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Genética

Por dentro do parasita

Identificação de genes do Schistosoma mansoni orienta novas formas de combate à esquistossomosee ganha destaque internacional

DEPTO. BIOQUÍMICA E IMUNOLOGIA / FMRP - USPAlojados no intestino, os vermes põem ovos que serão liberados com as fezesDEPTO. BIOQUÍMICA E IMUNOLOGIA / FMRP - USP

Logo após iniciarem a colonização do Brasil, os portugueses estabeleceram o tráfico regular de escravos africanos para a colônia. Oculto nas entranhas dos homens que cruzaram o Atlântico no porão das naus, chegou ao país um indesejado passageiro, que se tornaria um problema nestas terras tropicais: eram os vermes do gênero Schistosoma, causadores da esquistossomose, uma das mais antigas doenças humanas, registrada até em múmias egípcias de 5 mil anos. Só hoje, quase cinco séculos depois, é que se tem uma dimensão melhor desse desembarque despercebido: a espécie do parasita humano que aqui mais prosperou, o Schistosoma mansoni, encontrada também em outras partes da América do Sul, do Caribe e da África, infecta cerca de 10 milhões de brasileiros.

Após a disseminação nas últimas décadas do uso de medicamentos no combate ao parasita, que atinge meio centímetro de comprimento quando alojado no corpo humano, reduziu-se à metade o risco de morte por esquistossomose – contraída por meio do contato com água contaminada com larvas do verme, também é chamada de barriga-d’água, em razão do inchaço que provoca no abdômen. Mesmo assim, a esquistossomose ainda é comum – ou endêmica – em todo o Nordeste e em trechos do Sudeste, em especial em Minas Gerais, com focos dispersos por quase todo o território nacional.

Até o mês passado, o capítulo reservado ao Brasil na história da esquistossomose podia ser resumido dessa forma. Hoje, não mais. Num esforço de pouco mais de dois anos, pesquisadores do projeto Genoma Schistosoma mansoni, financiado pela FAPESP no âmbito da rede ONSA (consórcio virtual de laboratórios genômicos do Estado de São Paulo, na sigla em inglês), começam a escrever com tintas nacionais o que pode ser um novo capítulo na trajetória da esquistossomose – desta vez, com notícias alvissareiras.

Eles determinaram, de forma integral ou parcial, as seqüências de 92% dos estimados 14 mil genes do parasita. Por analogia com o material genético de outros organismos seqüenciados, descobriram a função de 45% dos genes do verme. Os outros 55% representam seqüências totalmente novas – ainda não se sabe quais proteínas derivam de sua ação. “Poucomais da metadedos genes do parasita nunca havia sido identificada em outros organismos”, afirma Sergio Verjovski-Almeida, do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP), coordenador do projeto, orçado em US$ 1 milhão, apoiado também pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). “Antes, eram conhecidas as seqüências completas de apenas 163 genes do verme. Elevamos esse número para 510 genes.”

Para alcançar esse índice de informações inéditas sobre os genes do parasita da esquistossomose, os cientistas geraram 163 mil seqüências parciais de genes ativos nos seis principais estágios do ciclo de vida do verme, desde as formas que vivem livremente na água doce até as que habitam seu hospedeiro intermediário, o caramujo, e as que infestam o homem.Antes da publicação dos resultados da rede ONSA, havia só 16 mil trechos de seqüências expressas – as expressed sequence tags, ou etiquetas de seqüências expressas (ESTs) – do verme da esquistossomose nas bases públicas de dados, 75% delas derivadas do estágio adulto do parasita. “Aumentamos em mais de dez vezes esse número”, comemora Emmanuel Dias Neto, do Instituto de Psiquiatria da USP, participante do projeto.

A façanha deve ser duplamente festejada: resulta da aplicação, por brasileiros, de um método nacional de encontrar ESTs, chamado Orestes. Ao lado de Andrew Simpson, hoje no escritório de Nova York do Instituto Ludwig de Pesquisa sobre o Câncer, Dias Neto é um dos inventores desse método que identifica regiões centrais de genes expressos, que levam à formação de proteínas atuantes nos diferentes estágios analisados.Os resultados desse trabalho foram anunciados no dia 15 de setembro em uma cerimônia realizada no Palácio dos Bandeirantes, sede do governo paulista, com a presença de representantes das universidades públicas paulistas, da comunidade científica e de autoridades do Estado.

“A conclusão do trabalho com o Schistosoma mansoni é mais um feito da ciência de São Paulo e do Brasil”, disse o governador Geraldo Alckmin. “Somos um exemplo para a pesquisa na América do Sul”, afirmou o presidente da FAPESP, Carlos Vogt, também presente ao evento. Em Brasília, no dia seguinte à apresentação dos resultados, Verjovski, os outros 37 pesquisadores do Genoma Schistosoma mansoni e a FAPESP ganharam reconhecimento público, na forma de um Voto de Aplauso, conferido pelo Senado na sessão de 16 de setembro. A data para a divulgação do trabalho não foi escolhida ao acaso.

