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Terapia oncológica

Outra saída

Combinação de radioterapia com quimioterapia evita cirurgia radical em parte dos casos de câncer de reto

055_Cancer-de-reto_195Sandra JaveraDois brasileiros assinam este mês o principal artigo da revista mais influente do mundo na área de oncologia: a CA – A Cancer Journal for Clinicians, editada pela Sociedade Americana do Câncer e referência em terapia oncológica para cirurgiões e clínicos. No texto, escrito a convite dos editores do periódico, os cirurgiões Angelita Habr-Gama e Rodrigo Oliva Perez analisam quase 200 trabalhos recentes sobre a terapia de tumores de reto e concluem: não é mais possível pensar em uma estratégia única para tratar todos os casos. O avanço dos exames de imagem, que facilitam acompanhar a evolução do tumor, e os resultados promissores do uso combinado de rádio com quimioterapia permitem imaginar para parte dos casos, segundo os autores, tratamentos menos agressivos do que o adotado como padrão em boa parte do mundo: a eliminação definitiva da porção final do intestino, que exige o uso de uma bolsa externa coletora de fezes.

O convite para preparar essa revisão representou para o grupo brasileiro o reconhecimento de que Angelita tinha razão quando há quase duas décadas defendeu uma ideia ousada. Com base em sua experiência clínica, ela propôs que, em casos selecionados com muito rigor, o câncer de reto fosse tratado inicialmente com rádio e quimioterapia e que sua evolução fosse acompanhada de perto, em vez de encaminhado diretamente para a cirurgia radical. Desde 1991 o grupo coordenado por Angelita já tratou aproximadamente 700 pacientes com câncer de reto, atendidos no Instituto Angelita & Joaquim Gama, no Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP) e no Hospital Alemão Oswaldo Cruz. Em pouco mais de um quarto das vezes (precisamente 28%), a terapia com medicamentos e radiação levou à regressão total do tumor.

A combinação de rádio com quimioterapia costuma ser a primeira alternativa para combater vários tipos de câncer. Mas sempre foi vista com reserva no caso dos tumores de reto, que surgem no trecho final do intestino, já próximo ao ânus, e a cada ano atingem cerca de 10 mil brasileiros. O principal argumento dos cirurgiões em favor do procedimento que elimina o reto e os tecidos ao redor era a dificuldade de saber com segurança se o tumor que havia sido eliminado das paredes do intestino persistia nos tecidos adjacentes. “Havia o temor de que estivéssemos enterrando o tumor”, conta Perez, que desde 1995 integra a equipe de Angelita.

Ela decidiu testar o uso de radiação e medicamentos como estratégia inicial para combater o câncer de reto inspirada no trabalho pioneiro de um cirurgião norte-americano. No início dos anos 1970 Norman Nigro, da Universidade Estadual de Wayne, começou a adotar essa combinação para tentar reduzir o tamanho de outro tipo de tumor, o de ânus, antes de extraí-los por meio de cirurgia. A ideia de aplicar radioterapia e quimioterapia nos tumores que se desenvolvem na porção final do reto, o procedimento usado por Norman, não foi algo trivial. Embora estejam próximos, o ânus e o reto têm origem embrionária distinta e são afetados por tumores diferentes do ponto de vista histológico.

Na visão de Angelita valia a pena correr certo risco a fim de evitar a amputação do reto e tentar melhorar a qualidade de vida do paciente. “Tive a felicidade de ser treinada em um grupo de cirurgiões que sempre fez o possível para preservar os órgãos”, conta a cirurgiã, a primeira mulher a fazer residência em cirurgia geral no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), em 1958. De início, nem a equipe brasileira imaginava que as sessões de rádio e quimioterapia fossem suficientes para eliminar o câncer por completo, o que começou a ficar evidente quando passaram a observar que em parte dos casos não havia mais vestígios de células tumorais.

055_Cancer-de-reto_195-2aSandra Javera“Senti remorso das vezes em que extraímos o reto e não encontramos mais sinal do tumor”, conta Angelita. Na época havia na Faculdade de Medicina da USP um intercâmbio com pesquisadores de Pittsburgh, que sugeriram que o grupo brasileiro iniciasse um estudo comparativo das duas estratégias feito de modo randomizado, em que os pacientes são selecionados por sorteio para integrar um grupo ou outro. “Fui contra e isso nos prejudicou do ponto de vista científico”, conta Angelita. “Não aceitei fazer amputação de reto e colostomia [instalação da bolsa coletora de fezes] definitiva nos casos em que pudesse ser desnecessário.”

Não foi fácil convencer os estrangeiros de que poderia haver alternativa à cirurgia radical. Quando apresentou seus primeiros resultados em 1997, em um congresso internacional de cirurgia de colo e reto na Filadélfia, nos Estados Unidos, Angelita ouviu do coordenador da mesa: “Câncer de reto é coisa séria. Esse trabalho não merece ser discutido”. Até então, a associação de quimioterapia e radioterapia só era adotada após a extração do tumor para diminuir o risco de ressurgimento, que ocorria em até 40% dos casos depois da operação. Mas os resultados não eram satisfatórios. “É diferente tratar um tecido íntegro e bem oxigenado daquele que passou pelo processo de cicatrização e fibrose depois da cirurgia”, explica Perez.

Desde que identificaram os primeiros casos de regressão total do tumor, Angelita e sua equipe trabalham para aprimorar a terapia e tentar reduzir ainda mais a necessidade de intervenção cirúrgica. Há alguns anos, ela, Joaquim Gama-Rodrigues, seu marido e também cirurgião digestivo, Perez e uma equipe multidisciplinar de radioterapeutas e oncologistas clínicos duplicaram as sessões de quimioterapia e aumentaram em 7% a dose de radiação. Foram seis ciclos de tratamento com medicamentos – a pessoa recebe em três dias consecutivos doses intravenosas de 5-fluorouracil, que tornam as células mais sensíveis aos efeitos da radiação –, acompanhados nas primeiras seis semanas por sessões diárias de radioterapia, com dose total de 5.400 gray.

