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Sociologia

População idosa em prisões brasileiras aumenta mais de nove vezes em 18 anos

Pesquisa da Fiocruz mapeia as condições de vida e saúde dessas pessoas em presídios do Rio de Janeiro

Aline van Langendonck

Com um aumento de mais de nove vezes (819%) entre 2005 e 2023, o número de idosos privados de liberdade soma 12,4 mil indivíduos no Brasil, o que equivale a 1,9% das pessoas detidas em território nacional. A baixa representatividade dessa população em 1,3 mil estabelecimentos prisionais do país esconde um universo particular de histórias e demandas, que carecem do olhar de formuladores de políticas públicas e pesquisas acadêmicas. Com a proposta de tirar essa situação da invisibilidade, estudo coordenado pela socióloga Maria Cecília de Souza Minayo e pela psicóloga Patricia Constantino, da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP-Fiocruz), mapeou as condições de vida e saúde de idosos em presídios do estado do Rio de Janeiro.

Financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj), a pesquisa articulou o trabalho de 11 especialistas e contou com a participação do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro. Por meio de análises quantitativas e qualitativas, entre 2019 e 2020 foram investigadas as situações de 647 homens e 35 mulheres com mais de 60 anos presos em 33 unidades de ocupação masculina e cinco feminina, todos em regime fechado. Durante a pesquisa de campo, os presídios fluminenses reuniam no total, dentre os detentos, 724 homens e 39 mulheres com 60 a 88 anos. Os resultados saíram no livro Frágeis e invisíveis – Saúde e condições de vida de pessoas idosas privadas de liberdade, publicado em maio pela Editora Fiocruz.


No ano passado, o sistema prisional do Rio de Janeiro abrigava ao todo 44,3 mil pessoas, das quais cerca de 42,8 mil eram homens e 1,4 mil mulheres. “O aumento de idosos detidos pode ser explicado, em parte, pelo avanço do encarceramento em todas as faixas etárias, assim como pelo envelhecimento da população brasileira, mas é preciso investigar a existência de outras causas”, propõe Minayo. Segundo a pesquisadora, o Rio mantinha um presídio específico em Niterói para receber indivíduos a partir de 60 anos, que oferecia oficinas de trabalho e banhos de sol diários. Médicos atendiam na unidade duas vezes por semana, além de dentistas e enfermeiros. Porém, em 2014, o governo estadual decidiu espalhar os idosos por presídios em outras cidades fluminenses, passando a utilizar aquela unidade para abrigar policiais condenados pela Justiça. A partir desse momento, a situação dos idosos encarcerados se deteriorou, de acordo com a socióloga.

O estudo da Fiocruz constatou que 94,5% dos idosos detidos no Rio de Janeiro eram homens e tinham em média 65,7 anos. Já as mulheres representavam 5,5% do total e apresentavam uma média de idade de 63,8 anos. A maioria se declarou preta ou parda (58,6%) e afirmou ter filhos (92,7%). Cerca de 59% não tinham finalizado a educação básica e 15% nem sequer sabiam ler e escrever. Grande parte dos idosos (74,6%) havia sido presa há menos de cinco anos e 37,4% desses declararam não receber visitas. Do total de entrevistados, mais da metade (52,5%) disse que questões de saúde atrapalhavam suas atividades cotidianas. Os problemas mais recorrentes eram hipertensão arterial (que afeta 56,9%), constipação frequente (23%) e diabetes (20%).

A incontinência urinária e o estado geral dos dentes foram apontados como os principais motivos de sofrimento, sendo que 60% dos idosos não contavam com a maioria dos dentes. Queixas como alimentação imprópria, celas superlotadas e sem higiene, escassez de atendimento médico, bem como a falta de óculos e atividades físicas também se destacaram entre as reclamações. Foram aplicados, ainda, testes cognitivos para avaliar a saúde mental de 540 indivíduos de ambos os sexos. Do total, 130 deles apresentaram problemas cognitivos e mentais, especialmente depressão. Uma das responsáveis por desenvolver a pesquisa de campo em presídios femininos, a jurista Ana Laura Marinho Ferreira, que defendeu mestrado na Fiocruz em 2021, destaca que, apesar de as idosas apresentarem condições físicas razoáveis, a saúde emocional delas encontrava-se em situação mais crítica do que a dos homens.

