O monitoramento contínuo da pressão intracraniana (PIC) é uma necessidade médica no tratamento de pacientes com problemas neurológicos graves, aqueles que demandam cuidados intensivos ou são submetidos a neurocirurgias. São pessoas vítimas de hidrocefalia, traumatismos cranianos, acidente vascular cerebral (AVC) ou tumor no cérebro. Uma pesquisa em desenvolvimento na Universidade Positivo, em Curitiba, no Paraná, pretende disponibilizar o primeiro sensor invasivo feito no mundo capaz de gerar informações em tempo real da PIC e viabilizá-las por conexão de internet via Wi-Fi a smartphones e computadores da equipe médica.
“A proposta é levar os benefícios da conectividade ao dia a dia dos neurologistas. O dispositivo projetado por nós proporcionará agilidade na obtenção de informações críticas e dará mais segurança e conforto aos pacientes”, diz o neurocirurgião oncológico Erasmo Barros da Silva Junior, idealizador do estudo que está sendo desenvolvido no âmbito do Programa de Pós-graduação em Biotecnologia Industrial (PPGBiotec) da Positivo. A iniciativa tem parceria do Instituto de Neurologia de Curitiba e das empresas paranaenses Orakolo Tecnologia e BMR Medical.
Apesar de existirem sensores não invasivos que monitoram a PIC por meio de indicadores indiretos (ver box), os sensores invasivos, implantados diretamente no cérebro, são os únicos que medem diretamente a pressão craniana calibrada em milímetros de mercúrio (mmHg), a unidade de medida da pressão. Um paciente é considerado em condições normais quando a PIC está entre 5 e 15 mmHg. Registros acima de 20 mmHg requerem atenção.
“Em circunstâncias de alto risco, principalmente entre pacientes que passam por neurocirurgias, o sensor invasivo é insubstituível”, reconhece o neurologista Fabiano Moulin, professor e médico do pronto-socorro e da Unidade de Terapia Intensiva (UTI) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), estudioso dos métodos não invasivos.
O monitoramento da PIC classificado como padrão ouro, ou seja, a referência na comunidade médica, é realizado por meio do implante de um pequeno sensor nos ventrículos cerebrais, cavidades internas do órgão, ou no córtex cerebral, a camada externa. O dispositivo é ligado por cabos a um equipamento posicionado nas proximidades do leito onde é feita a leitura da pressão. “Os cabos são um incômodo para o paciente e fonte de insegurança. Um movimento mais brusco pode desconectá-los do monitor. Outra desvantagem é que os cabos podem ser indutores de bactérias e gerar infecções”, descreve Barros.
Gustavo Benke / Revista Pesquisa FAPESPProtótipo do sensor de Curitiba: a caixa preta abriga o circuito eletrônico, o sistema Wi-Fi e a bateria; o tubo com o cateter faz a coleta de dados da PIC. O cabo branco pertence ao sensor convencional usado para fazer a medida comparativaGustavo Benke / Revista Pesquisa FAPESP
O sensor em desenvolvimento na Universidade Positivo não é influenciado por movimentos nem pela posição do paciente, uma vez que não será conectado por cabos a um monitor. Os dados coletados serão encaminhados via Wi-Fi a um servidor em nuvem acessível por meio de aplicativo de smartphone ou computador.
A primeira versão do dispositivo implantável foi projetada com dois componentes: um tubo com um cateter para coleta de dados da PIC, medindo 35 mm de comprimento por 3,5 mm de diâmetro, e uma peça quadrada com o circuito eletrônico responsável pela comunicação via Wi-Fi. Este último item, com 34 mm de lado por 15 mm de espessura, continha chipset (conjunto de chips), placa-mãe e bateria de polímero de íon de lítio recarregável.
O sensor invasivo está sendo desenvolvido em fibra óptica, o que proporciona uma vantagem importante sobre os tradicionais sensores eletromecânicos existentes no mercado. Como a fibra óptica é imune à interferência eletromagnética, o aparelho não precisa ser retirado e reinstalado para a realização de exames de ressonância magnética, comuns em pacientes com problemas neurológicos graves.