Precisamente nesse dia, a versão eletrônica da revista Nature Genetics, um dos periódicos científicos de maior prestígio, antecipou em sua página na Internet o conteúdo de dois artigos sobre parasitas causadores da esquistossomose: um texto de dez páginas escrito pelos cientistas brasileiros do Genoma Schistosoma mansoni e outro de nove páginas redigido por um grupo chinês que analisou genes e proteínas do Schistosoma japonicum, a espécie do verme que provoca a doença na Ásia. Feitos por grupos concorrentes, ambos os artigos renderam a principal chamada de capa da edição impressa de outubro da Nature Genetics.

No projeto concorrente à iniciativa da ONSA, pesquisadores do Centro Nacional Chinês de Genoma Humano, em Xangai, utilizaram a forma tradicional de procurar ESTs e geraram 43.707 fragmentos de seqüências expressas (quatro vezes menos que os brasileiros) a partir de material coletado de apenas dois estágios de vida do S. japonicum – o projeto da ONSA trabalhou com seis estágios do ciclo do S. mansoni. Ainda assim, os chinesesdizem que suas seqüências estão relacionadas a 13.131 genes dos 15 mil que, segundo eles, constituem o genoma do S. japonicum. Apenas 35% dos genes identificados no projeto chinês nunca haviam sido encontrados antes em outros organismos, ao passo que no trabalho brasileiro, como se verificou, esse índice chegou a 55%.

Essa quantidade de genes inéditos pode ser uma decorrência de o S. mansoni ser um verme muito antigo. Segundo cálculos da equipe brasileira, o parasita diferenciou-se de outras espécies de animais multicelulares, a partir de um ancestral comum, há 1 bilhão de anos. Assim, originou uma linhagem independente de seres que apresentam os lados esquerdo e direito do corpo simétricos, mas não possuem tubo digestivo nem uma cavidade contendo os órgãos internos. “O S. mansoni é o mais antigo animal a apresentar dimorfismo sexual com genes seqüenciados”, afirma Verjovski. Ou seja: o macho e a fêmea do verme apresentam formas distintas: os exemplares do sexo masculino são maiores que os do sexo feminino.

A importância atribuída ao artigo dos pesquisadores paulistas na Nature Genetics lembra outra recente façanha dos membros da rede ONSA. Em julho de 2000, eles conseguiram a capa da revista Nature, da qual deriva a Nature Genetics, ao se tornarem o primeiro grupo do mundo a terminar o seqüenciamento integral do genoma de uma bactéria que ataca plantas: a Xylella fastidiosa, causadora da Clorose Variegada dos Citros (CVC), ou amarelinho. A diferença é que, agora, o feito foi dividido com os chineses, talvez o país emergente que mais concorra com o Brasil na área genômica.

Em dois anos, o Genoma Schistosoma mansoni envolveu 37 pesquisadores e nove laboratórios da rede ONSA e gerou resultados de destaque como a descoberta de 46 genes, que, a princípio, podem ser úteis na busca de novos medicamentos, além de 28 genes candidatos a alvo de uma vacina contra a doença. Para garantir a proteção intelectual de eventuais produtos derivados de seus achados, os cientistas da ONSA pediram a patente nos Estados Unidos sobre o direito de uso de 1 mil fragmentos ativos de DNA do parasita. Tais pedaços de genes podem ser de grande valia também para criar formas mais eficazes de diagnóstico ou prevenção da esquistossomose. “Queremos evitar a biopirataria de nossos dados e buscar parcerias com empresas para custear os estudos para desenvolvimento de drogas e vacinas”, explica o diretor científico da FAPESP, José Fernando Perez. “O genoma do Schistosoma mansoni é uma iniciativa de grande impacto social.”

Hoje, há indícios de que o medicamento mais usado contra a esquistossomose, o praziquantel, está perdendo eficiência, principalmente na África, o continente mais afetado. Ainda não há vacina contra a doença, que afeta 200 milhões de pessoas em 75 países – é superada apenas pela malária, com 300 milhões de casos. Os dados sobre o número de mortes em decorrência da esquistossomose variam enormemente: vão de 11 mil a 200 mil óbitos anuais, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Há ainda seqüelas e perda de qualidade de vida associadas aos casos mais graves da doença, cerca de 10%.

A esquistossomose é uma moléstia típica de países ou regiões pobres, em que faltam água encanada, rede de esgotos – saneamento básico, enfim -, além de campanhas educativas capazes de prevenir a contaminação. O homem elimina nas fezes os ovos do verme, que, em locais onde não há sistema adequado de esgoto, encontra seu hospedeiro intermediário, os caramujos de água doce do gênero Biomphalaria. No molusco, o Schistosoma se reproduz por cerca de 30 dias e retorna para a água – é nessa fase que se torna capaz de infectar o ser humano.

Criar uma vacina contra a esquistossomose não é fácil. É uma tarefa para cinco ou dez anos, caso alguma linha de pesquisa se mostre realmente promissora. O Instituto Butantan – um dos centros que participaram do estudo do genoma do verme, ao lado da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e do Instituto Adolfo Lutz – já testou em camundongos seqüências de DNA que poderiam atuar como vacina contra a esquistossomose. Nessa abordagem, os pesquisadores alteram genes do parasita possivelmente ligados ao desenvolvimento da doença. Depois, inoculam nos roedores um preparado contendo os genes modificados e os infectam com um elevado número de vermes.

