A genética acena com uma nova forma de diagnóstico da neurocisticercose, a mais importante doença parasitária do sistema nervoso central. A moléstia se caracteriza pela instalação no cérebro de uma larva adquirida pela ingestão de alimentos contaminados com ovos da Taenia solium e é praticamente inexistente nos países desenvolvidos. Mas emerge como um grande problema de saúde pública em amplas regiões da América Latina, da Ásia e da África, produzindo males neuropsiquiátricos e matando entre 15% e 25% de suas vítimas. No Brasil é endêmica em várias regiões e atinge presumíveis 140 mil pessoas. Não se conhece ao certo o espectro da doença, em boa medida, por dificuldades de diagnóstico. Em geral, só se pesquisa a neurocisticercose em pacientes que procuram ambulatórios de neurologia com sintomas como crises de epilepsia e distúrbios psiquiátricos. Mas estudos recentes indicam que a incidência é elevada até mesmo em estados supostamente livres da moléstia. Há testes capazes de detectar anticorpos produzidos contra o invasor, mas nenhum deles é específico a ponto de atestar ou excluir a doença. O diagnóstico somente é conclusivo com a ajuda de imagens de ressonância magnética ou de tomografia computadorizada, que apontam um ou vários cistos, às vezes muitos, a povoar regiões do cérebro do paciente. A boa novidade é que a pesquisa genética acena com um teste barato capaz de detectar vestígios do DNA do verme em amostras do líquido cefalorraquiano, também conhecido como líquor, aquele que envolve e protege o cérebro.
Uma equipe liderada pelo especialista em genética molecular Emmanuel Dias Neto, do Laboratório de Neurociências da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), demonstrou pela primeira vez que o DNA do invasor está presente no líquor. E desenvolveu um exame de detecção molecular da presença do parasita baseado na amplificação do DNA pelo método PCR (reação de polimerase em cadeia). O teste foi criado em parceria com pesquisadores do Departamento de Neurologia da FMUSP, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP e da Faculdade de Medicina da USP em Ribeirão Preto, num projeto financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e pela Associação Beneficente Alzira Denise Hertzog Silva (Abadhs). Ao avaliar 30 pacientes com a neurocisticercose, o novo método exibiu uma sensibilidade de 96,7% na detecção do parasita – deu positivo para 29 deles. Um grupo de controle, de dez pacientes sem a doença, atestou sua eficiência. A equipe está submetendo o achado à publicação numa revista científica e saiu em busca da patente. “Já temos uma empresa interessada”, diz Emmanuel. A pesquisa será apresentada na dissertação de mestrado de Carolina Rodrigues Almeida, orientada por Emmanuel no Departamento de Psiquiatria da FMUSP. O advento do teste promete expandir o diagnóstico da neurocisticercose, oferecendo exames precisos e mais baratos que o diagnóstico por imagem.
Os acenos da genômica atingem outros flancos da doença. A equipe de Emmanuel lidera ainda um trabalho pioneiro na identificação de genes funcionais do cisticerco, a forma larval que causa a neurocisticercose. Já foram identificados 2.880 ESTs – fragmentos de genes ativos que, em inglês, são denominados Expressed Sequence Tags, segundo uma técnica concebida pelo pesquisador Andrew Simpson e pelo próprio Emmanuel, quando trabalhavam no Instituto Ludwig de Pesquisa sobre o Câncer. A metodologia brasileira recebeu o nome de Orestes (Open Reading Expressed Sequence Tags), que, em português, significa algo como etiquetas da fase aberta de leitura de seqüências expressas. Essa técnica já foi usada no Projeto Genoma do Câncer e também no estudo do genoma do Schistosoma mansoni, causador da esquistossomose. “Fiquei surpreso quando descobri que não havia nenhuma seqüência do tipo EST do parasita que causa a neurocisticercose”, diz Emmanuel, que se debruçou sobre o tema quando foi trabalhar no Departamento de Psiquiatria da FMUSP. “Já encontramos grande quantidade de novos genes do parasita, que incluem candidatos para desenvolvimento de terapias e testes”, diz Carolina Almeida.
