2002

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