Dezenas de fotógrafos italianos atuaram no Brasil durante o Império e a Primeira República, mas a maior parte de sua produção não sobreviveu ou não está acessível hoje. Atualmente, nos museus e arquivos brasileiros, não é possível localizar mais de uma dezena de fotografias da maioria desses profissionais, de acordo com a pesquisadora Livia Raponi, diretora do Instituto Italiano de Cultura do Rio de Janeiro. A escassez desses registros contrasta com a riqueza numérica dos acervos de outros estrangeiros, como os franceses Victor Frond (1821-1881), Augusto Stahl (1828-1877) e Marc Ferrez (1843-1923). No entanto, os italianos estiveram em todas as regiões do país, receberam prêmios em exposições nacionais e títulos oficiais do Império, registraram obras públicas e transformações urbanas e foram pioneiros da exibição cinematográfica.
Nove desses fotógrafos foram reunidos no livro Italianos detrás da câmera (Editora Unesp, 2022), organizado por Raponi e pelo historiador da fotografia Joaquim Marçal Ferreira de Andrade, curador, pela Biblioteca Nacional, do portal Brasiliana Fotográfica. Os critérios de escolha foram a disponibilidade de imagens digitalizadas em instituições de memória e a representação de diferentes partes do território brasileiro, do sul à Amazônia. Apoiado pela embaixada da Itália no Brasil e acompanhado da exposição Fotógrafos italianos no florescer da fotografia brasileira, realizada no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) do Rio de Janeiro, em outubro e novembro de 2022, e de Brasília, de março a junho passados, o volume pretende incentivar pesquisas sobre esses artistas.
A baixa disponibilidade de imagens reflete a relativa obscuridade em que caiu a maior parte dos fotógrafos italianos pioneiros no país. Em 2005, no artigo “O exórdio de uma cultura urbana no Brasil no final do século XIX e início do século XX”, a arquiteta e historiadora da arte Maria Pace Chiavari, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), escreveu: “A produção de fotógrafos franceses, alemães e ingleses que trabalharam no Brasil inspirou inúmeras publicações; faltam, porém, estudos sobre os italianos que se espalharam por todo o país e deixaram uma importante documentação de sua passagem”. Para Marçal, a lacuna permanece e o estudo desses profissionais continua sendo “um campo completamente aberto”.
Marçal compara o legado dos italianos com o dos franceses, que deixaram sua marca no Brasil a partir da chegada da Missão Artística Francesa, em 1816. Os italianos aportaram no país em condições diferentes. Havia imigrantes que buscavam ganhar a vida, engenheiros que fotografavam suas obras, profissionais de outras áreas que também se dedicavam a registrar imagens. “Os italianos não vinham com o mesmo apoio institucional dos franceses. Vinham para trabalhar. E, quando olhamos mais de perto para a história da fotografia brasileira, vemos que boa parte dos fotógrafos locais teve professores italianos. Muitos dos viajantes, que retratavam as pessoas em rincões e cidades menores, eram da Itália”, afirma Marçal. Algumas vezes, a existência desses indivíduos ficou registrada quase exclusivamente em menções e anúncios na imprensa local.
Entre os itinerantes encontram-se nomes como Nicola Maria Parente (1847- -1911), nascido na região da Basilicata, sul da Itália. Parente, que também era dentista, montou ateliês em cidades como Goiana (PE) e João Pessoa (PB), ganhando a vida com a venda de cartões de visita e retratos de família. Em 1897, ao retornar de uma viagem à França, trouxe um exemplar do cinematógrafo dos irmãos Lumière, com o qual realizou a primeira sessão de cinema da capital paraibana nesse mesmo ano. Em maio de 1911, quando morava na cidade de Abaeté, hoje Abaetetuba (PA), o fotógrafo morreu em um acidente: experimentava um gerador de oxigênio que havia criado para sua atividade de dentista quando o invento explodiu.
Atualmente, um dos nomes mais divulgados entre os antigos fotógrafos italianos é Vincenzo Pastore (1865-1918), que manteve ateliês em São Paulo a partir de 1894 e, durante alguns anos, em Potenza e Bari, na Itália. Sua obra mais célebre é uma série de imagens de trabalhadores urbanos, realizadas nas décadas de 1900 e 1910, hoje pertencentes ao Instituto Moreira Salles (IMS). Mas nem sempre foi assim. Essas imagens, guardadas em uma caixa de sapato, permaneceram esquecidas durante quase todo o século XX e só atingiram seu atual grau de notoriedade graças à doação feita pelo pianista Flavio Varani, neto do fotógrafo, ao IMS, em 1996.