A possibilidade de ampliar o diagnóstico da neurocisticercose é essencial para o combate à moléstia. “A doença é gravíssima e enfrenta muitos problemas no campo da prevenção, a começar pelo fato de que não é obrigatório notificar os casos”, diz Vicente Amato Neto, professor titular do Departamento de Doenças Infecciosas e Parasitárias da FMUSP. “Aparece com muita freqüência em ambulatórios neurológicos que tratam dos principais sintomas, mas é difícil saber a real ocorrência na população, porque não se busca detectá-la.” Estudos recentes mostram que o espectro é mesmo maior do que se imaginava. Um exemplo é a situação do Piauí, estado que não integrava o mapa de incidência da moléstia no Brasil. Na verdade, parecia livre da moléstia apenas porque ninguém se dera ao trabalho de procurar a neurocisticercose ali. Entre 1999 e 2001, uma equipe de pesquisadores de três estados liderada por Alberto Novaes Ramos Júnior, do Departamento de Saúde Comunitária da Universidade Federal do Ceará, fez uma ampla investigação sobre doenças parasitárias em João Costa, um paupérrimo município de 3 mil habitantes nas cercanias do Parque Nacional Serra da Capivara. Foram identificadas 169 pessoas com sintomas compatíveis com a neurocisticercose humana, como cefaléias e crises epiléticas. Exames imunológicos detectaram anticorpos contra o cisticerco em 27 delas. A grande lição da pesquisa no Piauí é que a realidade epidemiológica da doença no Brasil permanece desconhecida, por ser pouco investigada.
Santa Catarina também começa a desvendar a real dimensão da neurocisticercose. A análise de 143 mil exames de tomografia computadorizada realizados na década de 1990 em diferentes regiões do estado revelou uma incidência de 1,2% de neurocisticercose. Num universo mais específico, de 1.849 pacientes atendidos com sintomas neurológicos, a porcentagem de exames positivos chegou à ordem de 30%. Duas regiões despontaram no ranking dos casos, as dos municípios de Lages e de Chapecó. “São regiões onde a criação suína é tradicional. Mas os casos costumam envolver pessoas de municípios pobres das redondezas, onde a criação é feita de modo rudimentar”, diz Mario Steindel, professor do Departamento de Microbiologia e Parasitologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). A pesquisadora Maria Márcia Imenes Ishida, também da UFSC, estuda o entorno do município de Lages. Já foram coletadas 400 amostras de sangue, que estão sendo avaliadas em busca de anticorpos. O objetivo é realizar um levantamento epidemiológico no local para determinar a prevalência e identificar os fatores de risco associados à parasitose, tanto na população rural quanto na urbana de Lages.
Hermafrodita
A ignorância sobre as formas de contágio conspira a favor da proliferação. Em geral associa-se a neurocisticercose à carne suína e se imagina que basta evitar o consumo de receitas à base de porco, além de seus derivados, para ficar a salvo. Não é bem assim. Quando um indivíduo come carne de porco contaminada pelos cisticercos, as larvas do parasita, existe o risco de pegar outra doença, a teníase. Uma vez ingeridos, os cistos incrustados na musculatura suína transformam-se, dentro do intestino humano, na Taenia solium, a forma adulta do parasita, conhecida como tênia ou solitária. Trata-se de um verme com o corpo alongado, em forma de fita. A tênia é hermafrodita e fabrica ovos aos milhares, que são liberados nas fezes humanas. A cada dia, o hóspede indesejável do intestino despeja entre 50 mil e 60 mil microscópicos ovos. O ciclo da teníase se fecha quando o porco ingere água ou alimentos que tiveram contato com as fezes contaminadas do homem. No organismo suíno, esses ovos irão converter-se em novas larvas que vão povoar sua carne e, por fim, infectar o homem que se alimentar dela. A teníase pode causar retardo no crescimento das crianças e provocar prejuízos a adultos, como perda de capacidade de trabalho. Mas tem tratamento relativamente simples: a administração de vermífugos específicos é capaz de eliminá-la do organismo. Um outro verme, a Taenia saginata, parasita de bovinos, também pode causar a teníase em seres humanos. Mas apenas a Taenia solium, a tênia do porco, participa do ciclo evolutivo da neurocisticercose.
Cozinheira
Todo cuidado é pouco. Um caso clássico na literatura médica foi publicado em 1992 na revista científica The New England Journal of Medicine, na qual quatro judeus ortodoxos de uma mesma família nova-iorquina receberam o diagnóstico de neurocisticercose. Por razões religiosas, eles jamais comiam carne de porco. E, nos Estados Unidos, a doença chegou a ser considerada erradicada. Uma pesquisa capitaneada pelo parasitologista Peter Schantz, do Centro de Prevenção e Controle de Doenças (CDC) de Atlanta, vinculado ao governo norte-americano, investigou todas as pessoas ao redor das vítimas e desvendou o mistério. Uma cozinheira, imigrante recém-chegada do México, sofria de teníase e tinha hábitos precários de higiene. Foi ela a responsável pela contaminação da família para quem trabalhava.