Alexandre Affonso/Revista Pesquisa FAPESP

Ferreira publicou o livro Velhice atrás das grades: Condições de saúde de mulheres idosas nas unidades prisionais do estado do Rio de Janeiro pela editora Dialética, em 2022, com os resultados de sua pesquisa de mestrado. No estudo, ela detectou diferenças entre os perfis das detentas idosas e daquelas mais jovens. No segundo grupo, a maioria é preta e parda, enquanto grande parte das mais velhas se autodeclarou branca. “O crime mais comum dessas jovens envolve o tráfico de drogas e entre as idosas também são frequentes as fraudes e os estelionatos”, relaciona a jurista. Outra diferença é que, em geral, enquanto as mais jovens são abandonadas pela família durante a pena, as idosas costumam receber visitas dos familiares. “Apesar das diferenças, há, em geral, uma relação de respeito entre as detentas. As mais velhas costumam ser chamadas de mães ou avós e recebem ajuda na organização de sua rotina”, observa a pesquisadora.

Relações de solidariedade também se destacaram em tese de doutorado defendida em 2018 pela enfermeira Pollyanna Viana Lima, na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb). No decorrer de dois anos de trabalho de campo, ela visitou quatro penitenciárias do interior baiano para entrevistar 31 pessoas com mais de 60 anos que estavam presas nessas unidades. Por meio de conversas individuais e em grupos, cara a cara ou por meio de parlatórios, além de análises de prontuários de saúde, a pesquisadora identificou que, em uma das unidades, 20 pessoas se revezavam em cada cela para dormir nos três únicos colchões existentes. “Porém havia um idoso com sérios problemas de coluna que podia usar um colchão todas as noites”, conta. Segundo a enfermeira, quase todos os idosos ouvidos durante a pesquisa eram analfabetos e agricultores que trabalhavam desde a infância. “Eles queriam ter algum trabalho na prisão, em qualquer tipo de atividade. Uma das mais requisitadas era a função de faxineiro, que dá status por permitir que a pessoa circule por toda a unidade”, relata.

Minayo, por sua vez, destaca que, em linhas gerais, os idosos encarcerados acumulam inúmeras vulnerabilidades físicas e psicológicas que o ambiente das prisões tende a agravar. No Rio de Janeiro, essas fragilidades eram mais intensas entre os 16 indivíduos com mais de 80 anos e, especialmente, entre os seis que tinham acima de 88 anos. O estudo localizou, ainda, a existência de 40 idosos dependentes vivendo de forma crítica no sistema prisional do estado. “Eram pessoas que não conseguiam se deslocar para comer ou usar o banheiro, permanecendo prostradas o tempo todo em suas camas, onde muitas vezes acabavam por fazer as próprias necessidades fisiológicas”, relata a socióloga. De acordo com ela, nas prisões pesquisadas não há serviço nem cuidado específico para esses indivíduos, sujeitos à caridade de outros. No caso de pessoas com esse tipo de dependência, uma das saídas de curto prazo é treinar detentos para que atuem como cuidadores e esse trabalho seja reconhecido para a remissão da pena. “Apesar das condições degradantes, os entrevistados demonstraram expectativas positivas em relação ao futuro: 81% deles esperam ter uma vida pessoal satisfatória quando deixarem a prisão”, contrapõe Minayo.