As fotografias mostram engraxates, lavadeiras e carregadores circulando pela cidade que começava a se modernizar e crescer. O conjunto tem uma particularidade: em sua época, as impressões não foram comercializadas, mas estampadas em restos de papel fotográfico e expostas nas paredes de seu ateliê de São Paulo. Pastore era reconhecido como retratista e teve grande sucesso comercial, de acordo com a historiadora Fabiana Beltramim, pesquisadora de estudos visuais e autora do livro Entre o estúdio e a rua: A trajetória de Vincenzo Pastore, fotógrafo do cotidiano (Edusp, 2016). A obra é baseada na tese de doutorado que defendeu no ano anterior no Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP).
“Essas imagens não fazem parte de uma tradição que retratava o exotismo e a escravidão do Brasil para satisfazer a curiosidade de turistas estrangeiros”, afirma Beltramim. A pesquisadora defende que Pastore, em suas fotografias de trabalhadores egressos da escravidão e imigrantes europeus feitas após a Abolição da escravatura, exercitou um estilo conhecido na Itália como arte per via (arte nas ruas), que mostra as pessoas em suas ocupações diárias. Segundo Beltramim, as cenas urbanas de Pastore mobilizam essa tradição de um repertório visual de tipos e costumes, mas ele se interessava pelas contradições da vida urbana paulistana. “Ele estava atento às sociabilidades das camadas populares, que faziam das ruas seu espaço de vida e trabalho. E entendia as ambiguidades da nossa modernidade. Por causa de seu olhar atento ao trabalho informal, eu o chamei de ‘fotógrafo do cotidiano’”, diz.
Em alguns outros estados, os registros são mais abundantes. É o caso do Rio Grande do Sul, de acordo com a historiadora da arte Zita Rosane Possamai, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). No mesmo período, italianos também se destacaram nas imagens urbanas de outra capital que se modernizava: Porto Alegre. Na virada do século, uma certa rivalidade chegou a se instalar entre os fotógrafos Virgilio Calegari (1868-1937), italiano, e Jacintho Ferrari (?-1935), filho de italiano. Calegari – presente no livro editado por Raponi e Marçal – registrou as transformações que a cidade atravessou na primeira década do século XX, quando os antigos quarteirões coloniais davam lugar à metrópole republicana.
“Calegari se radicou em Porto Alegre, onde viveu até o fim da vida. Ele acompanhou todo o processo de modernização da cidade”, afirma Possamai, que publicou diversos artigos sobre o trabalho do fotógrafo. “Por isso, ele constrói um olhar que reflete essa metamorfose. Suas imagens contêm elementos novos, como desembarques no cais do porto, o que remete à presença da multidão, uma novidade naquele momento.” O resultado é o álbum Porto Alegre, produzido entre 1908 e 1912. Segundo Possamai, o autor se inspirou em outros conjuntos de imagens urbanas daquele período – em sua biblioteca, havia um álbum sobre Nova York. “Virgilio Calegari e Jacintho Ferrari eram os dois principais fotógrafos da cidade. Disputavam a clientela, sobretudo a classe dominante, que tinha recursos para contratá-los”, relata Possamai.
Também era italiano um dos primeiros fotógrafos dos quais se tem registro em Porto Alegre. Trata-se de Luís Terragno (1831-1891), que se instalou na capital em 1853 e percorreu diversas cidades da então província de São Pedro. Além de registrar imagens, o genovês estudou os processos químicos da fotografia e chegou a criar uma emulsão a partir da mandioca, o sulfomandiocato de ferro. Terragno buscava adaptar as técnicas fotográficas às condições climáticas do Brasil, de acordo com Marçal.
O fotógrafo é autor de imagens do imperador dom Pedro II (1825-1891) e de seu genro, Gastão de Orléans, o conde d’Eu (1842-1922), em trajes gaúchos. As fotografias, de teor propagandístico, foram realizadas em 1865, durante a passagem do Exército brasileiro pelo Rio Grande do Sul, rumo à Guerra do Paraguai (1864-1870). Na ocasião, Terragno teria apresentado um pedido ao imperador para acompanhar as tropas até o front e registrar as batalhas. Assim como ocorreu com todos os demais fotógrafos, teve o pedido negado. “Como grande promotor da fotografia, o imperador tinha perfeita consciência do poder que as imagens têm e não queria que ficassem registros do conflito”, afirma Marçal.
