de Heidelberg
Feixes de prótons ou de íons de carbono acelerados a até 225 mil metros por segundo, três quartos da velocidade da luz, penetram 30 centímetros no interior do corpo humano praticamente sem causar danos ao tecido biológico atravessado. Quase toda a energia desse fluxo de partículas subatômicas eletricamente carregadas é canalizada para o exato momento e lugar em que prótons ou íons cessam de se movimentar. Esse ponto de parada pode ser controlado com precisão milimétrica e direcionado para um tumor, que, assim, receberá uma dose de energia concentrada maior do que a atualmente fornecida pela radioterapia convencional. Na hadronterapia, nome dado a essa relativamente nova abordagem terapêutica contra o câncer, a chance de as células com tumor, e quase exclusivamente elas, morrerem em razão da radiação ionizante é grande.
“Esse efeito de concentração da energia das partículas no ponto de parada é denominado pico de Bragg”, diz Thomas Haberer, diretor técnico e científico do centro de terapia de feixes de íons mantido pelo hospital da Universidade de Heidelberg, o mais avançado da Europa a utilizar prótons e íons de carbono em tratamento e pesquisa contra o câncer. Cara e disponível em apenas cerca de 40 centros médicos ou hospitais localizados na Ásia, Europa, Estados Unidos e África do Sul (no Brasil não há nenhum), a hadronterapia já foi empregada em aproximadamente 112 mil pessoas nos últimos 20 anos. Cerca de 90% dos pacientes receberam a irradiação de prótons, mais poderosa do que a propiciada pela radioterapia tradicional, mas de duas a três vezes menos energética do que a de íons de carbono, considerada a mais promissora para os casos mais complicados.
A radioterapia clássica usa fótons, partículas de luz, para tentar debelar o câncer. Os raios X são o tipo de luz mais empregado contra tumores. Eles são extremamente úteis na luta contra a doença, mas têm um problema: antes de atingirem a região do tumor, perdem parte de sua energia durante o seu trajeto e danificam o DNA das células normais com que entraram em contato. Graças à existência do pico de Bragg, uma particularidade física e radiobiológica das partículas subâtomicas eletricamente carregadas, a hadronterapia pode ser extremamente letal aos tumores e, ao mesmo tempo, quase inócua aos tecidos sadios. “Os íons de carbono são mais pesados e têm menor dispersão lateral do que os prótons”, diz o italiano Marco Durante, diretor do Departamento de Biofísica do GSI Centro Helmholtz para Pesquisa de Íons Pesados, em Darmstadt, que desenvolveu a tecnologia usada em Heidelberg. “Isso faz com que se conformem melhor em torno dos tumores. Sua alta carga aumenta as propriedades biológicas e os transforma em um soco poderoso contra tumores resistentes à radiação.”
Inaugurado em 2009, o centro em Heidelberg tratou até hoje 2.200 pacientes, metade com prótons e metade com íons de carbono. “Desde que sigamos os protocolos padronizados, que recomendam um limite para a dose diária de radiação ionizante, os pacientes submetidos à protonterapia não precisam fazer parte de um teste clínico. Mas praticamente todos os indivíduos tratados com íons de carbono participam de estudos clínicos”, afirma Haberer. Apenas seis lugares no mundo usam íons de carbono, mais pesados e mais energéticos do que os prótons, em tratamentos contra câncer. Três centros estão no Japão (em Chiba, Gunma e Hyogo), que há 20 anos emprega a hadronterapia; um está em Lanzhou, na China; outro em Pavia, na Itália, além da unidade na Alemanha.
Boa parte dos pacientes que se submeteram à hadronterapia tinha tumores situados em partes do corpo de difícil acesso, como o cérebro ou o pulmão, muito próximos a órgãos que não podem ser irradiados ou simplesmente resistentes aos tratamentos convencionais. Algumas formas de cânceres pediátricos também são alvos preferenciais da terapia de partículas, geralmente a baseada em prótons, menos energética do que a de íons de carbono. Há estudos que mostram melhor evolução do quadro clínico e maior tempo de sobrevida nos pacientes que se submeteram à terapia de partículas em relação à radioterapia convencional. Mas alguns médicos acreditam que ainda são necessárias mais pesquisas nesse sentido. “O tema ainda é um pouco controverso e alguns resultados necessitam de validação em estudos comparativos”, diz João Victor Salvajoli, especialista em radiologia do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp) e do Hospital do Coração (HCor). “Mas a terapia de partículas pode ser mais eficaz em certos casos selecionados, como alguns cânceres infantis, cordomas [tumores na base do crânio] e melanoma de coroide. O Brasil deveria ter ao menos um centro de protonterapia para casos selecionados, ensino e pesquisa.”
Terapia cara
Para explorar as possibilidades dessa forma de radioterapia, os centros médicos precisam de um cíclotron ou de um síncrotron, aceleradores circulares de partículas responsáveis por colocar prótons ou íons na velocidade adequada para uso clínico, e de instalações especiais para abrigar a parafernália – e isolar a radiação – envolvida na hadronterapia. O centro de Heidelberg, que custou € 120 milhões, é composto de um prédio de três andares com 5 mil metros quadrados. Uma estrutura de aço gigantesca, que pesa 670 toneladas e tem 25 metros de comprimento e 13 de diâmetro, conecta-se ao seu síncrotron. Ela ocupa os três andares e é usada para direcionar os feixes de partículas com precisão milimétrica para três salas de terapia.
Os Estados Unidos, onde boa parte da tecnologia e dos estudos com hadronterapia teve início décadas atrás, não contam hoje com nenhum centro de tratamento com íons de carbono, embora disponham de 14 instituições que usam a protonterapia. “É mais uma questão de como o sistema de saúde é financiado nos Estados Unidos, que é diferente do da Europa e da Ásia”, diz o físico Stephen Peggs, do Laboratório Nacional de Brookhaven, no estado de Nova York, que participou em fevereiro deste ano de um encontro para discutir o futuro da hadronterapia nos Estados Unidos. “Hoje o sistema não cobre os custos de terapias com íons de carbono, apenas com prótons.” A hadronterapia é cara. Em Heidelberg, o valor cobrado para tratar um paciente gira em torno de R$ 75 mil.
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