Uma pele artificial idêntica à humana, que reproduz os mesmos tecidos biológicos e pode ser utilizada para avaliar a toxicidade e a eficácia de novos compostos para fármacos e produtos cosméticos, foi desenvolvida por pesquisadores da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo. Células retiradas de peles de doadores submetidos a cirurgias plásticas reparadoras são a matéria-prima utilizada para a construção da pele artificial em laboratório. “Desenvolvemos um modelo que mimetiza a pele humana com toda a sua estrutura de epiderme e da derme”, diz a professora Silvya Stuchi Maria-Engler, coordenadora da pesquisa.
A epiderme, a camada mais externa da pele, é obtida por meio da cultura de queratinócitos, células que realizam a síntese da queratina e respondem pela proteção, e dos melanócitos, células responsáveis pela produção de melanina e pigmentação da pele. A derme, a camada abaixo da epiderme, é reconstituída a partir da cultura de fibroblastos humanos – responsáveis pela produção de fibras e capazes de sintetizar o colágeno e a elastina – cultivados em gel de colágeno. Essas estruturas celulares possuem características de crescimento e morfologia muito similares à pele humana, o que aumenta a uniformidade e reprodutibilidade dos testes de medicamentos e de cosméticos.
“O nosso modelo pode sanar uma necessidade do mercado”, diz Silvya. No caso dos cosméticos, por exemplo, as empresas fabricantes enviam os princípios ativos de novos produtos para serem testados no exterior. Isso porque, desde o início de 2009, uma diretriz da Comunidade Europeia indica que nenhum produto cosmético poderá ser avaliado quanto à segurança e eficácia em animais de laboratório. Para substituição dos animais, os testes que garantem a segurança e eficácia de novos princípios ativos e formulações devem ser realizados em modelos in vitro, com células isoladas, ou preferencialmente em modelos biomiméticos, como o que simula a pele humana.
Novas moléculas
Além da indústria cosmética, a farmacêutica também poderá dispensar alguns testes em animais com o uso de sistemas biomiméticos de pele. Potenciais fármacos para tratamento de doenças como o melanoma, um tipo agressivo de câncer de pele, poderão ser testados com o modelo desenvolvido na USP. Embora tenha baixa incidência no Brasil, a doença apresenta elevada taxa de letalidade. Nos estágios iniciais as chances de cura são altas, mas quando descoberto tardiamente, por ser um tipo de tumor bastante resistente aos quimioterápicos usados no tratamento, a sobrevida dos pacientes é baixa. “Nossos estudos estão voltados para a busca de novas moléculas que ataquem essa célula tumoral, tentando subverter os efeitos de resistência ao medicamento”, diz Silvya.
Na Europa e nos Estados Unidos existem alguns modelos de pele artificial à venda, produzidos pelas empresas Episkin e SkinEthic, subsidiárias da francesa L’Oréal, e pela MatTek, do estado de Massachusetts. Mas há dificuldades de transporte e importação, porque é um material vivo e, portanto, perecível. “A pele que desenvolvemos é idêntica à produzida no exterior”, diz Silvya. O modelo desenvolvido na USP emprega células humanas provenientes de culturas primárias, cujo poder proliferativo contribui para a diferenciação das camadas da epiderme in vitro. Isso vai permitir a produção de kits sob encomenda, de acordo com a necessidade do cliente, pois é possível reproduzir a pele integralmente ou somente a derme ou a epiderme.
Os produtos encontrados no mercado internacional empregam linhagens celulares estabelecidas. Embora sejam de manipulação mais fácil e não dependam de doadores, como passaram por alguns processos de transformação elas não se diferenciam em múltiplas camadas, como as células primárias. “No nosso produto, as transformações são minimizadas pelo curto tempo de cultivo no laboratório”, diz Silvya. Nos kits sob encomenda podem ser incluídos, por exemplo, melanócitos, células que em geral estão ausentes dos produtos que estão no mercado. Se o objetivo for avaliar os efeitos de novas moléculas destinadas à pigmentação da pele, melanócitos que refletem as diferentes etnias poderão ser incorporados à cultura celular para produzir a pele artificial pigmentada. Na avaliação de quimioterápicos antimelanoma, a pele poderá ser produzida com o melanoma, simulando, in vitro, o processo de invasão tumoral.
Uma das possibilidades futuras para a pele artificial desenvolvida na USP é utilizá-la em cirurgias reparadoras para pacientes queimados ou com lesões crônicas, uma tendência que tem crescido em outros países. Nos Estados Unidos, um grupo de pesquisadores liderados pelo professor James McGuire, da Universidade Temple, na cidade de Filadélfia, tem utilizado com sucesso a pele artificial para tratamento de feridas crônicas em pacientes diabéticos. Na Nova Zelândia, a tendência é incorporar substâncias como mel e partículas de prata, que apresentam, respectivamente, propriedades antissépticas e antibacterianas aos enxertos feitos a partir do colágeno.