Em algumas situações, idosos acima de 70 anos ou gravemente doentes podem solicitar o cumprimento da pena em prisão domiciliar, segundo a jurista Irene Cardoso Sousa, promotora de Justiça no Ministério Público de Pernambuco. No entanto, normalmente quem cometeu crime hediondo não é passível do benefício. Além disso, muitos detentos não conseguem acesso a advogados para tramitar o pedido na Justiça. Sousa defendeu mestrado na Fiocruz de Pernambuco em maio de 2024 a partir da investigação da situação de 529 idosos encarcerados em 19 unidades prisionais pernambucanas. Naquele estado, 20% dos indivíduos com mais de 60 anos cumprem pena em prisão domiciliar e a maioria das unidades carcerárias fica no litoral. Com isso, familiares de idosos privados de liberdade que moram, por exemplo, no interior do estado têm dificuldades de realizar visitas. “Além dos impactos psicológicos de permanecerem abandonados, outros problemas de ordem prática emergem dessa situação. Um deles é que o estado não fornece itens como escova de dentes, sabonete e roupa de cama aos detentos, de forma que quem não recebe visita fica desprovido desses objetos”, explica a pesquisadora, citando que mais de 30% dos idosos em presídios pernambucanos estão nessa situação.

Já a enfermeira Alessandra Minervina dos Santos Lopes, servidora da Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo, defendeu mestrado em 2020 na Faculdade de Medicina de Marília (Fanema). No trabalho, investigou o perfil criminal e as condições de saúde de 270 idosos cumprindo pena em 27 presídios paulistas. Cerca de 60% deles apresentavam algum tipo de doença, sendo enfermidades do aparelho cardiorrespiratório as mais frequentes. “A tristeza por causa do rompimento de vínculos familiares, o medo de não ter para onde ir depois de deixar a prisão e o sentimento de arrependimento se sobressaíram nas falas dos entrevistados”, conta Lopes. Diferentemente da situação identificada em presídios do Rio de Janeiro, de Pernambuco e da Bahia, em que agressões sexuais eram as principais responsáveis pelas condenações de idosos homens, nas unidades pesquisadas por Lopes, o homicídio constituía o crime mais comum.

Aline van LangendonckAo contrário do panorama detectado em sua pesquisa, a enfermeira trabalha, atualmente, na penitenciária masculina de Florínea, no interior paulista, que é considerada referência no acolhimento de pessoas vulneráveis, incluindo idosos, população de rua e LGBT+. Ali, Lopes é diretora-técnica de saúde e coordena uma equipe de atendimento dos detentos. Do total de 1,3 mil presos, 15 são idosos, sendo dois deles com mais de 80 anos. “Por causa da boa estrutura física e da equipe médica qualificada, mesmo durante a pandemia, quando os presídios enfrentaram situações sanitárias críticas, especialmente entre as pessoas vulneráveis, não registramos nenhuma morte”, destaca a pesquisadora.

Esses cuidados nas prisões são regulamentados pela Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (Pnaisp), instituída em 2014 por meio de portaria conjunta do Ministério da Saúde e Ministério da Justiça. Por sua vez, a Lei de Execução Penal nº 7.210/1984 prevê a oferta de atividades nas áreas de educação, trabalho e saúde para fomentar a reintegração social de pessoas encarceradas. “No entanto, a Pnaisp apenas alude à necessidade de oferecer atenção especial a pessoas idosas ou deficientes, sem desenvolver propostas específicas”, detalha Constantino, da Fiocruz. Segundo a psicóloga, no estado do Rio de Janeiro à época da pesquisa, somente duas penitenciárias colocavam em prática essas diretrizes: a Tiago Teles de Castro Domingues e a Juíza Patrícia Lourival Acioli, localizadas em São Gonçalo.

