Léo Ramos Chaves / Revista Pesquisa FAPESPCesáreas elevam o risco de nascimento precoce e da necessidade de internação em UTILéo Ramos Chaves / Revista Pesquisa FAPESP
Um programa de incentivo e conscientização de profissionais da saúde, hospitais e gestantes em favor do parto normal indica ser possível reduzir os nascimentos por meio de cesarianas desnecessárias. É o Programa Parto Adequado (PPA). Criado em 2014 pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) em resposta a uma ação do Ministério Público Federal, o PPA, por ora, foi implantado em um número pequeno de hospitais particulares – cerca de 140 dos quase 4,5 mil existentes – e ainda é pouco conhecido pelas grávidas. Estudos que avaliam o desempenho da iniciativa, no entanto, mostram resultados animadores.
Um deles foi publicado em setembro no Cadernos de Saúde Pública por pesquisadoras da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade de Brasília (UnB). No trabalho, elas compararam a evolução na taxa de partos cirúrgicos em cinco hospitais particulares da cidade de São Paulo que participavam do PPA desde sua primeira fase com a de 13 maternidades privadas paulistanas que não integravam o programa.
No período analisado, de 2014 a 2019, os centros realizaram 277.747 partos. Tanto nos participantes do PPA quanto nos outros hospitais houve redução de cesarianas. A diminuição, porém, foi bem mais acentuada (11,5 pontos percentuais) nas maternidades que aderiram ao PPA. Nesse grupo, a taxa de partos cirúrgicos baixou de 83,8% em 2014 para 72,3% em 2019, enquanto passou de 78,9% para 76,2% nos outros 13 hospitais. Apesar da redução expressiva nos participantes do PPA, a proporção de cesáreas permaneceu muito superior à recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) – no máximo 15%.
Em outro trabalho, publicado em 2021 na revista BMJ Open Quality, o médico Romulo Negrini, coordenador de obstetrícia do Hospital Israelita Albert Einstein (HIAE), e colaboradores avaliaram o impacto do PPA na maternidade da instituição. Em parceria com a ANS e a organização não governamental norte-americana Institute for Healthcare Improvement (IHI), o HIAE participou da concepção do Programa Parto Adequado e adotou o sistema desde o início.
Como resultado, de 2014 a 2019, a proporção de partos vaginais no hospital aumentou de 24% para 30% e a de cesáreas baixou de 76,4% para 70% – a taxa média de partos cirúrgicos nos hospitais particulares brasileiros é superior a 80%. Simultaneamente ao crescimento dos partos naturais, houve queda de 19,2% para 13,2% na proporção de bebês que precisaram ser internados em Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) após o nascimento. Uma consequência dos partos cirúrgicos desnecessários é o nascimento precoce, antes de 39 semanas de gestação, associado a um maior risco de infecções respiratórias e mortes.
“Desde a implementação do PPA, percebemos uma redução de cerca de 500 cesáreas por ano no hospital”, conta Negrini. “Parece pouco, mas é um avanço importante em um país no qual predomina a cultura da cesariana”, afirma.
Em um terceiro estudo, publicado em setembro na revista Reproductive Health, a equipe da epidemiologista Maria do Carmo Leal, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), avaliou quais características do PPA mais contribuíam para a realização do parto natural. Foram entrevistadas 2.473 mulheres que deram à luz em 12 hospitais das regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste integrantes do programa. Das 1.671 que entraram no PPA, 37,7% tiveram bebê por parto normal. Essa taxa foi de 24,5% entre as 802 restantes.
A probabilidade de dar à luz pela via natural, porém, chegou a 80% quando os hospitais tinham quatro características: não agendavam previamente o parto; ofereciam à gestante informações sobre as melhores práticas de trabalho de parto; respeitavam o plano de parto escolhido pela grávida; e permitiam à futura mãe se hidratar, movimentar-se, ter acesso a um chuveiro e a métodos não farmacológicos de aliviar a dor enquanto aguardava o bebê.
Não é de hoje que o Brasil é um dos campeões mundiais de partos cirúrgicos. Uma análise feita por pesquisadores da OMS em 154 países no período 2010-2018 colocou o Brasil na segunda posição, com 55,7% dos partos sendo cirúrgicos, atrás apenas da República Dominicana (58,1%), segundo dados publicados em 2021 na BMJ Global Health.
Números do Ministério da Saúde mostram que há pelo menos 15 anos a cesariana é a forma mais comum de nascer dos brasileiros. Ela respondia por 32% dos partos em 1994 e chegou a 50% em 2009. Desde então, a taxa não foi mais inferior à de partos normais (ver gráfico).
Na cesariana, o médico faz um corte na porção inferior do ventre e outro no útero para retirar o bebê. É uma cirurgia útil e importante. Seus benefícios costumam superar os riscos quando o bebê não está bem e precisa nascer imediatamente, quando ele está mal posicionado e não consegue descer pelo canal de parto ou se a mãe tem herpes genital ativa. Ou em situações mais raras, quando a placenta é expulsa antes do bebê (descolamento de placenta) ou há ruptura do útero.
