Quando lecionava em uma escola técnica de ensino médio em Campinas, entre 2009 e 2015, a química Haira Gandolfi dizia aos alunos empenhados em seus trabalhos de conclusão de curso: “Se não estão entendendo bem um conceito ou uma técnica que pretendem utilizar em seus projetos, procurem um texto de divulgação científica que fale sobre o assunto; é uma ótima porta de entrada para textos acadêmicos mais densos”. Gandolfi se mudou para o Reino Unido, foi contratada em setembro de 2020 na Faculdade de Educação da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, e, além das aulas e pesquisas, leciona para professores do equivalente no Brasil aos ensinos fundamental, médio e técnico. “Aqui esse tipo de material é muito valorizado e utilizado, inclusive nos exames de acesso ao nível superior e em outras disciplinas, além de ciência.”
Escritas por jornalistas, as reportagens de Pesquisa FAPESP, que chega à edição de nº 300 este mês, procuram estimular estudantes e ajudar professores de ciência e de outras disciplinas a apresentar assuntos que serão aprofundados em livros didáticos. Outras publicações que tratam de ciência e tecnologia, como Superinteressante, Galileu, Ciência Hoje e Química Nova na Escola, também podem ter muitas utilidades na sala de aula.
Desde 2012, para promover o interesse pelos temas científicos e divulgar a produção de ciência feita no Brasil, a revista Pesquisa FAPESP envia gratuitamente para as bibliotecas de 3.600 escolas públicas de ensino médio do estado de São Paulo um exemplar impresso, todos os meses. Professores podem contar também com o site aberto e gratuito (www.revistapesquisa.fapesp.br) com reportagens, vídeos e podcasts.
“Usando Pesquisa FAPESP, consegui mostrar para os alunos os caminhos para confirmar ou rejeitar as hipóteses de uma pesquisa científica”, comentou o geógrafo e professor de geografia Pedro Henrique Ferreira Costa. No segundo trimestre de 2019, ele explorou 27 reportagens da revista sobre a formação do Universo com suas quatro turmas de sexto ano do Rainha da Paz, colégio privado da capital paulista. A atividade era parte da sexta versão do projeto trimestral sobre ficção científica, coordenado pelos professores de língua portuguesa.
Costa distribuiu os textos para os alunos, sem roteiro de leitura, e pediu que os lessem para a aula seguinte. Quando se reencontraram, muitos reclamaram que não haviam entendido nada. O professor propôs uma leitura coletiva de um dos artigos para discutir as partes mais importantes, distribuiu um roteiro de leitura, formou duplas com os alunos que leram os mesmos textos e acompanhou o debate entre eles. Na etapa seguinte, os alunos pesquisaram na internet sobre os assuntos das reportagens com que trabalhavam.
Em outra aula, os estudantes apresentaram e debateram os textos que haviam recebido. Na etapa final, também com a ajuda dos professores, escreveram seus próprios contos de ficção científica. Revisados pelos próprios alunos, com o acompanhamento das professoras de língua portuguesa Mara Dias e Vanessa Caires, os contos formaram um livro, lançado em dezembro de 2019.
Por sua vez, no início de 2020, o biólogo Fábio Falla deixou vários exemplares de Pesquisa FAPESP na sala de leitura da escola estadual Prof. Genézia Izabel Cardoso Mencacci, em Sorocaba, interior paulista. Quando as aulas começaram, ele pediu a suas duas turmas de ciências do sexto ano que procurassem a revista no intervalo entre as aulas – o curso é integral, das 7h15 às 16h – e resumissem uma reportagem que os interessasse. O professor ajudava com um roteiro básico, para identificar as ideias principais, a relevância do tema, o pesquisador e o local dos trabalhos apresentados nas reportagens. “Se não entendiam algum conceito, eles mesmos procuravam em outras fontes”, diz Falla. Os estudantes fizeram cinco resumos, com em média 10 linhas cada um, que ajudaram a formar a nota do bimestre.