O resultado melhorou. A estratégia foi eficiente em 65% dos casos. Segundo artigo publicado em 2009 na revista Diseases of the Colon and Rectum, eliminou o tumor de 19 dos 28 pacientes que concluíram o tratamento – essas pessoas continuavam livres do câncer um ano mais tarde.

Apesar do avanço, a adoção ampla dessa estratégia de tratamento ainda não é consensual. O médico Rob Glynne-Jones, do Centro de Tratamento do Câncer Mount Vernon, na Inglaterra, acredita que sejam necessárias mais evidências de que o uso de radiação e quimioterapia antes da cirurgia para tratar o câncer de reto seja de fato efetivo. Em estudo publicado em 2008 na revista Diseases of the Colon and Rectum, ele e outros pesquisadores avaliaram cerca de 240 testes clínicos de fase 1, 2 e 3 feitos em diferentes países e concluíram que as informações disponíveis ainda não permitiam apoiar essa estratégia para todos os casos. “Em nossa visão, [as evidências] ainda não são robustas o suficiente para colocar em risco o bem-estar de um paciente jovem, embora possa se justificar para tratar tumores em estágios iniciais de pacientes mais idosos, com comorbidades [outras enfermidades]”, escreveram Glynne-Jones e seus colaboradores.

055_Cancer-de-reto_195-2bSandra JaveraMais recentemente os pesquisadores brasileiros verificaram que a taxa de sucesso de 65% pode, na realidade, ser um pouco mais modesta do que haviam observado. Por meio de um exame de imagem chamado tomografia por emissão de pósitrons, o grupo acompanhou a evolução do tumor de 91 pessoas que completaram a terapia combinada de radiação e remédios. Em todos os casos a atividade do tecido tumoral baixou para quase um terço da inicial na sexta semana após a conclusão do tratamento. Mas, diferentemente do esperado, nem sempre diminuiu continuamente: em metade dos casos o metabolismo do tumor aumentou, ainda que ligeiramente. “Essa é uma indicação de que nem todo mundo responde tão bem quanto esperávamos”, diz Perez, primeiro autor do artigo que descreve os dados, a ser publicado em breve no International Journal of Radiation Oncology. “Acreditamos que a terapia combinada pode ser mais efetiva e sustentada para uns do que para outros”, afirma.

Nesses casos, o tratamento  pode ter eliminado as células mais sensíveis e deixado as mais resistentes. “Ainda não sabemos se elas estão se reproduzindo, mas parecem ter recuperado a atividade metabólica”, conta Perez. Nessa situação, a tomografia por emissão de pósitrons poderia auxiliar os médicos a identificar mais cedo em quem o tratamento não vai funcionar e encaminhar para a cirurgia.

O grupo de Angelita trabalha com a geneticista Anamaria Camargo, do Instituto Ludwig de Pesquisa sobre o Câncer, para produzir testes moleculares que orientem a terapia. Um deles tenta identificar, após o diagnóstico da doença e antes do tratamento, as pessoas que mais se beneficiariam do uso de quimioterapia e radiação. Nos últimos meses os pesquisadores sequenciaram os genes expressos nas células tumorais de 27 amostras do banco de tumores mantido pelo Hospital Oswaldo Cruz e pelo Instituto Angelita & Joaquim Gama. Dos 18 mil genes analisados, cerca de 50 permitem distinguir os casos que respondem bem ao tratamento com rádio e quimioterápico e podem ser poupados da cirurgia dos que devem ser encaminhados diretamente para a ressecção do reto. “Esses genes são uma espécie de assinatura molecular do tumor, que permitem predizer em quais casos o tratamento pode funcionar”, explica Anamaria.

Outro exame que o grupo tenta desenvolver é um marcador para detectar células tumorais residuais e ajudar a saber se a terapia está funcionando. A ideia é ver se células tumorais persistem na circulação sanguínea depois do tratamento com remédios e radiação. É um teste individualizado, em que, a partir da biópsia do tumor, identificam-se as alterações genéticas do câncer típicas de cada pessoa. “É um método bastante sensível, que permitiria detectar tumores pequenos demais para serem identificados por avaliação clínica e exames de imagem”, diz a geneticista, que também tenta descobrir o que está alterado no funcionamento das células tumorais resistentes à terapia. “Queremos chegar ao dia em que seja possível saber de antemão se o paciente responderá bem ou não à rádio e à quimioterapia antes do início do tratamento”, planeja Perez.

Os Projetos
1. Heterogeneidade genética no tumor de reto – identificação de subpopulações tumorais resistentes ao tratamento neoadjuvante com rádio e quimioterapia (nº 2011/51130-6); Modalidade Jovem Pesquisador; Coordenador Rodrigo Oliva Perez – Faculdade de Medicina/USP; Investimento R$ 362.043,70 (FAPESP)
2. Tratamento neoadjuvante em câncer de reto: identificação de uma assinatura gênica capaz de predizer a resposta ao tratamento e desenvolvimento de biomarcadores personalizados para avaliar doença residual mínima (nº 2011/50684-8); Modalidade Linha Regular de Auxílio a Projeto de Pesquisa; Coordenador Anamaria Aranha Camargo – Instituto Ludwig de Pesquisa sobre o Câncer; Investimento R$ 317.922,39 (FAPESP)

Artigo científico
KOSINSKI, L. et al. Shifting concepts in rectal cancer management: a review of contemporary primary rectal cancer treatment strategies. CA – A Cancer Journal for Clinicians. no prelo

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