Sem recomendação clínica, porém, a cesariana oferece riscos desnecessários para a mãe e a criança. No Brasil, mulheres sem problemas de saúde que fazem cesariana enfrentam um risco quase três vezes maior de morrer em decorrência de hemorragia pós-parto ou complicações da anestesia do que as que optam pelo parto vaginal. O parto cirúrgico também contribui para elevar a taxa de recém-nascidos a termo precoce, isto é, bebês que nascem na 37ª ou 38ª semana da gestação – o ideal é que ela dure de 39 a 41 semanas. Essa antecipação eleva a ocorrência de problemas respiratórios e a necessidade de internação em UTI.
A pediatra Heloisa Bettiol, professora aposentada da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP, testemunhou essa mudança no cenário de nascimentos desde o início, por meio de estudos que acompanharam todos os nascidos em Ribeirão Preto em 1978, 1994 e 2010. A taxa de cesáreas passou de 30,3% em 1978 para 50,8% em 1994 e 59,1% em 2010. A elevação foi maior entre mães de classes socioeconômicas mais altas, mais escolarizadas e com acesso à assistência privada. “Ficamos surpresos com o aumento nesse grupo das taxas de prematuridade e baixo peso ao nascer, antes mais comuns em populações mais pobres. Uma das razões foi o aumento de cesáreas, que ocorreu em todos os grupos sociais, em especial entre os mais favorecidos”, conta Bettiol.
O excesso de cesarianas eleva o número de nascimentos precoces, confirmou o pediatra e epidemiologista Fernando Barros, da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), em um artigo publicado em 2018 na revista BMJ Open. Ele analisou dados de 2.903.716 bebês nascidos em hospitais de 3.157 cidades brasileiras em 2015 e observou uma prevalência média de cesáreas de 55% e de 10% de nascimentos precoces. A proporção de bebês que nasciam com 37 ou 38 semanas foi mais elevada (40%) nos municípios em que as cesarianas correspondiam a mais de 80% dos partos e menos frequente (22%) naqueles em que menos de 30% das crianças ganhavam a vida por meio do parto cirúrgico (ver Pesquisa FAPESP nº 271).
O exagero de cesáreas levou a organização não governamental Parto do Princípio, que defende os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, a entrar no início da década passada com uma ação civil no Ministério Público Federal contra a ANS. Em resposta, em outubro de 2014, a agência, o HIAE e o IHI, com apoio do Ministério da Saúde, assinaram um acordo de cooperação para melhorar a qualidade dos serviços obstétricos e neonatais nas redes atendidas pelos planos de saúde e criaram o PPA.
O objetivo do programa era identificar modelos inovadores e viáveis de atenção ao parto e ao nascimento que valorizassem o parto vaginal. Isso seria alcançado por meio da criação de uma coalizão das lideranças no setor da saúde que garantisse qualidade e segurança na assistência ao parto; do empoderamento das mulheres e famílias para que participassem ativamente da gestação, do parto e do pós-parto; da reorganização da assistência para favorecer a evolução fisiológica (natural) do trabalho de parto e garantir que só se opte pela cesariana quando os critérios clínicos justificarem; e do monitoramento das mudanças.
Houve ciclos de aprendizagem com hospitais e operadoras para testar as ações, avaliar os resultados e compartilhar as experiências. Também foram oferecidos treinamentos para capacitar os profissionais da saúde a realizarem partos normais com segurança. Na segunda fase, os hospitais do ciclo inicial se tornaram referência para outros. Nos sites das operadoras, foram criados espaços com informação sobre o PPA para as gestantes.
Na fase inicial, em 2015 e 2016, o programa foi implementado em 35 hospitais e 19 operadoras de planos de saúde. Na seguinte, foi expandido para 108 hospitais e 60 operadoras. Em 2019, ele entrou em sua terceira etapa, agora com o nome de Movimento Parto Adequado, na qual deveria ser disseminado em larga escala. Segundo a ANS, nas duas primeiras fases, mais de 20 mil cesarianas desnecessárias teriam sido evitadas no país.
André Borges / Agência BrasíliaPrograma treinou médicos para realizar o parto vaginal e empoderou mulheres para participarem ativamente do planejamento do partoAndré Borges / Agência Brasília
Apesar do potencial do PPA, sua implementação não é simples. Em outro artigo, publicado na revista Reproductive Health, o grupo de Leal, da Fiocruz, verificou que a implantação de dois componentes da primeira fase do PPA – a participação das mulheres e a reorganização do cuidado – foi considerada baixa. O resultado é atribuído à dificuldade de promover mudanças estruturais e culturais nos hospitais privados. “Muitas vezes, a própria mulher opta por marcar o parto sem saber que pode não ser o melhor para o bebê”, afirma Leal. “Mas já começamos a perceber mudanças.”