No porco, os cistos costumam instalar-se nos músculos e não representam um perigo à vida do animal. Já no homem, a larva pode integrar-se aos músculos ou crescer bem embaixo da pele, onde não causa grandes prejuízos, exceto os estéticos. Há casos em que uma multidão de cistos se agrupa na região subcutânea da face, causando deformações. Em outras situações, bem mais graves, o cisto invade o globo ocular, podendo levar à deficiência visual. “Antigamente, clínicas oftalmológicas apresentavam uma grande casuística, porque é relativamente fácil para um oftalmologista identificar o cisto dentro do olho”, diz Vicente Amato. Mas o verme tem preferência por localizar-se no sistema nervoso central, endereço de 90% dos invasores. Por isso a doença é chamada neurocisticercose. Trata-se da principal causa de epilepsia nos países em desenvolvimento. No Brasil é responsável por cerca de 3% dos atendimentos em serviços de neuropsiquiatria.
Depois que chegam ao aparelho digestivo, os ovos atravessam a parede do intestino e penetram na corrente sangüínea. Quando migram para o sistema nervoso central, atingem primeiro pequenos vasos sangüíneos entre o tecido nervoso. A neurocisticercose pode apresentar-se sob duas formas: a cística, conhecida como Cysticercus cellulosae, e, em cachos com numerosas vesículas, denominada Cysticercus racemosus. Diz-se que a infecção é ativa quando os cistos ainda estão vivos, o que dura em média seis anos, e inativa quando os vermes já morreram e encontram-se calcificados. A doença produz danos específicos, a depender do lugar onde se instala, do tamanho alcançado por cada lesão (de 2 a 43 milímetros) e da resposta imunológica do organismo humano. É comum que o crescimento do verme pressione regiões do cérebro e bloqueie a passagem do líquido cefalorraquiano. Esse líquido é produzido continuamente e qualquer problema que atrapalhe sua absorção e reposição altera a pressão intracraniana, com sérias conseqüências neurológicas. Pode causar seqüelas gravíssimas e até mesmo a morte.
A reação inflamatória produzida pelo organismo também produz malefícios. Os primeiros sintomas podem ser pouco específicos, como dores de cabeça, convulsões, perda de visão ou da capacidade motora. Já as seqüelas cerebrais podem levar a quadros como crises epiléticas, hipertensão craniana, hidrocefalia, meningite crônica e distúrbios psiquiátricos. Estima-se que apenas 10% dos casos são assintomáticos. Segundo levantamento de pesquisas sobre a doença no Brasil feito pela médica Svetlana Agapejev, do Departamento de Neurologia e Psiquiatria da Faculdade de Medicina de Botucatu (Unesp), a maioria das vítimas no Brasil são homens, com idade entre 31 e 50 anos. Os exemplos mais graves, contudo, concentram-se em mulheres entre 21 e 40 anos, habitantes de áreas urbanas, em geral com hipertensão intracraniana. Não se sabe a razão da diferença. Especula-se que exista algum fator hormonal a interferir na evolução da moléstia.
As larvas sobrevivem no organismo humano por um período de três a seis anos. Antigamente era relativamente comum tentar debelar a doença cirurgicamente. Comum e pouco eficaz. Hoje as operações são indicadas apenas em casos muito específicos, em que a lesão é isolada e se encontra em regiões acessíveis do cérebro. Mas, sobretudo, recorre-se a cirurgias para amenizar os sintomas, como fazer drenagem em casos de hidrocefalia. Da mesma forma, há tratamentos ministrados de acordo com a doença desenvolvida, como corticóides, no caso de meningite, ou anticonvulsivos, se ocorrer epilepsia, além de antiinflamatórios e analgésicos. Alguns casos são tratados com dois medicamentos, o albendazol e o praziquantel, capazes de matar cisticercos instalados em determinadas áreas acessíveis do sistema nervoso central. A terapia, porém, é controversa. Ocorre que o cisticerco, mais cedo ou mais tarde, morreria mesmo – sem o poder de deixar herdeiros – e o seu extermínio produzido por medicamentos pode desencadear um complicado processo inflamatório. “Um estudo mostrou que pacientes tratados com o albendazol desenvolveram sintomas mais amenos que os que não receberam o remédio”, diz Osvaldo Takayanagui, professor de Neurologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da USP.
