O governo brasileiro anunciou que irá apelar ao Órgão de Solução de Controvérsias da Organização Mundial do Comércio (OMC) para tentar reverter as conclusões de um painel que considerou ilegais vários programas da política industrial do Brasil questionados pela União Europeia e pelo Japão. O relatório final do painel, constituído em 2014 e composto por três árbitros independentes, foi recebido pelo Ministério das Relações Exteriores (MRE) no dia 20 de dezembro, mas só deverá ser divulgado oficialmente por volta de fevereiro após o cumprimento de uma formalidade: ele precisa primeiro ser traduzido do inglês para os outros dois idiomas oficiais da organização, o francês e o espanhol, e circular entre os 160 países-membros da OMC. O documento sustenta que uma parte importante da política industrial brasileira descumpriu normas da OMC e condena a forma como o país estimulou a produção nacional de automóveis, de equipamentos de informática, de semicondutores, entre outros, concedendo isenções ou suspensões de impostos sobre o produto final que não se estendem a concorrentes importados.
Um dos pontos questionados no contencioso é a violação ao chamado princípio de tratamento nacional, entendida como a concessão de incentivos a bens e mercadorias fabricados no Brasil, na forma de isenções de impostos, que são vedados a similares produzidos no exterior. Outro questionamento envolve a exigência de um patamar mínimo de insumos produzidos no país na fabricação de produtos beneficiados por reduções tributárias. Segundo o painel, esses problemas estão presentes em programas como o Inovar Auto, criado em 2012 para estimular a produção de carros no país, e a Lei de Informática, que vigora há 25 anos e concede redução de impostos a fabricantes de hardware e de componentes eletrônicos, que se obrigam a investir em pesquisa e desenvolvimento (P&D).
Também foram censurados no relatório o programa de inclusão digital, que vigorou entre 2005 e 2015 e reduziu a zero as alíquotas de contribuições como o PIS e o Cofins sobre a venda de computadores, tablets, smartphones, entre outros; os programas de apoio ao desenvolvimento tecnológico da indústria de semicondutores (Padis) e de equipamentos para TV Digital (PATVD), que oferecem desoneração de tributos em troca de investimentos em P&D; e o Regime especial de aquisição de bens de capital para empresas exportadoras (Recap), que reduziu o pagamento de tributos de indústrias exportadoras na compra de máquinas e equipamentos.
“O Brasil teve boa parte de seus instrumentos de política industrial questionados, o que é algo sem precedentes”, diz a economista Sandra Polónia Rios, diretora do Centro de Estudos de Integração e Desenvolvimento (Cindes) e professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). “Inicialmente a União Europeia questionou até mesmo a existência da Zona Franca de Manaus, mas desistiu desse tópico mais tarde.” Entre 1995 e 2016, o Brasil já questionou políticas de países-membros da OMC em 29 ocasiões, na maioria das vezes para contestar barreiras a produtos industriais, e foi acionado 16 vezes. Em alguns casos, foi necessário modificar políticas, como na contestação ao Programa de Financiamento às Exportações (Proex) em contencioso sobre a produção de aviões regionais que envolveu a brasileira Embraer e a canadense Bombardier, no final dos anos 1990. O contencioso sobre a política industrial é o mais abrangente já sofrido pelo Brasil na OMC. “Dessa vez, são vários regimes questionados e os setores cobertos são mais amplos”, diz o embaixador Carlos Marcio Cozendey, subsecretário-geral de Assuntos Econômicos e Financeiros do MRE.
O resultado do painel causou turbulências no ambiente de P&D, uma vez que as empresas habilitadas em vários desses programas investem em inovação como contrapartida das isenções fiscais que recebem. No decorrer do trabalho do painel, a diplomacia brasileira argumentou que as regras da OMC não proíbem os incentivos à indústria local nem tampouco vetam o estímulo a investimentos em P&D. “Isso está de acordo com as regras e objetivos da OMC de promoção do desenvolvimento em bases sustentáveis, segundo a visão brasileira”, explica Rubens Barbosa, que foi embaixador do Brasil em Washington entre 1999 e 2004 e assessora a Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica (Abinee).