Italianos detrás da câmera também ressalta a produção imagética de dois autores mais conhecidos por sua atuação em outro campo. Trata-se de Ermanno Stradelli (1852-1926) e Guido Boggiani (1861-1902), que se dedicaram a trabalhos etnográficos no século XIX. O primeiro foi objeto da tese de doutorado de Raponi, defendida no Departamento de Letras Modernas da FFLCH em 2018.
Nascido em uma família abastada de Piacenza, Stradelli foi influenciado pela mentalidade romântica de sua época, o que lhe incutiu o gosto pelas explorações. Interessou-se pelos costumes e as cosmologias dos povos indígenas da Amazônia e organizou, mesmo sem apoio institucional, expedições com objetivos tanto geográficos, como o mapeamento de rios, quanto antropológicos. Sua obra mais conhecida é o Vocabulário português-nheengatu – Nheengatu-português, idioma desenvolvido a partir de línguas indígenas amplamente falado no Brasil colonial. Ela veio a público postumamente, em 1929, na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Desde 2014, o livro integra o catálogo da Ateliê Editorial. O antropólogo, historiador e folclorista Luís da Câmara Cascudo (1898-1986) afirmou que a obra era “uma verdadeira enciclopédia amazônica”. Para Raponi, o interesse de Cascudo, que resultou no livro Em memória de Stradelli (Livraria Clássica, 1936), foi responsável por manter viva a lembrança do fotógrafo-explorador.
Já o piemontês Boggiani era pintor reconhecido na Itália, onde viveu até os 27 anos. Amigo do escritor Gabriele d’Annunzio (1863-1938), foi conduzido pelo mesmo espírito aventuresco de Stradelli a viajar para a América do Sul e acompanhar expedições para o norte da Argentina, Paraguai e oeste do Brasil. Fotografou e escreveu sobre as etnias Chamacoco e Kadiwéu, o que lhe rendeu citações do antropólogo Darcy Ribeiro (1922-1997), que fez trabalhos etnográficos na mesma região.
De posse de tecnologias de revelação mais avançadas do que as de Stradelli, Boggiani pôde realizar retratos notáveis, sobretudo por captar aspectos singulares dos seus modelos, que parecem estar à vontade na frente da câmera, em particular as mulheres, observa Raponi. Seu olhar treinado como pintor enfatizou elementos como a pintura facial e corporal e as vestimentas femininas. Em algumas imagens, os indígenas sorriem, algo que não era habitual nos retratos do século XIX.
Apesar da cumplicidade e talvez por causa dela, Boggiani teve morte precoce, violenta e misteriosa. Seus restos mortais foram encontrados na região do Chaco paraguaio em 1904, com o crânio esmagado e a câmera fotográfica enterrada a uma certa distância. O motivo do assassinato pelos indígenas que o haviam fascinado não foi esclarecido. “Há muitas especulações, que vão do ciúme por seu envolvimento com mulheres indígenas até uma reação à própria câmera, com seu poder de ‘roubar a alma’”, observa Raponi.
O acesso ainda limitado às fotografias ajuda a explicar a queixa de Chiavari sobre a insuficiência de estudos históricos sobre fotógrafos italianos no Brasil. As imagens sobreviventes de Stradelli estão no Arquivo Fotográfico da Sociedade Geográfica Italiana. As de Boggiani se encontram em coleções europeias, tanto públicas quanto privadas. Possamai aponta que também no Rio Grande do Sul muitas das fotografias de Terragno, Calegari e Ferrari pertencem a coleções particulares.
Marçal espera que outras imagens possam ser encontradas em posse de herdeiros. Recuperá-las seria uma maneira de reescrever a história dos italianos que se instalaram no Brasil. “Veja o que aconteceu com Pastore: depois que os descendentes doaram suas fotografias, ele se tornou um monumento”, conclui o historiador.
Livros
ANDRADE, J. M. F. e RAPONI, L. Italianos detrás da câmera: Trajetórias e olhares marcantes no florescer da fotografia no Brasil. São Paulo: Editora Unesp, 2022.
BELTRAMIM, F. Entre o estúdio e a rua: A trajetória de Vincenzo Pastore, fotógrafo do cotidiano. São Paulo: Edusp, 2016
RAPONI, L. (org.) A única vida possível: Itinerários de Ermanno Stradelli na Amazônia. São Paulo: Ed. Unesp, 2016.