Quase meio século depois de um grupo de pesquisadores brasileiros ter descoberto a bradicinina, molécula que se tornou essencial na fabricação dos medicamentos mais adotados atualmente no controle da pressão arterial, outra equipe chegou a resultados que, a princípio, representam um avanço no combate à hipertensão. Um peptídeo (fragmento de proteína) que recebeu o nome de hemopressina pode ser até cem vezes mais potente que a bradicinina na redução da pressão arterial e inspirar uma geração de medicamentos mais eficazes e com menos efeitos colaterais. As drogas hoje empregadas no tratamento da hipertensão apresentam riscos de causar impotência sexual, infarto do miocárdio, alteração do humor e dificuldades de concentração.
“A hemopressina é a neta da bradicinina”, diz o coordenador do estudo, o farmacêutico Emer Suavinho Ferro, do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da Universidade de São Paulo (USP), cujos resultados serão publicados no Journal of Biological Chemistry. Ao criar esse parentesco entre as moléculas, Ferro refere-se às gerações de pesquisadores que trabalharam sobre esse tema, começando por Maurício Oscar da Rocha e Silva (1910-1983), que em 1948 identificou e purificou a bradicinina no veneno da jararaca (Bothrops jararaca) com outro pesquisador do Instituto Biológico de São Paulo, Wilson Teixeira Beraldo (1917-1998). Rocha e Silva orientou o doutorado de Antonio Martins de Camargo, hoje no Instituto Butantan. Descobridor de uma molécula com efeitos anti-hipertensivos, Camargo orientou Ferro.
O trabalho de Rocha e Silva ganhou o reforço, nos anos 60, de outro discípulo, Sérgio Henrique Ferreira. Hoje na Faculdade de Medicina da USP em Ribeirão Preto, Ferreira isolou um princípio ativo capaz de intensificar a resposta à bradicinina, conhecido como Fator Potenciador da Bradicinina (FPB). Não foi fácil convencer os outros cientistas de que a bradicinina teria futuro. Um futuro e tanto, por sinal: estima-se que o captopril, o anti-hipertensivo feito a partir do potenciador da bradicinina, gere no mundo todo um faturamento de US$ 5 bilhões por ano para o laboratório norte-americano Bristol-Myers Squibb, que detém a patente desde que produziu uma versão sintética, em 1977.
Formas de ação
Os testes em animais feitos no ICB comprovam a eficácia da hemopressina na redução da pressão arterial, mas ainda há muita pesquisa pela frente até surgirem novos medicamentos a partir desse peptídeo, cujo nome é a fusão de hemo (em referência à proteína precursora, a hemoglobina) e pressina (em virtude de seu efeito sobre a pressão). Por enquanto, há somente algumas hipóteses sobre o mecanismo de ação dessa molécula, estudada com afinco pela bióloga Vanessa Rioli, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), aluna de doutorado de Ferro.
Em linhas gerais, o controle da pressão arterial centra-se na angiotensina I, hormônio produzido na circulação sangüínea. Quando o sangue passa pelos pulmões, a enzima conversora da angiotensina (ECA) transforma a angiotensina I em angiotensina II, enzima apontada como a maior responsável pela hipertensão por fazer as artérias estreitarem e estimular a liberação de hormônios que elevam a pressão sangüínea. Os medicamentos contra pressão alta impedem que a ECA quebre a angiotensina I. Desse modo, adiam a produção da angiotensina II e preservam a bradicinina, poderoso vasodilatador, que aumenta o diâmetro das artérias e assim amplia o espaço para o sangue circular, diminuindo a pressão.
Com a hemopressina, as reações se tornam mais complexas. Supõe-se que o peptídeo possa agir diretamente como protagonista dos mecanismos de controle da pressão arterial, talvez promovendo o relaxamento das artérias, ou indiretamente, ao desviar a atenção para si, como uma espécie de boi de piranha, interagindo com a ECA e sendo ela própria (a hemopressina) quebrada. A ECA deixaria assim de atuar sobre a bradicinina e a angiotensina I, que estariam livres para manter a pressão estável.
A equipe do ICB entrou na trilha que levaria a esses resultados há três anos, quando começaram a estudar o modo pelo qual duas enzimas, a thimet-oligopeptidase e a neurolisina, degradam peptídeos. Inativadas, as duas enzimas foram usadas como iscas para outros peptídeos do cérebro de ratos – é no cérebro onde há maior diversidade de peptídeos. Depois, os pesquisadores filtraram as moléculas conectadas – complexos de enzima e peptídeo -, deixando de lado as que permaneciam isoladas. Na etapa seguinte, o Laboratório de Espectrometria de Massas do Instituto de Química da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) seqüenciou 16 peptídeos que apareceram ligados às enzimas. Dos três já sintetizados (os outros 13 ainda aguardam estudos mais aprofundados), dois não eram novidade e foram descartados.
O potencial hipotensivo do peptídeo que restou dessa seleção só se tornou claro quando colocado em contato com a enzima conversora de angiotensina, a ECA, que também consegue quebrar a bradicinina. A ECA quebrou o peptídeo até então anônimo 11 vezes mais rápido que a bradicinina e 6,7 vezes mais rápido que a angiotensina I – sinal de que a hemopressina pode realmente atuar de forma indireta, desviando a atenção a si própria.
Controle
O peptídeo funcionou melhor do que o imaginado nos dois testes por que passou, com ratos anestesiados e não anestesiados. Num trabalho feito com a Unicamp e o Instituto do Coração (Incor) da Faculdade de Medicina da USP, uma dose de hemopressina cem vezes menor que a de bradicinina, aplicada na veia femural esquerda de ratos anestesiados, provocou a mesma queda na pressão arterial.
Com ratos não anestesiados, a potência da hemopressina é dez vezes menor que a da bradicinina – indicação de que o sistema nervoso central regula a ação da hemopressina de um modo distinto do verificado com a outra molécula. “Confirmamos o controle do sistema nervoso central por meio da desativação do nervo vago de animais não anestesiados, que tornou a hemopressina tão potente quanto a bradicinina na redução da pressão arterial”, observa o pesquisador.
A equipe da USP entrou com pedido de patente da hemopressina, de modo a evitar que uma empresa estrangeira fique com os dividendos da descoberta, como aconteceu com a bradicinina. “Esperamos que a história, desta vez, seja diferente”, diz Ferro.
O projeto
Bases Moleculares e Celulares da Biologia das Peptidases (nº 99/01983-9); Modalidade Linha regular de auxílio à pesquisa; Coordenador
Emer Suavinho Ferro – ICB/USP; Investimento R$ 509.849,14