Em 1993, a Força-Tarefa Internacional para Erradicação de Doenças, ligada à Organização Mundial da Saúde (OMS), classificou a neurocisticercose como um raro exemplo de moléstia que poderia ser eliminada no planeta, entre 93 males infecciosos e parasitários estudados. A doença foi erradicada de países como o Japão, Canadá e na maior parte da Europa Ocidental. Nos Estados Unidos registram-se hoje mais de mil casos por ano. O problema ressurgiu graças a fluxos migratórios da América Latina, onde a moléstia atinge 350 mil pessoas em 18 países. No México, a neurocisticercose é o diagnóstico final de 10% das autópsias realizadas em hospitais neurológicos. Permanece um problema grave de saúde pública na África, onde são escassos os estudos epidemiológicos, e na Ásia, sobretudo na China e na Índia, mas também na Tailândia, nas Filipinas e na Coréia do Sul. Estima-se que 50 milhões de indivíduos estejam infectados pelo complexo teníase/cisticercose no mundo. Cinqüenta mil morrem a cada ano.
Predileção
Um programa eficiente de controle da doença inclui, em primeiro lugar, o monitoramento da qualidade da carne suína. Hoje, a inspeção sanitária feita no Brasil procura vestígios das larvas em órgãos como o coração, a língua, o diafragma e músculos, locais onde os cisticercos têm predileção em se instalar. Mas o verme também pode estar em outros órgãos, daí a importância de sempre cozinhar bem a carne de porco. O ideal seria submeter os porcos abatidos a exames imunológicos, que são capazes de encontrar vestígios de anticorpos contra o cisticerco. Segundo diretrizes da Organização Pan-americana da Saúde (Opas), além de monitorar a carne, é importante criar um sistema de notificação compulsória dos casos de teníase, inclusive com visitas a familiares das vítimas, para deter o contágio no ambiente doméstico. Também é vital fiscalizar a qualidade de verduras e exigir a apresentação de exame parasitológico de fezes na renovação da carteira de saúde de qualquer profissional que manipule alimentos, além, obviamente, de melhorar as condições sanitárias da população. A Opas também sugere, como medida extrema, administrar vermífugo em todas as pessoas de uma comunidade bastante atingida pela doença.
Poucos estados brasileiros, como Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, dispõem de algum tipo de programa de prevenção. O município de Ribeirão Preto, no interior paulista, tem um dos mais bem articulados esquemas de combate à doença no país, deflagrado pela elevada incidência da doença naquela região nas últimas décadas. Além da notificação compulsória dos casos, até mesmo a qualidade das verduras vendidas em feiras e mercados foi avaliada. Revelou-se uma elevada contaminação por coliformes fecais, sinal de falta de higiene, mas nenhum vestígio de ovos da Taenia solium. Desse programa saiu uma rara estatística epidemiológica confiável sobre a doença no Brasil. Há 74,1 casos de neurocisticercose em Ribeirão Preto para cada grupo de 100 mil habitantes. “Não dá para dizer se é muito ou é pouco, pela falta de parâmetros de outras localidades para comparar”, diz o médico Osvaldo Takayanagui. A doença, apesar da eficiência do programa, mostra fôlego. Cerca de 25% das vítimas apresentaram cisticercos ainda vivos, num sinal de que a doença fora contraída num passado bem recente.
Peptídeos
Uma promessa ainda distante é o desenvolvimento de uma vacina capaz de bloquear o ciclo da teníase e da neurocisticercose nos hospedeiros. Há estudos no México de uma vacina baseada em três peptídeos sintéticos compartilhados pela Taenia solium e a Taenia crassiceps, parasita de raposas. O grande entrave, nesse caso, é econômico: o custo de sintetizar esses peptídeos é elevado. No ano passado, pesquisadores chineses concluíram que o antígeno cC1, obtido da Taenia crassiceps, é um bom candidato ao desenvolvimento de uma vacina contra a Taenia solium. Em 1999, um pesquisador australiano conseguiu desenvolver uma vacina, com o uso combinado de três diferentes antígenos, que atingiu um nível de proteção de 93% em porcos propositadamente infectados. Essa vacina talvez não seja eficiente no Brasil, dada a variabilidade genética da Taenia solium ao redor do planeta. “É preciso concentrar esforços em se conhecer outros genes e proteínas do parasita para expandir o potencial de antígenos a serem testados”, diz Emmanuel Dias Neto. O Brasil, com a experiência que vem acumulando na ciência genômica, tem uma importante contribuição a dar nesse campo.
Cuidados que os médicos recomendam
– Comer carne de porco e seus derivados bem cozidos e adquiridos em estabelecimentos sujeitos à fiscalização sanitária.
– As verduras devem ser muito bem lavadas antes de consumidas.
– Beber somente água filtrada ou fervida.
– Lavar as mãos antes das refeições, de preparar alimentos e após o uso do sanitário.
– Fazer exames periódicos de fezes, procurando tratamento se necessário.
– Dar destinação adequada às fezes humanas, através de fossas sépticas e rede de esgoto.