O debate sobre o desenho e as ambições de uma política industrial adequada para as necessidades do Brasil retomou fôlego em 2023, após ficar adormecido por ao menos cinco anos. A Confederação Nacional da Indústria (CNI) lançou em maio o Plano de Retomada da Indústria, que enumerou 60 propostas para melhorar o ambiente de negócios no país, reduzir tributos e financiar a inovação e, como novidade, apontou quatro missões prioritárias a serem alvos de políticas públicas e de ações estratégicas das empresas: a transição para uma economia de baixo carbono, a incorporação de tecnologias digitais em companhias de todos os tamanhos e a expansão das cadeias de produção nas áreas da saúde e da defesa, com foco na fabricação nacional de vacinas a satélites.
Paralelamente, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Industrial (CNDI), um colegiado vinculado ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC) que não se reunia desde 2015, definiu a política industrial a ser executada nos próximos anos com base em seis grandes desafios. Além das mesmas quatro missões propostas pela CNI, o CNDI, que é composto por membros do governo e representantes da sociedade civil, contemplou duas metas adicionais: o fortalecimento de cadeias agroindustriais, com foco na erradicação da fome, e investimentos em infraestrutura para melhorar o bem-estar nas cidades, em articulação com a política de habitação do governo.
As políticas públicas necessárias para cumprir as missões estão agora sendo detalhadas por grupos de trabalho. De modo mais concreto, o governo lançou em outubro um programa para desenvolver o que chamou de Complexo Econômico-Industrial da Saúde, com investimentos de R$ 42 bilhões, a fim de expandir a fabricação de insumos prioritários para o Sistema Único de Saúde (SUS), como imunizantes e remédios, inclusive por meio de parcerias público-privadas. A meta é produzir nacionalmente ao menos 70% das necessidades do SUS.
O Ministério da Fazenda entrou no debate em um tópico específico: a descarbonização da economia. Em parceria com o Ministério do Meio Ambiente, lançou as bases do Plano de Transformação Ecológica, que propõe direcionar investimentos públicos para atividades econômicas com impacto ambiental positivo, além de criar um mercado regulado de carbono capaz de recompensar empresas com baixas emissões de gases estufa.
As propostas de política industrial incorporam aprendizados e buscam se distanciar do que não funcionou bem no passado no país. Em vez de beneficiar segmentos selecionados ou preconizar isenções de impostos, elas são abrangentes e orientadas por missões de impacto na economia e na sociedade – os quatro eixos do plano da CNI e os seis eixos do CNDI funcionam como grandes metas a serem atingidas. “A intenção é escolher problemas da sociedade contemporânea que precisam ser solucionados e articular em conjunto os esforços dos setores público e privado, da academia, dos centros de pesquisa e dos trabalhadores”, diz a economista Samantha Ferreira e Cunha, gerente de Política Industrial da CNI, uma das coordenadoras do Plano de Retomada da Indústria.
O economista Renato Garcia, do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), explica que políticas orientadas por missões vêm ganhando espaço porque criam o que se convencionou chamar de adicionalidades. “Diferentes atores juntam seus esforços e experiências para trabalhar em algo novo: uma grande missão de interesse da sociedade e que não tem necessariamente um vínculo com o que faziam anteriormente”, diz. Políticas industriais de feitio tradicional, ele explica, às vezes geravam um efeito indesejado, conhecido como substitutibilidade. “Não era incomum que as empresas aproveitassem incentivos de políticas públicas apenas para substituir investimentos próprios já previstos, obtendo resultados muito semelhantes aos que seriam alcançados se não houvesse estímulo algum.”
O cenário internacional exerceu uma forte influência nas propostas brasileiras. Nos últimos 15 anos, políticas de longo prazo talhadas para recuperar o crescimento econômico após a crise de 2008 emergiram nos principais países industrializados. A pandemia, ao expor grandes vulnerabilidades em cadeias globais de suprimentos, elevou a outro patamar a importância das políticas industriais e a disposição de governos para criá-las. A redução no fornecimento de semicondutores e circuitos integrados durante a emergência sanitária forçou segmentos industriais inteiros a diminuírem suas atividades, prolongando o impacto da Covid-19 na economia global. Os riscos causados pela concentração de três quartos da produção global desses insumos em cinco países – China, Coreia do Sul, Malásia, Singapura e Taiwan – entraram no radar das nações industrializadas. Uma reação eloquente veio dos Estados Unidos, que aprovaram uma nova legislação, o Chips & Science Act, com investimentos de centenas de bilhões de dólares em pesquisa e desenvolvimento e na fabricação doméstica de semicondutores (ver Pesquisa FAPESP nº 320).