Os termos do recurso que o Brasil apresentará à OMC serão discutidos nas próximas semanas por representantes dos ministérios da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), da Indústria, Comércio Exterior e Serviços (MDIC) e das Relações Exteriores. Espera-se que os 11 juízes do Órgão de Solução de Controvérsias se pronunciem sobre o recurso por volta de setembro. O governo brasileiro, de todo modo, já se prepara para mudar programas questionados e negociar prazos para implementar mudanças. Se não alterar as políticas condenadas, o país ficará sujeito a retaliações dos parceiros em qualquer área comercial. “Conhecemos a jurisprudência e, ainda que consigamos a reversão de algumas medidas, é possível que vários programas precisem ser modificados”, diz o embaixador Carlos Marcio Cozendey. Igor Nogueira Calvet, secretário de Desenvolvimento e Competividade Industrial do MDIC, afirma que as novas políticas deverão preservar as contrapartidas em P&D das empresas. “Vamos discutir o que o governo poderá oferecer às empresas para exigir a contrapartida em P&D. Dificilmente será na forma de redução de Imposto sobre Produtos Industrializados, como ocorre atualmente”, afirma. “O futuro será definido em conjunto com o setor privado.”
No caso da Lei de Informática, o governo tentará preservar a sua essência, adaptando-a às exigências da OMC. “Trata-se de uma legislação criada em 1991, que é anterior a vários tratados que embasam o painel da OMC. E nunca havia sido questionada antes”, afirma Maximiliano Martinhão, secretário de Política de Informática do MCTIC. “A Lei de Informática é um patrimônio do Brasil e tem ajudado a fomentar o desenvolvimento econômico.” De acordo com o secretário, a lei gera 100 mil empregos diretos, entre os quais 15 mil vinculados a P&D. Segundo dados compilados pela Abinee, a renúncia fiscal decorrente da isenção ou da redução do IPI atingiu R$ 25 bilhões de 2006 a 2014. Já os tributos recolhidos referentes a bens incentivados alcançaram R$ 50 bilhões. O faturamento das empresas com produtos incentivados totalizou, de 2006 a 2014, R$ 266 bilhões, enquanto os recursos aplicados em P&D chegaram a R$ 8,3 bilhões no mesmo período. Martinhão acredita ser possível adaptar a legislação e preservar o investimento em P&D nas empresas. “A Europa dá incentivos para a produção em seu território, mas eles são destinados a empresas, não a produtos. Isso a OMC permite. Uma possibilidade é mudarmos o alvo do incentivo, mantendo os investimentos em P&D”, explica.
Outra alternativa que pode vir a ser avaliada, diz Martinhão, é habilitar empresas estrangeiras a se beneficiarem da Lei de Informática, exigindo a mesma contrapartida em P&D das empresas com produção no país. O principal desafio, segundo ele, é modificar os programas existentes da forma mais rápida possível. “O pior dos mundos é demorar a aprovar as mudanças necessárias na legislação e deixar o setor produtivo em situação de insegurança jurídica”, afirma.
A Lei de Informática concede incentivos fiscais para fabricantes de hardware e de componentes eletrônicos que invistam em P&D. O estímulo, previsto para vigorar até 2029, consiste na redução em 80% do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI). O investimento em P&D deve equivaler, dependendo do tipo de produto, a 3% ou 4% do faturamento anual das mercadorias incentivadas. O investimento pode ser feito dentro da própria empresa, em universidades ou ser contratado por terceiros – o que levou à criação no país de uma série de institutos privados de pesquisa que fazem estudos por encomenda de empresas (ver Pesquisa FAPESP nº 248). Exige-se ainda que uma parte dos recursos seja investida em convênios com institutos nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Para ser beneficiada, a empresa precisa atender ao chamado Processo Produtivo Básico (PPB), que determina o nível de nacionalização requerido para cada tipo de produto.