Satisfeito com o resultado, embora frustrado por ter de parar o trabalho em março, quando as escolas fecharam por causa da pandemia, Falla concluiu que ainda há muito a fazer: “Em geral os alunos ainda veem os cientistas isolados do mundo. Precisamos apresentar o trabalho deles mais vinculado ao mundo real, para que a narrativa da ciência ganhe mais sentido”.
Precisamos apresentar o trabalho dos cientistas mais vinculado ao mundo real, para que a ciência ganhe mais sentido, comenta Falla
Em 2018 e 2019, a geógrafa e professora de geografia Mariana Doneux explorou com a turma de oitavo ano de um colégio particular de São Paulo uma reportagem sobre as comunidades quilombolas do Vale do Ribeira (ver Pesquisa FAPESP n° 232). “A reportagem apresenta as visões de diferentes pesquisadores sobre o modo de vida, as formas de cultivo agrícola e o histórico de lutas daquelas comunidades quilombolas”, diz. Doneux e seus alunos visitaram um dos quilombos da região, o de Ivaporunduva, e depois usaram a reportagem para conferir suas conclusões.
Graduado em química, Jemusu Takano fez diferente. Em 2020, como havia feito em 2019, em nome do Centro Educacional Rosa Maria Castanho, instituição privada da cidade de São Paulo também conhecida como Colégio Cermac, do qual é o coordenador pedagógico, ele adquiriu 95 assinaturas de Pesquisa FAPESP e incluiu a revista na lista de material didático dos alunos do ensino médio.
Em 2020, até a pandemia chegar, na aula semanal de Atualidades, os estudantes organizavam-se em grupos, escolhiam uma reportagem e preparavam uma apresentação para os colegas, em ciclos mensais: na primeira aula, formavam os grupos e escolhiam o assunto; na segunda, esboçavam as apresentações; na terceira e na quarta reservavam às exposições e aos debates.
Os trabalhos com a revista integram-se a outras atividades, como viagens de campo e projetos ambientais, como a coleta seletiva de resíduos. “Queremos colocar os alunos em contato com o mundo científico e mostrar que existe uma produção nacional nessa área”, acentua Takano.
“Descobri que posso usar as matérias on-line, o que facilita muito”, diz a biomédica Naiara Dejani. Em 2019, ela usou uma reportagem da revista sobre os tipos sanguíneos (ver Pesquisa FAPESP n°s 113 e 122) nas aulas de genética para as turmas do terceiro ano do ensino médio integrado ao técnico de biotecnologia no Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes) em Vila Velha. Um de seus propósitos era debater os efeitos dos casamentos consanguíneos.
Com doutorado e pós-doutoramento na Faculdade de Saúde Pública da USP, ela foi contratada em dezembro de 2019 na Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e continua usando as reportagens de Pesquisa FAPESP para manter os alunos atualizados, principalmente sobre a pandemia. “Debatemos os movimentos antivacina, a queda na adesão vacinal e o que poderia ser melhorado na gestão pública para facilitar o acesso às vacinas”, relatou. “Os estudantes foram muito participativos.”
Formação de professores
“Ao usar textos de divulgação científica, os professores precisam tomar cuidado para não passar informação errada e para adequar a linguagem ao nível de conhecimento dos alunos”, sugere Raiane Tavares Fortuna, professora da Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal. Em 2017, ao concluir o curso de licenciatura em ciências naturais na Universidade de Brasília (UnB), ela entrevistou 39 estudantes do quinto ao oitavo semestre do curso, preparado para formar professores, e concluiu que 87% responderam que consideravam essas publicações como material didático, 64% costumavam ler revistas desse tipo e 51% confundiam divulgação científica, dirigida a um público geral, com comunicação científica, expressa nas revistas científicas lidas por especialistas da mesma área que os autores dos artigos, como detalhado em um artigo de setembro de 2020 na revista Ciência em Foco.
