Prevista para terminar em setembro de 2017, a missão espacial Cassini-Huygens orbita o planeta Saturno e suas luas desde julho de 2004. Durante a missão, um dos principais alvos da espaçonave não tripulada Cassini foi Titã, o maior satélite natural de Saturno, uma vez e meia maior que a Lua da Terra. Em 2004, em um dos primeiros sobrevoos a Titã, a nave lançou a sonda espacial Huygens, que pousou no gélido satélite. As fotos feitas então revelaram uma superfície repleta de poeira e pedregulhos, cujas formas arredondadas sugerem a erosão pela correnteza de um rio já seco. Análises de imagens divulgadas em agosto deste ano, porém, comprovaram que grandes rios ainda correm em Titã, confirmando que, com base no que se conhece até o momento, essa lua é, além da Terra, o único corpo celeste do Sistema Solar com líquidos fluindo constantemente em sua superfície.
“Assim como na Terra, a água circula nos estados sólido, líquido e gasoso, em Titã é o metano que pode existir nesses três estados físicos”, sugere a astrônoma Rosaly Lopes, chefe da Divisão de Ciências Planetárias do Laboratório de Propulsão a Jato (JPL) da agência espacial norte-americana (Nasa), a única pesquisadora brasileira que participa da missão. “Em Titã, vemos nuvens, neve, chuvas, rios e lagos de metano.”
A maior lua de Saturno possui uma atmosfera muito densa. Segundo Rosaly, isso dificulta que as câmeras que captam a luz visível ou que os espectrômetros, aparelhos que identificam a composição química das substâncias, enxerguem bem a sua superfície a partir do espaço. “O melhor instrumento para penetrar esse nevoeiro é o radar”, conta a astrônoma. Após dezenas de sobrevoos a essa lua, o radar da Cassini obteve dados que permitiram a Rosaly e sua equipe internacional de colaboradores mapear o relevo de cerca de 60% da superfície. Publicadas em uma série de artigos na edição de maio da revista Icarus, as conclusões resumem tudo que se sabe sobre a geologia de Titã até o momento.
O mapeamento realizado por Rosaly e seus colaboradores indicou que chuvas e rios de metano, composto formado por um átomo de carbono e quatro de hidrogênio (CH4), esculpem as paisagens das regiões próximas aos polos norte e sul de Titã. Já os relevos do restante do satélite são determinados principalmente pela ação dos ventos.
Em Titã, os ventos não sopram constantemente nem são tão fortes como na Terra – lá as velocidades variam de 1 metro por segundo (m/s) a 10 m/s, enquanto aqui podem ultrapassar os 100 m/s. Ao longo de décadas, porém, o efeito cumulativo é suficiente para moldar grandes campos de dunas no equador e nos trópicos da lua. As imagens da Cassini também sugerem que ventos que alcançam escala planetária carregam parte da areia dos trópicos e dos sedimentos polares para as imensas planícies de relevo suave situadas nas zonas temperadas.
Um astronauta que explorasse a superfície de Titã seria capaz de caminhar facilmente em um mundo onde a força da gravidade é cerca de 10 vezes mais fraca que a da Terra, embora precisasse usar um traje especial para se proteger das temperaturas geladas (em torno de 180 ºC) e da atmosfera sem oxigênio, composta principalmente de nitrogênio e nuvens de metano. Quem pusesse os pés por lá também precisaria de lanternas, uma vez que essa lua recebe apenas um décimo da luz solar que chega à Terra, e de um visor infravermelho para enxergar através de uma espessa névoa alaranjada.
Diversos compostos de carbono e hidrogênio, como etano, propano, acetileno e outros hidrocarbonetos, formam essa névoa. Reações químicas desencadeadas pela luz solar convertem esses compostos em uma fuligem escura de polímeros orgânicos chamados tolinas, que recobre toda a superfície de Titã, cuja crosta, com montanhas, vales e bacias, é formada por água congelada, dura como rocha.
A fórmula exata da mistura que compõe as tolinas ainda é um mistério, pois o metano na atmosfera de Titã funciona como uma barreira para o espectrômetro da Cassini. “Só conseguimos analisar a luz emitida pela superfície em poucos comprimentos de onda, então não é possível definir a composição química das substâncias que estão ali”, explica Rosaly. Ela colabora com Anezina Solomonidou, geóloga planetária que atualmente faz um estágio de pós-doutoramento no JPL, para combinar os dados do espectrômetro com os do radar da Cassini. “Enquanto o espectrômetro dá pistas da composição química em cada ponto da superfície, os três modos diferentes de operação do radar fornecem a temperatura, a topografia e uma ideia da dureza e da textura do material em cada um desses pontos.”
Especialmente nas regiões polares, a temperatura em Titã se torna baixa o suficiente para que o vapor de metano encontrado na atmosfera caia sobre a superfície como chuva ou neve. Ali, próximo aos polos, um astronauta poderia usar um barco para navegar por rios de metano – o maior deles, situado no polo norte, tem a extensão do Nilo, na África. Os rios de Titã correm no fundo de desfiladeiros de gelo, com paredões íngremes de mais de 500 metros de altura – uma paisagem que lembra a do Grand Canyon, nos Estados Unidos, como confirmaram pesquisadores italianos em um estudo publicado em agosto na Geophysical Research Letters. Esses rios alimentam lagos de metano, alguns deles com dimensões comparáveis às dos Grandes Lagos, na fronteira entre os Estados Unidos e o Canadá. “Imaginamos que os cânions de Titã tenham sido formados pela erosão provocada por rios”, explica Rosaly. “A maioria desses rios, porém, hoje está seca e forma terrenos que chamamos de labirintos polares.”