Destinado a regulamentar os direitos de pessoas com idade igual ou superior a 60 anos, o Estatuto do Idoso prevê a proteção desses indivíduos em situações em que eles são vítimas. Porém é omisso no que diz respeito a situações em que eles são os transgressores, conforme análise da jurista Rose Aparecida Ferreira Ribeiro, membro da Comissão Especial de Atenção à Pessoa Idosa da Ordem dos Advogados do Brasil – Rio de Janeiro. Com doutorado defendido na Universidade Federal Fluminense (UFF) em 2021 sobre a realidade de idosos encarcerados em 13 presídios fluminenses, Ribeiro fez parte da equipe que realizou o estudo da Fiocruz. “O Código Penal, de 1940, foi modificado depois da promulgação do estatuto, mas só incorporou mudanças em dispositivos referentes a idosos como vítimas de crimes, desconsiderando situações em que ele é o agressor”, conta a jurista.

Ao visitar para o estudo as 38 unidades prisionais, entre femininas e masculinas, Constantino relata que, em todas elas, encontrou situações como pessoas sem dentes que precisavam engolir a comida sem mastigar, que não conseguiam enxergar pela falta de óculos ou apresentavam odor de urina e fezes em razão da falta de acesso a fraldas geriátricas. Houve um caso, no entanto, que foi citado como o mais impactante tanto por Constantino como por Ribeiro. Era um idoso de 67 anos à época, analfabeto. Ele se descrevia como um ladrão profissional, que tinha passado a vida entre entradas e saídas de prisões. Não sabia quantos anos mais passaria encarcerado, não recebia visitas nem tinha acesso a remédios. Contou que um pedaço de concreto caiu em seu pé, esmagando dois dedos. Sem conseguir atendimento médico, passou meses sentindo dores, com o pé necrosado e sem sensibilidade. Um dia, no meio da noite, ratos entraram em sua cela e comeram os dedos machucados. Foi apenas depois do acontecimento que ele conseguiu receber atendimento médico para curar a ferida.

Partindo desse panorama, o estudo da Fiocruz identificou demandas prioritárias dos próprios idosos em presídios do Rio de Janeiro, que podem servir de base para melhorar a situação dos encarcerados em outros estados. A necessidade de uma alimentação mais equilibrada (92,8%), a oferta de medicamentos, em especial os de uso contínuo (89,3%), e o atendimento efetivo de profissionais da saúde (81,6%) foram algumas das necessidades urgentes levantadas. Outra ação que pode trazer impactos imediatos na vida desses idosos é a oferta de próteses dentárias, bengalas, andadores e óculos. “Essas pessoas estão nos presídios para pagar por crimes que cometeram, mas é preciso assegurar que os direitos humanos sejam cumpridos nas penitenciárias”, defende Minayo. Além disso, como recomendação geral, o estudo defende a criação de unidades prisionais ou alas específicas para os idosos em presídios, com estrutura arquitetônica adequada, incluindo rampas de acessibilidade e barras de apoio em corredores, assim como banheiros adaptados e condições básicas de conforto para dormir.

A reportagem acima foi publicada com o título “Velhice à margem” na edição impressa de agosto de 2024.

Artigos científicos
LIMA, P. V. Memórias de pessoas idosas encarceradas sobre o trabalho. Revista NAU Social. v. 13, n. 25. Salvador, 2022.
LOPES, A. M. dos S. et al. Idosos privados de liberdade: Perfil de saúde e criminal. Revista Kairós-Gerontologia. 25(1), 73-91. São Paulo, 2022.
GREENE, M. et al. Older adults in jail: High rates and early onset of geriatric conditions. Health Justice. fev. 17, 6 (1): 3, 2018.

Livros
MINAYO, M. C. de S. e CONSTANTINO, P. Frágeis e invisíveis: Saúde e condições de vida de pessoas idosas privadas de liberdade. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2024.
RIBEIRO, R. A. F. O seguro morreu de velho. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2024.
FERREIRA, A. L. M. Velhice atrás das grades: Condições de saúde de mulheres idosas nas unidades prisionais do estado do Rio de Janeiro. São Paulo: Dialética, 2022.

Relatório
Procedimentos direcionados à custódia de pessoas idosas no sistema prisional. Secretaria Nacional de Políticas Penais. Brasília: Ministério da Justiça e Segurança Pública, 2023.

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