Validação em porcos
Os estudos para desenvolvimento do sensor e transmissão de dados estão em fase de validação pré-clínica, com ensaios em animais. Na primeira etapa da pesquisa, finalizada no início do ano, o dispositivo foi implantado em porcos por 120 minutos e os indicadores da pressão intracraniana captados foram comparados aos obtidos por um equipamento padrão, conectado por cabo no mesmo animal. Os resultados da comparação entre os sensores, considerados compatíveis, foram publicados em artigo científico na edição de março da revista Neurosurgery.
Uma segunda etapa da pesquisa pré-clínica, ainda sem data para ser iniciada, prevê o implante em um animal vivo por um período de 7 a 10 dias, tempo necessário para entender a eficiência da monitorização prolongada. Normalmente, o acompanhamento com sensores invasivos em pacientes neurológicos graves é realizado durante alguns dias, no máximo duas semanas.
O passo seguinte da pesquisa é a avaliação em humanos. Tudo correndo bem, a expectativa de Barros é que o sensor Wi-Fi se torne uma realidade de mercado em um prazo de cinco anos. Antes, precisará obter a aprovação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Dois modelos de sensores de pressão intracraniana sem fio já estão disponíveis no mercado global. Um foi desenvolvido pela empresa alemã Raumedic AG e outro pela norte-americana Branchpoint Technologies. Os equipamentos atuais, porém, não têm conexão Wi-Fi e utilizam um aparelho dedicado que depende da aproximação com o crânio do paciente para a obtenção dos dados captados pelo sensor implantado. O custo dos dispositivos comerciais, segundo levantamento de Barros, está entre US$ 12 mil e US$ 15 mil.
O dispositivo em desenvolvimento na Positivo passará por uma revisão em seu design para uma miniaturização. Sendo assim, seus custos de produção ainda não foram definidos. Segundo o médico cirurgião digestivo Marcelo de Paula Loureiro, professor da PPGBiotec e orientador de Barros no doutorado, a proposta de trabalho da equipe de pesquisadores da Universidade Positivo é que o sensor Wi-Fi tenha um preço final que lhe permita concorrer com os sensores conectados com cabo. Esses modelos custam entre R$ 1 mil e R$ 5 mil por unidade descartável.
Loureiro avalia que a pesquisa para o desenvolvimento de sensores de fibra óptica para medir a pressão conectados por Wi-Fi a smartphones e computadores não beneficiará apenas a área de neurologia. “Será possível utilizar o mesmo conceito para desenvolver sensores para serem usados para medir a pressão do tórax, do abdome, da bexiga e dos olhos”, exemplifica.
O neurocirurgião André Giacomelli Leal, presidente eleito da Academia Brasileira de Neurocirurgia (ABNc), avalia que a possibilidade de obter informações em tempo real de pacientes neurológicos sem que seja necessário o deslocamento até a sala de UTI irá gerar um benefício imenso ao trabalho do médico. “Se tudo der certo, vamos ganhar tempo e com isso poderemos ser mais proativos. O uso da tecnologia vai proporcionar maior segurança na assistência a pacientes graves”, comenta.
Empresa brasileira criou o primeiro sensor não invasivo Lançado em 2019, deve chegar ao mercado internacional ainda este anoO primeiro sensor não invasivo para monitoramento de variações de pressão (PIC) e complacência intracraniana (CIC) foi desenvolvido pela empresa brasileira brain4care com apoio da FAPESP. O dispositivo chegou ao mercado nacional em 2019 (ver Pesquisa FAPESP nº 280) e é utilizado em comodato por mais de 50 hospitais e clínicas a um custo mensal de até R$ 5,5 mil por unidade.
A tecnologia da brain4care foi liberada em dezembro de 2021 para uso comercial nos Estados Unidos pela Food and Drug Administration (FDA), a agência federal de drogas e alimentos norte-americana. A expectativa dos gestores da empresa é de que o lançamento comercial ocorra ainda em 2023. A FDA autorizou o uso do aparelho com restrições. Ele não pode ser utilizado por menores de 18 anos, pessoas com defeitos cranianos ou pacientes que sofreram cirurgias envolvendo a retirada de parte do osso do crânio (craniectomia descompressiva ou craniotomia).
O sensor, um dispositivo vestível posicionado na cabeça do paciente com uma banda de fixação, é conectado via internet a uma plataforma analítica, que gera dados disponibilizados em tempo real em tablets
ou celulares. Como o aparelho não coleta dados numéricos da pressão registrados em milímetros de mercúrio, não substitui os sensores invasivos. “Nosso sensor faz um monitoramento indireto, por meio da observação de pequenas alterações nanométricas na deformação do crânio”, explica o engenheiro de controle e automação Rodrigo Andrade, cofundador e diretor de pesquisa e desenvolvimento da empresa.