A química Nara Nobre-Silva, professora no ensino médio e na licenciatura no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Goiano, ressalta dois requisitos dos textos de divulgação científica para serem usados como material didático: o didatismo e a vinculação com o cotidiano, que ajudam a atrair os estudantes. Em um artigo publicado em agosto de 2020 na Tear: Revista de Educação, Ciência e Tecnologia, ela e o químico Roberto Silva, da UnB, examinaram as revistas acadêmicas que descrevem formas de uso de textos de divulgação científica em sala de aula. Das nove revistas identificadas, duas se destacaram, Alexandria, da Universidade Federal de São Carlos (UFSC), e Ciência e Educação, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), respectivamente com 13 e 19 artigos sobre esse tema publicados de 2008 a 2018.
“Os textos de divulgação científica ainda são pouco utilizados na educação básica e no ensino superior”, concluiu Silva. Para mudar a situação, desde 2017 ele oferece uma disciplina sobre divulgação de ciência na pós-graduação em ensino de ciências da UnB para professores do ensino fundamental e médio.
Os textos de divulgação ajudam a mostrar que a ciência é um trabalho coletivo e está sujeita a incertezas, diz Figueirôa
A geóloga Silvia Figueirôa, da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (FE-Unicamp), há 30 anos na área de história e ensino de ciências, comenta: “Os professores podem aproveitar os textos de divulgação científica não apenas por seu conteúdo, mas também para mostrar que a ciência é um trabalho coletivo, está sujeita a incertezas e disputas, tem limites e adota métodos que variam de acordo com a área e a época.”
Em cursos para professores do Reino Unido interessados em usar materiais desse tipo em sala de aula, Gandolfi sugere: “É importante deixar de lado a visão celebratória da ciência, já que ninguém faz uma descoberta científica do nada, e explicitar para os alunos as estruturas econômicas, políticas e sociais que apoiam a produção de conhecimento científico”. Segundo ela, essa visão da ciência poderia explicar, por exemplo, por que as medidas para contenção da pandemia variam entre os países. Gandolfi explicitou sua argumentação em um artigo publicado em junho de 2017 na School Science Review.
Publicação é também utilizada como apoio nos cursos de graduação
As reportagens de Pesquisa FAPESP têm sido exploradas em provas do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e nos exames vestibulares para ingresso nas universidades públicas paulistas já há vários anos. O vestibular para as turmas de 2021 da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), por exemplo, incluiu duas perguntas com base em reportagens da revista, uma sobre biomas brasileiros e outra sobre caça de animais silvestres. A Fuvest, que seleciona alunos para a Universidade de São Paulo (USP), incluiu questão de química na primeira fase do vestibular realizado em 2019 baseada em nota a respeito de uma molécula criada em laboratório.
O uso da revista nos cursos superiores como apoio para aulas também não é incomum, dado que as reportagens tratam do conhecimento científico em todas as áreas do conhecimento. Pelo menos uma vez por mês, desde 1998, quando começou a lecionar na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), o agrônomo Marcelo Tabarelli lia uma reportagem de Pesquisa FAPESP para os estudantes do curso de biologia, para contextualizar o que ensinava nas disciplinas de ecologia ou botânica econômica. Ele recomendava a leitura da revista e deixava os exemplares à disposição em seu Laboratório de Ecologia Vegetal. “Algumas reportagens, como a sobre a trajetória do químico Otto Gottlieb [ver Pesquisa FAPESP nº296], e os perfis dos profissionais na seção Carreiras mostram as possibilidades de atuação dos profissionais dessa área de biologia”, comenta.
Quando começou a pandemia, Tabarelli adotou a revista mais intensamente nas aulas remotas da disciplina Evolução 2, na qual ele discute mudanças do uso de solo, como desmatamento, agricultura e fragmentação florestal. Em complementação às duas horas semanais de aula teórica, ele pediu para os 33 alunos escolherem cinco reportagens da revista, entre as 15 que ele havia selecionado, prepararem uma síntese, destacando os problemas apresentados e, a partir delas, proporem um projeto de pesquisa teórico ou prático, com base em um roteiro que ele havia distribuído. “As reportagens serviram para apresentar os problemas ambientais, contextualizando e exemplificando os conceitos”, diz ele.