“Essa lei foi fruto de debates amplos e negociações legítimas no Congresso Nacional e a preocupação dos legisladores foi manter o equilíbrio econômico-financeiro das indústrias que optarem pela política nacional de informática”, diz Humberto Barbato, presidente-executivo da Abinee. “O balanço econômico e social da Lei de Informática é bastante positivo. O cenário que se desenha com a internet das coisas tornará a inclusão digital ainda mais presente na vida das pessoas e o arcabouço legal para as tecnologias de informação e comunicação será cada vez mais essencial”, afirma.
Já o Inovar Auto foi criado por uma medida provisória em abril de 2012 e estabeleceu um regime que concede vantagens fiscais temporárias para montadoras de automóveis. O painel da OMC condenou principalmente o benefício oferecido na forma de créditos presumidos de IPI, de até 30 pontos percentuais por produto, caso as empresas cumpram critérios como a instalação de novas plantas industriais no país ou da produção de novos modelos. Dispêndios em P&D estão entre as contrapartidas exigidas das empresas. Segundo dados do MDIC, entre 2013 e 2015 cerca de R$ 15,3 bilhões foram investidos em pesquisa, desenvolvimento e engenharia em decorrência do programa. O embaixador Rubens Barbosa acredita que será difícil fazer adaptações no Inovar Auto. “Provavelmente, o governo terá de eliminar o programa. Ele já estava previsto para terminar em 2017”, diz. Igor Calvet, do MDIC, afirma que uma nova política para o setor automobilístico começou a ser discutida. “O Inovar Auto cumpriu sua função de atrair investimentos. Várias empresas criaram fábricas no país e montaram estruturas de apoio a P&D.”
Para a economista Sandra Polónia Rios, o quadro das montadoras é o mais preocupante entre os setores afetados pelo painel. “O setor automobilístico hoje tem uma enorme capacidade ociosa, estimulada inclusive pelo Inovar Auto, sem perspectiva de ser aproveitada em um horizonte de tempo razoável”, diz. “É um problema muito sério, porque o Brasil não tem condições de se transformar numa plataforma exportadora de automóveis nem há muitas chances de crescimento do mercado interno.”
Segundo ela, a criação do Inovar Auto em 2012 pode ter sido o catalisador do descontentamento com o Brasil na OMC. “O país estabeleceu nas últimas décadas vários instrumentos de política industrial que preservavam o conteúdo local, como a Zona Franca e a Lei de Informática, mas eram mais suaves e não foram questionados”, afirma. Durante o governo Dilma Rousseff, contudo, houve intensificação do uso desses instrumentos no bojo do Programa Brasil Maior, de 2011, ao qual o Inovar Auto estava vinculado. “Isso causou incômodo ao Japão e à União Europeia”, sugere.
Segundo a conselheira Daniela Benjamin, coordenadora de contenciosos do MRE, a preocupação com a proliferação desses regimes no Brasil influenciou a decisão do Japão e da União Europeia de levar a questão para a OMC. “Havia uma discussão importante na época sobre estender esses regimes a outros setores, como o químico, e os demandantes ficaram preocupados que viesse uma expansão”, afirmou a diplomata, em audiência pública na Câmara Federal sobre o painel da OMC realizada no dia 15 de dezembro. Soraya Saavedra Rosar, diretora da Unidade de Negociações Internacionais da Confederação Nacional da Indústria (CNI), disse na mesma audiência que os resultados do painel da OMC criam um cenário novo para negociações sobre a política industrial no país. “A partir de agora, ao formular uma nova lei, será preciso analisar com mais cuidado a cobertura de tratados sobre comércio internacional que precisa ser respeitada”, diz. O redesenho desses instrumentos jurídicos será determinante para definir o perfil do esforço futuro de P&D empresarial no país, um tema que conquistou importância crescente desde que a inovação passou a ser um tema-chave tanto da política industrial quanto da política científica e tecnológica do Brasil.
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