Até agora, a equipe do Butantan já testou vacinas com oito genes alterados. Os resultados iniciais com dois genes mostraram-se razoáveis e servem de estímulo para o trabalho prosseguir. “Conseguimos uma imunização de cerca de 35%”, diz Luciana Cezar de Cerqueira Leite, do Butantan. “A OMS diz que uma vacina com 45% de eficácia é aceitável.” É preciso ficar claro o que significam esses números. Nesse caso, uma proteção de 35% quer dizer que, se entrarem em contato com uma população de cem parasitas, os animais imunizados com as mais eficientes candidatas a vacinas de DNA serão infectados por 65 parasitas. A imunização gênica consegue reduzir a população de vermes no animal, o que já é um avanço no controle da infecção, mas não impede o desenvolvimento da esquistossomose.

Arsenal inteligente
Alguns genes recém-identificados do S. mansoni podem ser úteis para a criação de fármacos, na medida em que fornecem importantes pistas sobre os mecanismos que permitem ao parasita driblar o sistema imunológico humano e permanecer a salvo na corrente sangüínea. Uma das descobertas mais interessantes diz respeito a um grupo de quatro genes com funções semelhantes. Com eles, as células do verme fabricam quatro tipos de compostos químicos que provocam reação alérgica no organismo humano – as toxinas alergênicas. Curiosamente, cada uma dessas toxinas é similar ao veneno de espécies distintas de vespa. A síntese desse arsenal químico detona uma resposta alérgica específica no sistema imunológico, que produz anticorpos contra essas toxinas, mas não direciona sua ação contra o próprio parasita. Outra descoberta de peso: o S. mansoni tem um gene responsável pela produção de uma proteína anticoagulante parecida com uma toxina encontrada no veneno de serpentes. Por não deixar o sangue do indivíduo contaminado coagular ao redor do parasita, essa toxina dificulta a identificação do Schistosoma mansoni pelo sistema de defesa do organismo no qual se instala. Funciona, portanto, como mais um despiste do verme.

A pesquisa ajuda a elucidar o mecanismo associado à resistência ao praziquantel. Suspeitava-se que esse medicamento atuasse sobre uma espécie de poros das células, os canais de cálcio, produzidos a partir de um gene já conhecido do parasita. Assim, a droga conseguiria neutralizar a transmissão de mensagens químicas entre as células do verme, dificultando seu crescimento. Mas, segundo essa pesquisa, há dois outros genes capazes de levar à produção de outros canais de cálcio, que substituiriam os bloqueados, além de manter a comunicação entre as células do Schistosoma.

A perda de eficácia do medicamento pode estar relacionada a alterações em algunsdesses genes,que levariam à produção de canais de cálcio ligeiramente diferentes. Apesar de pouco ter freqüentado o noticiário nos últimos anos, ofuscada por outras doenças tropicais, como os surtos de dengue em grandes cidades, a esquistossomose continua sendo um grave problema de saúde pública no Brasil. Dados da Fundação Nacional de Saúde (Funasa) mostram que o uso de medicamentos, ao lado das tradicionais medidas de controle da população de caramujos do gênero Biomphalaria e da expansão dos sistemas de esgoto, reduziu à metade o número de mortes decorrentes da doença no território nacional. Em 1979, ocorriam sete mortes a cada 1 milhão de habitantes.

Em 1999, esse índice caiu para três por 1 milhão. No Nordeste, a região mais afetada pela doença, também se verificou uma diminuição nos óbitos da ordem de 50% nesses 20 anos. O problema é que o número de mortes por 1 milhão de habitantes caiu de 12 para seis. Ou seja, o índice de letalidade da esquistossomose no Nordeste ainda é o dobro da média brasileira. Não se deve, no entanto, pensar que a moléstia é uma chaga exclusiva dos nordestinos.

“Não há duvida de que o uso de medicamentos fez cair a mortalidade associada à doença em todo o país”, observa o parasitologista Paulo Marcos Zech Coelho, coordenador geral do Programa Integrado de Esquistossomose da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). “Mas a esquistossomose ainda está em expansão geográfica no Brasil, longe de ser controlada.” Segundo Coelho, focos da doença foram descobertos nos últimos anos até nos Estados da região Sul, áreas antes livres desse problema. “Criar uma vacina eficaz contra a doença é difícil, mas os dados do genoma do Schistosoma mansoni podem ajudar no desenvolvimento de novas drogas para tratar a esquistossomose.” Espera-se que, assim, o praziquantel deixe de ser a única arma contra a doença.

O Projeto
Genoma Schistosoma mansoni; Modalidade Programa Genoma – FAPESP; Coordenador Sergio Verjovski-Almeida – Instituto de Química da USP; Investimento US$ 500.000,00 (FAPESP) e US$ 500.000,00 (CNPq)

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