Ética na ciência
”Sempre leio Pesquisa FAPESP para ver o que posso aproveitar nas aulas”, diz o biólogo Marcos César de Oliveira Santos, do Instituto Oceanográfico da USP. Das reportagens, ele destaca informações não só sobre animais, principalmente os mamíferos marinhos, sua especialidade, mas também sobre ética na ciência.
Foi o que fez em 2020, ao debater com seus alunos a condenação de um médico francês por ter omitido suas ligações com empresas, que levantaram suspeitas sobre a veracidade dos resultados de suas pesquisas sobre os efeitos dos poluentes na saúde humana (ver Pesquisa FAPESP no 259). Como parte da avaliação, seus alunos têm de apresentar um assunto científico para leitores hipotéticos, com pouco conhecimento na área, no estilo das revistas de jornalismo científico.
Editoras utilizam textos, fotos e infográficos da revista
Uma indicação do valor pedagógico da revista Pesquisa FAPESP é o crescente aproveitamento das reportagens em livros didáticos. O número de textos, fotos e infográficos licenciados para uso por editoras passou de 31 em 2010 para 99 em 2020.
Editora de ciências da natureza para o ensino fundamental 1 ao ensino médio da editora Moderna, Maiara Oliveira Soares aproveita trechos de reportagens da revista para reforçar com atualidades as versões dos livros didáticos voltadas aos professores. “Queremos que os professores tenham mais informações sobre os temas que ensinam e fiquem familiarizados com os textos de divulgação científica”, diz ela.
No grupo SM Educação, que também produz livros didáticos, a editora Isis Ridão Teixeira usou trechos de uma entrevista com o sociólogo da Universidade de São Paulo (USP) Reginaldo Prandi (ver Pesquisa FAPESP nº 72) para, em um livro de professor, “aprofundar o diálogo sobre a filosofia e o modo de vida dos Iorubá, os efeitos da diáspora africana e as permanências históricas no Brasil atual, especialmente em relação ao candomblé”, relatou. Já o livro de estudante dessa mesma coleção continha um mapa com a localização dos territórios ocupados pelos Iorubá hoje, uma foto retratando uma festividade em homenagem à Oxum na Nigéria e duas aquarelas de orixás feitas pelo artista brasileiro Jonas Tavares.
Segundo ela, a escolha de material complementar para os livros didáticos é cuidadosa. “Buscamos os textos em veículos confiáveis de divulgação científica e checamos as credenciais dos autores e as fontes de pesquisa”, diz. “Outro critério é a linguagem, que precisa ser acessível e, ao mesmo tempo, garantir a abordagem aprofundada sobre o tema, apresentando as características das pesquisas científicas que ele divulga.”
Jaqueline Paiva Cesar, coordenadora de Projetos Editoriais da Poliedro, comenta: “Pesquisa FAPESP ajuda a mostrar aos alunos que o Brasil produz ciência de qualidade. O tratamento dado à informação proporciona aos educadores um recurso didático importante para contextualizar conceitos e atualizar o conhecimento”.
Artigos científicos
FORTUNA, R. T. et al. A percepção dos licenciandos de ciências naturais sobre o uso pedagógico de revistas de divulgação científica. Ciências em Foco. v. 13, e020011, 1-15. 12 set. 2020.
NOBRE-SILVA, N. A. e SILVA, R. R. A circulação de ideias realizada por meio das atividades de divulgação científica em sala de aula: Um estudo das publicações em periódicos brasileiros. Tear: Revista de Educação, Ciência e Tecnologia. v. 9, n. 2, p. 1-20. 12 ago. 2020.
GANDOLFI, H. E. Teaching about nature of science in secondary education: A view from multicultural classrooms. School Science Review. v. 98, n. 365, p. 77-84. jun. 2017.