Já no equador e nos trópicos de Titã, o astronauta contemplaria vastos campos de dunas, que ocupam todo o horizonte. Nesse satélite de Saturno, as dunas alcançam até 180 metros de altura e formam campos que devem lembrar os que existem no Egito e na Namíbia, na África. A diferença é que, em Titã, a areia das dunas não é feita de silicatos, mineral formado por compostos químicos inorgânicos, mas por grãos de hidrocarbonetos (compostos orgânicos) semelhantes às tolinas. “A areia das dunas é produzida na zona equatorial, mas não sabemos como”, conta Michael Malaska, pesquisador do JPL e um dos colaboradores de Rosaly.
“É fascinante como a composição de gases, líquidos e sólidos na superfície de Titã é diferente da dos encontrados na Terra, apesar de as formas da paisagem de lá serem parecidas com as daqui”, conta Rosaly. Titã é uma lua muito dinâmica, diferente do satélite natural da Terra, onde não acontece praticamente nada há bilhões de anos. “As mudanças que observamos de ano para ano com a Cassini são pequenas, mas temos indícios de que, ao longo de décadas, as reações químicas na atmosfera e na superfície de Titã, somadas à erosão pelo metano líquido e pelos ventos, fazem o seu relevo mudar muito.”
Rosaly estuda a geologia de planetas e luas do Sistema Solar no JPL desde 1989. Ela colaborou com a missão Galileo, que explorou Júpiter e seus satélites entre 1995 e 2003, e descobriu dezenas de vulcões na lua Io. Até hoje ela analisa os dados obtidos pela missão (ver Pesquisa FAPESP nº 160). Foi seu interesse especial por vulcões que a levou a colaborar também com a missão Cassini. Rosaly identificou terrenos montanhosos nessa lua de Saturno que parecem ser o produto da atividade de vulcões de gelo ou crio-vulcões, hoje aparentemente adormecidos. Diferentes dos vulcões da Terra e de Io, que expelem lava de rocha incandescente, os crio-vulcões são montanhas de gelo que, durante suas erupções, expelem uma mistura de água, amônia e metano, com uma consistência semelhante à de sorvete. “Estudos medindo pequenas diferenças na órbita da Cassini ao redor de Titã sugerem que há um oceano de água líquida sob a crosta de gelo que forma a superfície dessa lua”, explica.
É provável que os crio-vulcões tragam material do oceano interior para a superfície. Se ocorresse o contrário e parte do material orgânico da superfície pudesse penetrar no oceano interior de Titã e se misturar às suas águas, haveria ali um ambiente propício ao surgimento de formas de vida, arrisca Malaska. “A superfície de Titã é muito fria e muitas das reações químicas que caracterizam a vida terrestre não funcionam em temperaturas tão baixas”, explica o pesquisador.
Cânions, labirintos e planícies
Crio-vulcões são bastante raros na superfície de Titã, sendo menos frequentes que os labirintos de cânions polares, o quarto tipo de terreno mais comum por lá. Em terceiro lugar ficam as cadeias de montanha de gelo, a maioria delas situada logo ao sul do equador, em uma região chamada Xanadu. A segunda paisagem mais comum são os campos de dunas, concentrados na região de Shangri-lá. A paisagem predominante em Titã, entretanto, são os terrenos indiferenciados, vastas planícies de relevo muito suave, concentradas nas zonas temperadas, entre os campos de dunas e os labirintos de cânions. “A maioria dos meus colegas não queria estudar esses terrenos, porque são achatados e não parecem ter nada de interessante”, conta Rosaly. Mas ela pensa de modo distinto. “Se esses planos cobrem a maior parte da superfície, não podemos entender a geologia de Titã sem conhecer a origem deles.”
Por parecerem muito lisos e planos, Rosaly suspeitou de início que os terrenos indiferenciados fossem grandes planícies de gelo, resquícios de derrames de crio-lava ancestrais. Sua pesquisa, porém, mostrou que o chão dessas planícies era feito de uma camada com dezenas de metros de profundidade de sedimentos de composição semelhante à das areias das dunas equatoriais. Examinando a orientação das formas das dunas e outros relevos, ela e sua equipe reconstituíram a direção preferencial dos ventos em Titã, concluindo que as planícies da zona temperada devem mesmo ter sido preenchidas por sedimentos trazidos dos trópicos e dos polos por meio dos ventos.
“A investigação de Titã ainda está na infância”, diz Rosaly. “As melhores imagens têm uma resolução relativamente baixa e, mesmo assim, não vamos conseguir mapear toda a sua superfície até o final da missão em setembro de 2017.”
Artigos científicos
LOPES, R. M. C. et al. Nature, distribution, and origin of Titan’s undifferentiated plains. Icarus. v. 270, p. 162-82. 15 mai. 2016.
MALASKA, M. J. et al. Material transport map of Titan: The fate of dunes. Icarus. v. 270, p. 183-96. 15 mai. 2016.