A pesquisa que resultou na pele artificial foi iniciada em 2005, quando a professora Sílvia Berlanga de Moraes Barros, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas (FCF) da USP, testava compostos com atividade protetora contra os raios ultravioleta do tipo UVB, os mais lesivos para a pele. Silvya Stuchi, na época recém-contratada como professora associada da FCF, já havia enveredado desde o seu mestrado por um caminho que lhe forneceu o conhecimento e os instrumentos necessários para desenvolver um modelo de pele artificial. “O resultado da minha tese foi uma estrutura muito semelhante à derme, que tinha como base o colágeno de tendão de camundongos”, diz a pesquisadora.
Depois de concluir o mestrado e o doutorado na Unicamp, Silvya foi para os Estados Unidos fazer o pós--doutorado com bolsa da FAPESP. Lá ficou por pouco tempo, o suficiente para aprender a fazer vasos sanguíneos artificiais. Ao regressar, participou do grupo da pesquisadora Mari Cleide Sogayar, do Instituto de Química da USP, que trabalha em um projeto de transplante de células para pacientes diabéticos. Dois anos depois, passou no concurso da Faculdade de Ciências Farmacêuticas. Como já sabia fazer a derme, ela propôs à professora Sílvia Berlanga testar os compostos para proteção solar inicialmente nesse modelo. “Depois tentaria reorganizar o epitélio, um tecido coeso, estratificado, formado por várias camadas de queratinócitos, e em seguida seriam adicionados os melanócitos, reproduzindo a unidade dermo-epidérmica e assim teríamos a pele”, relata. A grande dificuldade para transpor essa etapa era conseguir dois tipos de células humanas específicas, os melanócitos e os queratinócitos. “Só tínhamos os fibroblastos, que podem ser comprados nos bancos de células”, diz.
A oportunidade surgiu com um convite para passar um ano no Departamento de Dermatologia da Universidade de Michigan, nos Estados Unidos, para trabalhar com medicamentos antitumorais para a pele, uma linha de pesquisa que já vinha desenvolvendo. “Fui trabalhar com a professora espanhola María Soengas, que hoje é uma das líderes acadêmicas nessa área”, diz Silvya. Na época, María Soengas, que atualmente chefia o grupo de melanoma do Centro Nacional de Investigações Oncológicas (CNIO) da Espanha, fez uma parceria com a universidade norte-americana para desenvolver pesquisas com esse tipo de tumor. Recentemente, o grupo da pesquisadora espanhola identificou um composto sintético capaz de desencadear a autodestruição em massa de células de melanoma, o que abre as portas para fabricação de novos medicamentos.
Modelo brasileiro
Durante o período que passou em Michigan, Silvya aprendeu a isolar e a produzir uma cultura de queratinócitos e melacinócitos de pacientes humanos a partir da pele de prepúcio de recém-nascidos. “É um material com capacidade proliferativa muito grande”, relata. E foi além no seu objetivo. Ela propôs à pesquisadora María Soengas reproduzir a pele artificial seguindo o modelo brasileiro, desenvolvido com base em um projeto feito em parceria com os pesquisadores Luisa Lina Villa e Enrique Boccardo, do Instituto Ludwig de Pesquisa sobre o Câncer, em São Paulo. “O nosso objetivo inicial era estudar novos fármacos em melanoma, mas percebemos que a indústria cosmética brasileira precisava da pele que desenvolvemos para testar novos princípios ativos”, diz Silvya.
Na linha de pesquisa de novos fármacos, o grupo da professora Sílvia Berlanga já testou na pele artificial uma nova molécula isolada de uma planta da flora brasileira com potencial quimioterápico. “No lugar do melanócito é colocado o melanoma”, explica Silvya. “Com a aplicação da nova molécula foi observada uma regressão do melanoma in vitro.” Os dados, que estão sendo preparados para a publicação, constam da tese da doutoranda Carla Brohem.
Algumas empresas já procuraram o grupo de pesquisa da USP para estabelecer parcerias, mas até o momento nenhum acordo foi formalizado. “Estamos preparados para fazer testes com a pele artificial, mas não de forma sistemática nem em escala industrial.” Para isso, o modelo precisa ser validado de acordo com os padrões internacionais. Até agora, o grupo de pesquisa da Faculdade de Ciências Farmacêuticas recriou a pele artificial com células provenientes do banco da Universidade de Michigan. Para suprir a demanda futura, foi estabelecida uma parceria com o Hospital Universitário da USP. “Quando for aprovada pelo comitê de ética, já que se trata de patrimônio genético humano, vamos receber a pele descartada em cirurgias plásticas reparadoras”, diz a pesquisadora.
O Projeto
Geração de peles artificiais humanas e melanomas invasivos como plataforma para testes farmacológicos (nº 08/58817-4); Modalidade
Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa; Coordenadora Silvya Stuchi Maria-Engler – USP; Investimento R$ 145.597,39 (FAPESP)