Léo Ramos Chaves / Revista Pesquisa FAPESP Dispositivo da brain4care já é usado em mais de 50 hospitais do paísLéo Ramos Chaves / Revista Pesquisa FAPESP
O método de monitoramento não invasivo da PIC foi criado a partir de estudos do físico e químico Sérgio Mascarenhas de Oliveira (1928-2021), professor do Instituto de Física de São Carlos da Universidade de São Paulo (IFSC-USP) e um dos fundadores da brain4care. Ele questionou o que era considerada até então uma certeza médica, a doutrina Monro-Kellie, estabelecida nos anos 1820 pelos cirurgiões escoceses Alexander Monro Secundus (1733-1817) e George Kellie (1770-1829). Os dois avaliaram que o cérebro é encerrado em uma estrutura esquelética e que é constante o volume ali presente, formado por líquor (líquido cefalorraquidiano), sangue e tecido cerebral.
Mascarenhas, no entanto, observou que o batimento cardíaco gera ondas de pressão capazes de causar deformações no crânio na ordem de 5 micrômetros (μm). “Conforme cada onda distorce o crânio, é possível
saber as condições de saúde do indivíduo”, conta o neurologista clínico Fabiano Moulin, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), autor de três dos 59 artigos científicos publicados sobre as observações de Mascarenhas e o monitoramento não invasivo da PIC.
O método não invasivo da brain4care monitora a pressão intracraniana através do acesso à forma de onda da PIC e calcula diversos parâmetros associados à hemodinâmica cerebral. Esses parâmetros são extraídos da onda, pulso a pulso, e são usados para gerar informações sobre a complacência intracraniana, ou seja, a capacidade do crânio de tolerar acréscimos de volume sem aumento significativo na pressão intracraniana.
O índice de acerto no diagnóstico da PIC, segundo Moulin, é bastante elevado, próximo a 98%. “É um sistema de monitoramento bastante efetivo para o diagnóstico de problemas neurológicos de baixo e médio risco e evita a necessidade de intervenções cirúrgicas para o implante do sensor”, afirma. Segundo Andrade, uma nova versão miniaturizada do dispositivo não invasivo está em desenvolvimento na brain4care, com previsão para ser apresentada ao público em 2024.
Projetos
1. Desenvolvimento de um equipamento para monitoramento minimamente invasivo da pressão intracraniana (nº 08/53436-2); Modalidade Programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisador responsável Sérgio Mascarenhas Oliveira (Sapra); Investimento R$ 654.281,90.
2. Registro e comercialização de um equipamento para monitoramento minimamente invasivo da pressão intracraniana (nº 11/51080-9); Modalidade Programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisador responsável Sérgio Mascarenhas Oliveira (Sapra); Investimento R$ 348.684,81.
3. Desenvolvimento de sensor não invasivo, hardware e software para monitoramento de pressão intracraniana em pacientes com hidrocefalia e acidente vascular cerebral (nº 12/50129-7); Modalidade Programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisador responsável Gustavo Henrique Frigieri Vilela (Sapra); Investimento R$ 358.784,13.
4. Desenvolvimento de sensor indutivo minimamente invasivo para monitorar a pressão intracraniana (nº 14/50618-3); Modalidade Programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisador responsável Sérgio Mascarenhas Oliveira (Braincare); Investimento R$ 913.895,75.
5. Sistema Braincare de aquisição, armazenamento e análise dedados para a saúde (nº 16/01990-2); Modalidade Programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisador responsável Deusdedit Lineu Spavieri Júnior (Braincare); Investimento R$ 737.309,60.
Artigos científicos
SILVA JUNIOR, E. B. et al. Fiber-optic intracranial pressure monitoring system using Wi-Fi — Na in vivo study. Neurosurgery. n. 92(3), p. 647-56. mar. 2023.
MORAES, F. M. et al. Waveform morphology as a surrogate for ICP monitoring: A comparison between an invasive and a noninvasive method. Neurocritical Care. n. 37, p. 219-27. mar. 2022.
MASCARENHAS, S. et al. The new ICP minimally invasive method shows that the Monro-Kellie doctrine is not valid. Acta Neurochirurgica. 1° jan. 2012.
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