Longe dos centros urbanos se pode ver nestes meses de primavera, pouco depois do pôr-do-sol, uma vasta faixa muito brilhante acima do horizonte. Esse rastro luminoso no céu é um trecho da Via Láctea, a galáxia que abriga o Sol e os planetas que giram ao seu redor. Com quase 200 bilhões de estrelas, ela tem a forma de um imenso polvo girando, como um redemoinho cósmico. Mas nem sempre foi assim. No início do Universo, 14 bilhões de anos atrás, a Via Láctea não passava de uma gigantesca nuvem de gás que pouco a pouco foi se adensando aqui e acolá e gerando estrelas e planetas. Mesmo com o avanço da astronomia no último século e a produção de telescópios cada vez mais potentes, ainda hoje astrônomos do mundo todo tentam compreender como essa transformação ocorreu e a Via Láctea alcançou sua forma atual, com três regiões bastante distintas: o bojo, zona central em forma de globo que concentra centenas de milhões de estrelas; um vasto disco achatado de estrelas, gás e poeira; e uma terceira estrutura esférica que envolve as outras duas, o halo, onde as estrelas são mais raras e o gás e a poeira escassos.
Na tentativa de compreender como se originaram esses alicerces da galáxia, a equipe do astrônomo Walter Junqueira Maciel, da Universidade de São Paulo (USP), há mais de uma década investiga a composição química de diferentes pontos da Via Láctea. Nos últimos anos o grupo chegou a conclusões que, obviamente, não explicam tudo, mas permitem ter uma idéia mais precisa de como essas três estruturas se formaram e evoluíram desde o seu surgimento – cerca de 1 bilhão de anos depois do Big Bang, a explosão que teria gerado o Universo.
Como se deu essa evolução? “Em princípio, de maneira bastante distinta para essas três regiões da galáxia”, diz Maciel. As esparsas estrelas que hoje povoam o halo se formaram muito rapidamente há cerca de 13 bilhões de anos, extinguindo quase todo o gás que havia no entorno da Via Láctea. Quase ao mesmo tempo o bojo começou a se estruturar. Centenas de vezes menor que o halo mas com densidade de gás muito mais elevada, o bojo possivelmente apresentou dois períodos de formação de estrelas: o primeiro com alguns milhões de anos de duração e o segundo, bem mais longo. Só alguns bilhões de anos mais tarde é que iniciou o adensamento de gás que daria origem ao disco, concluíram os pesquisadores a partir de observações da composição química da galáxia.
A razão por que os pesquisadores do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP decidiram medir a concentração e a variedade de diferentes elementos químicos é simples. Tudo o que existe no Cosmo e pode ser observado – os planetas, as estrelas, as nuvens de gás e poeira e também os seres vivos – é formado por diferentes combinações dos 116 elementos químicos que se conhecem e estão organizados na tabela periódica apresentada nas aulas de química do colégio. Esses elementos não surgiram todos ao mesmo tempo. Nos primeiros instantes após o Big Bang formaram-se os átomos de hidrogênio, o elemento químico mais abundante da natureza e também o mais simples, composto por uma partícula de carga positiva (próton) e uma de carga negativa (elétron). Essa explosão primordial também gerou parte do hélio, composto por dois prótons, dois elétrons e duas partículas sem carga elétrica (nêutrons), além de uma quantidade infinitamente pequena de lítio-7 (três prótons, quatro nêutrons e três elétrons). Os demais elementos químicos nasceram muito lentamente sobretudo por fusão nuclear, recombinação forçada de prótons que só ocorre a pressões e temperaturas elevadíssimas como as alcançadas no interior ou em explosões de estrelas.
Como nas outras galáxias, também na Via Láctea centenas de bilhões de estrelas funcionam como reatores nucleares que em suas entranhas transformam átomos de hidrogênio e de hélio em elementos mais pesados. A conseqüência desse processo ininterrupto é o aumento progressivo da quantidade desses elementos na galáxia, produzindo matéria-prima para mais estrelas, planetas e a vida que alguns deles possam abrigar. Desse modo, sabendo a quantidade desses elementos mais pesados em diferentes pontos da galáxia e em momentos distintos de sua vida, é possível descobrir como a composição e a forma da Via Láctea evoluíram através dos tempos, uma vez que se conhece a velocidade em que nascem e morrem as estrelas.
Na saga de reconstruir o passado da Via Láctea, Maciel precisava, então, encontrar as fontes de elementos químicos pesados mais adequadas entre os 200 bilhões de estrelas da nossa galáxia, que no céu facilmente se confundem com as de galáxias próximas. Esses elementos químicos são abundantes nas nebulosas planetárias. De rara beleza, esses objetos, que podem assumir a forma de olho, de ampulheta ou de arraia, são o registro da agonia final de uma estrela que já transformou todo o hidrogênio de seu núcleo em elementos químicos mais pesados.
Assim chamadas pelo astrônomo inglês William Herschel porque ao telescópio lembram o planeta Urano, as nebulosas planetárias nada têm a ver com planetas. São importantes porque guardam informações de um passado distante do Universo. Depois de queimar o seu estoque de hidrogênio por períodos que em geral variam de 1 bilhão a 10 bilhões de anos, estrelas como o Sol incham rapidamente e lançam suas camadas mais externas para o meio interestelar, liberando uma nuvem de gás e poeira rica em carbono, nitrogênio e oxigênio. Geradas a partir de estrelas com massa semelhante ou um pouco superior à do Sol, as nebulosas planetárias exibem elementos produzidos pela estrela que as formou. Os demais elementos que lançam ao espaço foram produzidos pela geração anterior de estrelas, que viveram até 10 bilhões de anos antes. “Analisar a composição das nebulosas planetárias é olhar para o passado distante da galáxia, próximo ao início de sua formação”, diz o astrônomo gaúcho Roberto Dias da Costa, do IAG, que desde 1987 trabalha em parceria com Maciel.