“As principais economias mundiais estão empregando, desde 2015, pelo menos US$ 12 trilhões em políticas industriais”, informa Samantha Cunha, da CNI. Além de investir em estratégias de reindustrialização, também buscam mudar o desenho de cadeias globais de produção, o que pode gerar oportunidades para indústrias brasileiras. “Cadeias de suprimento estão sendo remodeladas a partir de conceitos como o nearshoring, que consiste em trazer para mais perto das sedes de empresas norte-americanas ou europeias os elos finais da produção, que haviam sido transferidos para a Ásia para reduzir custos, ou o friendshoring, que é levar a produção para países culturalmente mais próximos e com ambientes de negócio favoráveis”, explica.
João Carlos Ferraz, do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), observa que políticas orientadas por grandes missões não são propriamente uma novidade, mas governos costumavam recorrer a elas em ocasiões especiais, como situações de conflito, canalizando, por exemplo, investimentos públicos e capacidade das empresas em esforços de guerra. “Dessa vez há um ativismo em favor de políticas industriais mesmo sem haver conflito”, compara. Ele explica que as políticas orientadas por missões ganharam adeptos nos últimos tempos com a repercussão dos trabalhos da economista italiana Mariana Mazzucatto, autora do livro O Estado empreendedor (2011). Sua obra mais recente, Mission economy: A moonshot guide to changing capitalism, publicada em 2021, é uma espécie de manual para formuladores de políticas públicas encarregados de articular soluções para grandes problemas da sociedade. Mazzucatto, coordenadora do Institute for Innovation and Public Purpose no University College London, no Reino Unido, já veio duas vezes ao Brasil neste ano: foi recebida pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em julho e participou do Congresso Nacional de Inovação da CNI em setembro.
A seleção das missões a serem enfrentadas pelo Brasil levou em conta a agenda dos competidores internacionais. “Basta analisar as políticas industriais em curso no mundo hoje para ver que 90% estão associadas ao digital e ao verde”, afirma Ferraz. Um dos desafios agora é mobilizar empresas de todos os portes. Um levantamento da CNI realizado em 2021 mostrou que, enquanto 86% das grandes empresas brasileiras já utilizavam ao menos uma tecnologia digital, o percentual caía para 64% em médias empresas e 42% entre as pequenas. “Investir em conectividade de pequenas propriedades pode ter um impacto extraordinário em cadeias de produção na agroindústria. Tecnologias de informação também podem ajudar na solução de grandes problemas sociais, como estimular empresas a criarem ferramentas que melhorem o atendimento no SUS”, diz Garcia, da Unicamp, referindo-se, por exemplo, ao uso de inteligência artificial para integrar dados de prontuários de saúde. Já no esforço para descarbonizar a economia, há oportunidades potenciais, como a exploração do mercado internacional de carbono e o uso sustentável da biodiversidade. “Temos vantagens em relação aos nossos competidores, pois 47% da nossa matriz energética é limpa, o que está acima dos padrões mundiais”, lembra Cunha, da CNI.
A missão no campo da saúde é um exemplo à parte, pois o recurso de utilizar políticas sanitárias para incrementar a atividade industrial já existe. Em 2012, começaram a funcionar as Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDP), um sistema pelo qual o Ministério da Saúde determina uma lista de produtos estratégicos a serem adquiridos, que tenham importância para o SUS e representem um custo elevado para o governo ou um peso relevante na pauta de importações. Empresas se comprometem a transferir a tecnologia para laboratórios públicos do país e, em contrapartida, podem fabricá-la com vendas garantidas por um período de até 10 anos (ver Pesquisa FAPESP nº 302). “Essa agenda teve fases de expansão e retração, mas nunca deixou de existir”, diz Elize Massard da Fonseca, especialista em administração pública e professora da Fundação Getulio Vargas (FGV) em São Paulo. “Alguns contratos foram cancelados em anos recentes, mas outros continuaram.”