Além disso, o programa é pouco conhecido pelas gestantes, segundo estudo publicado na Reproductive Health pela enfermeira Andreza Pereira Rodrigues, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Analisando entrevistas com 102 gestantes atendidas em dois hospitais do PPA, ela e colaboradores constataram que a maioria desconhecia a iniciativa e que menos da metade tinha participado de grupos de pré-natal ou visitado a maternidade antes do parto.
Para Barros, da UFPel, é necessário ampliar a comunicação para as mulheres sobre o impacto negativo de cesáreas sem indicação clínica. “Precisamos de uma campanha permanente de esclarecimento, além de mudanças no currículo médico, para reverter a normalização das cesáreas”, pondera o pediatra.
“As cesáreas estão associadas ao aumento de problemas de saúde crônicos na vida adulta, como diabetes, obesidade, asma e doenças inflamatórias”, completa a médica sanitarista Carmen Grilo Diniz, da Faculdade de Saúde Pública da USP, coordenadora do trabalho que avaliou o impacto do PPA nas maternidades paulistanas.
Mesmo assim, relata a ginecologista Andrea Campos, aluna de doutorado de Diniz e primeira autora do trabalho publicado no Cadernos de Saúde Pública, algumas razões explicam a preferência pela cirurgia. Uma é a comodidade de agendar a data do nascimento. Outra é a rapidez. “Existe uma cultura de medo em relação ao parto normal por causa de intervenções desnecessárias que historicamente ocorriam, da episiotomia [incisão no períneo para ampliar o canal de parto] às manobras para o parto acontecer”, explica.
Também favorece a opção pela cirurgia o fato de o parto geralmente ser feito pelo médico que acompanha a paciente no pré-natal, e não por plantonistas do hospital, enfermeiras obstétricas ou obstetrizes. Além disso, a pressão de familiares e profissionais da saúde pode impactar a decisão da mulher pelo tipo de parto.
Ao comunicar a parentes e amigos que optaria pelo parto normal, a enfermeira Agatha Scarpa ouviu críticas, mas teve os dois filhos nascidos de parto vaginal em hospitais privados. “Venho de um recorte social privilegiado, com formação superior em saúde e condição financeira que me permitiu vivenciar meus partos da forma que escolhi. Isso não corresponde à realidade da maioria das brasileiras”, conta. “Falta às gestantes acesso à informação sobre os benefícios do parto normal e atendimento pré-natal de qualidade, que as ajude a se vincularem ao local do parto.”
Para a médica e epidemiologista Daphne Rattner, da UnB, coautora do artigo do Cadernos de Saúde Pública, uma reforma obstétrica é necessária no país. “Em modelos bem-sucedidos de atendimento à saúde materna, gestações de risco habitual podem ser acompanhadas por enfermeiras obstétricas ou obstetrizes, profissionais preparadas para identificar desvios da normalidade e encaminhar ao médico”, afirma a pesquisadora. “Mas há resistência da classe médica”, conta.
Os especialistas consultados por Pesquisa FAPESP consideram a participação de profissionais de enfermagem e de obstetrizes no trabalho de parto de baixo risco um fator importante para melhorar a assistência às gestantes. Como exemplo, Rattner menciona o caso de Recife. Lá, desde 2019, a prefeitura criou centros de parto normal geridos por enfermeiras obstétricas em quatro maternidades municipais. Neles, a taxa de parto normal assistido por enfermeiras passou de 9,5% em 2019 para 15,5% em 2023. No pré-natal, é informado à gestante em qual maternidade o parto deve ocorrer e ela pode visitar o local. “As visitas buscam fortalecer o vínculo com a unidade de referência e incluem rodas de conversa e apresentação dos setores do hospital”, explica Camila Farias, coordenadora da Política de Atenção à Saúde da Mulher de Recife.
A reportagem acima foi publicada com o título “Contra o excesso de cesarianas” na edição impressa nº 347, de janeiro de 2025.
Artigos científicos
CAMPOS, A. S. D. Q. et al. Efetividade do Programa Parto Adequado na diminuição das taxas de cesárea de maternidades privadas no município de São Paulo, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, v. 40, n. 9. 2024.
NEGRINI, R. et al. Strategies to reduce the caesarean section rate in a private hospital and their impact. BMJ Open Quality. ago. 2021.
LEAL, M. do C. et al. The effects of a quality improvement project to reduce caesarean sections in selected private hospitals in Brazil. Reproductive Health. 4 set. 2024.
BETRAN, A. P. et al. Trends and projections of caesarean section rates: Global and regional estimates. BMJ Global Health. jun. 2021.
BARROS, F. C. et al. Caesarean sections and the prevalence of preterm and early-term births in Brazil: Secondary analyses of national birth registration. BMJ Open. 1º ago. 2018.
TORRES, J. A. et al. An implementation analysis of a quality improvement project to reduce cesarean section in Brazilian private hospitals. Reproductive Health. 26 abr. 2024.
RODRIGUES, A. P. et al. Women’s voice on changes in childbirth care practices: A qualitative approach to women’s experiences in Brazilian private hospitals participating in the Adequate Childbirth Project. Reproductive Health. 24 jan. 2023.
Republicar