Usando o telescópio de 1,60 metro do Laboratório Nacional de Astrofísica, em Brasópolis, Minas Gerais, e dados de catálogos, Maciel e o astrônomo Hélio Rocha Pinto iniciaram há dez anos a busca dessas fábricas de elementos químicos na vizinhança do Sistema Solar, localizado no disco da galáxia a pouco mais de meio caminho entre o centro e a extremidade. Mais recentemente, com o apoio de um telescópio do Observatório Europeu do Sul (ESO), no Chile, Maciel, Costa e os astrônomos Monica Uchida, André Escudero, Leonardo Lago e Cíntia Quireza expandiram essa procura para toda a região do disco da Via Láctea que pode ser observada do hemisfério Sul. De cerca de 2 mil nebulosas planetárias conhecidas na galáxia, conseguiram determinar com bastante precisão a concentração dos elementos químicos oxigênio, enxofre, neônio e argônio em 240 delas, espalhadas desde o bojo até quase a extremidade do disco.
Mas as concentrações ou abundâncias químicas reveladas pelas nebulosas referem-se a períodos que variam de 10 bilhões a 2 bilhões de anos atrás. Para saber como são hoje, a equipe do IAG comparou os dados das nebulosas planetárias com os de outras estruturas da galáxia chamadas regiões HII. “Do ponto de vista físico, as nebulosas planetárias e as regiões HII são muito parecidas, já que ambas são nuvens de gás aquecidas por estrelas”, conta Maciel. Mas as semelhanças acabam aí. De 20 a 40 vezes mais extensas que as nebulosas planetárias, as regiões HII abrigam dezenas de estrelas em formação e mostram como é a composição química da galáxia nos últimos milhões de anos, tempo recente para os astrônomos. Analisadas em conjunto, as informações das nebulosas planetárias e das regiões HII revelam detalhes sobre a evolução química da galáxia, apresentados em uma série de artigos publicados nos últimos anos, vários deles na revista Astronomy and Astrophysics.
Avaliando a composição de quase 500 nebulosas planetárias do bojo – cerca de 100 observadas por eles e outras 400 por outros pesquisadores –, Escudero, Costa e Maciel constataram que nessa estrutura com diâmetro correspondente a um décimo da extensão da galáxia surgiram famílias de estrelas muito mais variadas do que se imaginava, com idades bastante distintas – daquelas com massas dezenas de vezes mais elevadas que a do Sol e ciclos de vida de uns poucos milhões de anos a estrelas de massa muito pequena e evolução lenta, quase contemporâneas ao início do Universo.
Hábil em informática, Escudero desenvolveu um programa de computador capaz de simular como essa região da galáxia teria se desenvolvido. O cenário que correspondeu melhor às concentrações de elementos químicos observadas é o que indica o desenvolvimento do bojo em dois estágios principais. Inicialmente houve um colapso rápido de gás que em poucos milhões de anos originou um número grande de estrelas com massa elevada. Calcula-se que parte dessas estrelas evoluiu rapidamente e explodiu, lançando elementos químicos pesados em direção ao halo e ao disco da galáxia, ainda em estágio embrionário. Entre 1 bilhão e 3 bilhões de anos mais tarde, parte desse material ejetado é atraída de volta ao bojo, alimentando a formação mais lenta de uma nova geração de estrelas, mais enriquecida em elementos químicos que a geração anterior, sugerem os pesquisadores em artigo a ser publicado em breve na revista Monthly Notices of the Royal Astronomical Society.
“Mas esse modelo do bojo não permite saber quanto gás foi ejetado do bojo nem quanto durou essa fase. Isso só poderá ser definido com dados mais precisos e modelos mais realistas”, escreve Escudero. Maciel espera conseguir dados mais precisos assim que o aparelho usado para identificar os elementos químicos (espectrógrafo) do telescópio Soar, no Chile, entre em funcionamento.
No disco, o desenvolvimento parece ter sido bem mais lento, mas contínuo. Monica, Costa e Maciel compararam a concentração de elementos químicos pesados de nebulosas planetárias com tempos de evolução variados – cerca de 10 bilhões, 6 bilhões e 1 bilhão de anos. Verificaram que a concentração dos elementos mais pesados diminui progressivamente à medida que se vai do centro para a periferia da galáxia. Também a taxa em que ocorre essa redução mudou com o tempo: foi mais intensa no passado do que mais recentemente. A partir do que se passou com essa população de estrelas, os astrônomos imaginam que o disco foi se formando do centro rumo à periferia. Essa idéia é compatível com a observação das nebulosas. As mais antigas se concentram mais próximas ao centro, enquanto as mais jovens são encontradas perto do bojo, mas também muito distantes dali. “Nessa região mais distante do centro galáctico, a formação de estrelas deve ter sido mais lenta”, comenta Costa.
O Projeto
Nebulosas fotoionizadas, estrelas e evolução química de galáxias; Modalidade Projeto Temático; Coordenador Walter Junqueira Maciel – IAG/USP; Investimento R$ 95.194,57