A experiência da pandemia, em que ficou evidente a dependência do país no abastecimento de insumos de vacinas, ajuda a explicar a escolha dessa missão. “O Ministério da Saúde parece ter ambições maiores agora do que tinha no passado”, considera a pesquisadora. O grande desafio, segundo ela, será lidar com a evolução tecnológica. “O desenvolvimento e a transferência de tecnologia não são processos imediatos e há sempre o risco de investir em algo que, quando puder ser incorporado pelo SUS, já não seja mais a terapia de escolha”, explica.
No caso da indústria da defesa, a ideia é apostar em tecnologias que possam ter aplicações tanto militares quanto civis, tendo como inspiração o esforço que resultou no desenvolvimento da indústria aeroespacial no país após a criação do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), sete décadas atrás. Em uma reunião virtual promovida em julho pela Associação Brasileira de Economistas pela Democracia, a secretária-executiva do CNDI, Verena Hitner Barros, disse que a meta é expandir as cadeias de produção das indústrias de defesa, aeroespacial e de segurança, com foco na pesquisa em micro e nanoeletrônica. “Um dos nossos desafios é identificar dentro da cadeia dos produtos da área de defesa as debilidades que, hoje, inviabilizam as nossas exportações”, esclareceu.
Para que as missões da política industrial brasileira saiam do papel, será necessário vencer obstáculos e incertezas de natureza variada. Segundo o economista Eduardo Strachman, pesquisador da Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara da Universidade Estadual Paulista (Unesp), as condições que levaram o país a um processo de desindustrialização nas últimas décadas continuam vigentes. “Desde o governo Collor [1990-1992], nossa política econômica tornou-se anti-industrial”, afirma. “A taxa de câmbio flutua muito – entre economias mais ou menos desenvolvidas, a do Brasil é a que teve mais flutuações. Com isso, as empresas têm dificuldade de exportar seus produtos porque nunca sabem se estarão competitivas – na maioria das vezes, o câmbio as desfavorece. A taxa de juros é elevada e o sistema fiscal brasileiro é horrível”, afirma. Para ele, as discussões recentes sobre a reforma tributária com estados e municípios mostraram as dificuldades de alterar políticas fiscais. “No quadro atual, é possível que políticas industriais alcancem ganhos pontuais, mas acho difícil o governo conseguir reunir condições políticas para reverter o processo de desindustrialização.”
O economista Eduardo da Motta e Albuquerque, do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional da Universidade Federal de Minas Gerais (Cedeplar-UFMG), chama a atenção para a importância de uma coordenação bem articulada a fim de levar adiante uma política industrial que envolva múltiplos atores, como instituições científicas, universidades, empresas, laboratórios, incubadoras, agências financiadoras e reguladoras e sistemas de compras governamentais. “É muito positivo que um ministério de prestígio como o MDIC, comandado por um político que é vice-presidente da República, Geraldo Alckmin, esteja coordenando as propostas de política industrial, pois em iniciativas anteriores claramente houve uma falta de coordenação que comprometeu seus resultados”, afirma.
Albuquerque menciona um estudo publicado em 2017 pelo economista Wilson Suzigan, da Unicamp, que compara as políticas industriais levadas a cabo no Brasil e no Japão. “Suzigan mostrou que a coordenação é a essência de uma política industrial e que a coordenação política é complexa em regimes democráticos pluripartidários. Em países como Japão e Coreia do Sul, políticas industriais foram articuladas por lideranças e órgãos de governo politicamente fortes”, afirma.
Ainda que essas dificuldades sejam vencidas, é difícil fazer previsões sobre o impacto que as novas políticas industriais poderão ter na economia brasileira, uma vez que países industrializados estão buscando os mesmos propósitos e investindo volumes de recursos bem maiores do que os que dispomos. “Cada real que conseguirmos colocar nessas políticas, por meio de órgãos públicos de financiamento e pelo setor privado, precisa ser aplicado da forma mais eficiente possível para tentar multiplicar os resultados, pois nosso esforço é só uma parte ínfima do volume de dólares, euros e yuans que estão sendo investidos com o mesmo objetivo”, diz Ferraz, da UFRJ.
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